O
mais velho realizador do mundo morreu esta quinta-feira, 02 de Março de 2015, na sua casa no Porto,
aos 106 anos. Foi “uma bela vida”.
Durou 106 anos, filmou até aos
105, praticamente até ao fim – e em Fevereiro último esteve ainda a filmar, em
Serralves –, mesmo se achou não ter tido o tempo suficiente para concretizar os
seus projectos. Manoel de Oliveira morreu esta quinta-feira de manhã, na sua
casa no Porto. O funeral realiza-se sexta-feira à tarde, às 15h, com uma
pequena cerimónia religiosa na Igreja de Cristo Rei, na Foz, seguindo depois
para o cemitério de Agramonte, na Boavista.
A comunidade cinéfila e
cultural (e também política) desmultiplicou-se em declarações e testemunhos a
lamentar a perda. Alguns dos seus mais próximos, como Luis Miguel Cintra,
recolheram-se no silêncio, ou em testemunhos sentidos, mas por escrito, como
Leonor Silveira, sua “actriz improvável” e “musa”. Ou então como Júlia Buisel,
sua anotadora (script girl) fiel nas últimas décadas, que se socorreu de uma
frase do realizador na festa dos seus 90 anos, no Rivoli. “Não sei onde está
agora o Manoel, mas sei que ele estará a fazer aquilo que sempre disse e que
sempre quis fazer – está a filmar."
E houve outros actores
“cúmplices” de Oliveira de fora, como o actor Michel Piccoli ou o director de
fotografia Renato Berta, que telefonaram a querer saber se o funeral seria a
tempo de se deslocarem ao Porto, confidenciou Buisel ao PÚBLICO.
Em Portugal, o Governo decretou
dois dias de luto nacional, e a Câmara do Porto três dias de luto municipal ao
seu cidadão “invulgar”, como se lhe referiu Rui Moreira – o PÚBLICO sabe que
tanto a autarquia como a Universidade do Porto disponibilizaram as suas salas
para receber o velório do realizador, mas a família optou por uma curta
cerimónia religiosa, mesmo com os constrangimentos de Sexta-Feira Santa – “foi
a última partida que o pai nos pregou”, comentou Manuel Casimiro, filho e
pintor.
E pronto. Cumpriu-se o ciclo
da natureza – e tantas vezes Oliveira disse que a sua longevidade não era mais
do que “um capricho da natureza”. O Gebo e a Sombra (2012) ficará como a sua
última longa-metragem, e O Velho do Restelo a sua última curta, em vida –
chegou agora finalmente a altura de vermos a sua biografia inédita Visita ou
Memórias e Confissões, realizada em 1982, mas que por vontade expressa do autor
só seria revelada postumamente. E a Cinemateca Portuguesa, que anunciou uma
homenagem para a próxima segunda-feira, com a exibição dos filmes O Passado e o
Presente, O Quinto Império – Ontem como Hoje e Francisca, disse já também que
brevemente fará a exibição desse filme também resultante da colaboração de
Oliveira com Agustina.
Sete dezenas de filmes
Se continuou a filmar até ao fim,
Manoel de Oliveira manteve-se também activo até ao fim, na atenção ao mundo que
o envolvia. Em 2010, num artigo para o PÚBLICO, em "defesa do cinema
português", escreveu que pensava nas condições cada vez mais difíceis
dessa coisa de fazer filmes em Portugal. Que pensava nos seus colegas.
"Eles, como eu, sempre viveram na precariedade e na insegurança, sem
reforma nem subsídio de desemprego, e sem nunca sabermos se não estaremos a
fazer o nosso último filme. Eles, como eu, só temos um desejo: todos ambicionamos
morrer a fazer filmes." E, ainda que com uma periodicidade rarefeita nas
primeiras décadas, Oliveira acabaria por realizar quase sete dezenas de
títulos, desde que, em 1931, se iniciou com a curta-metragem Douro, Faina
Fluvial.
Quando, jovem de 20 anos,
começou a frequentar os meios do cinema, este dava ainda os primeiros passos
como nova forma de expressão artística, mesmo se com a energia inovadora da
narrativa de um David W. Griffith, do expressionismo alemão de um Wilhelm F. Murnau,
ou do realismo soviético de um Sergei M. Eisenstein. Em 1928, Oliveira
matriculou-se na Escola de Actores de Cinema fundada no Porto pelo realizador
italiano Rino Lupo, e faz uma pequena figuração no seu filme Fátima Milagrosa.
Era o hobby de um jovem dandy, que por esses anos se entretinha também a
praticar atletismo e a desafiar a gravidade no trapézio do Teatro-Circo Carlos
Alberto.
No ano seguinte, com o seu
amigo Manuel Mendes, empregado bancário e fotógrafo amador, começou a registar
numa pequena câmara Kinamo o dia-a-dia dos trabalhadores nas margens do rio
Douro, transpondo para o cenário da Ribeira portuense aquilo que vira o alemão
Walter Ruttmann fazer com Berlim, Sinfonia de uma Capital (1927). Desta
experiência resultou Douro, Faina Fluvial, montado à pressa na própria casa do
jovem cineasta para ser estreado, pela mão de António Lopes Ribeiro, em Lisboa,
no programa do V Congresso Internacional da Crítica. O episódio é conhecido: a
maioria da plateia de críticos nacionais pateia o filme (José Régio foi uma das
raras excepções), enquanto os estrangeiros, entre os quais se encontrava o
crítico francês Émile Vuillermoz e o dramaturgo italiano Luigi Pirandello,
aplaudem… Começou aqui uma duplicidade que praticamente acompanharia toda a carreira
do realizador, entre a desatenção ou mesmo desprezo por parte das plateias em
Portugal e o aplauso e a progressiva reverência no estrangeiro, principalmente
em França e em Itália.
Depois de uma notada presença
ao lado de Vasco Santana, António Silva e Beatriz Costa em A Canção de Lisboa
(1933), o filme de Cottinelli Telmo que inaugurou a época de ouro da comédia
portuguesa – “mas nunca fui lá grande actor”, confidenciou mais tarde –,
aventurou-se na longa-metragem com Aniki-Bóbó (1942). É a adaptação de um conto
do seu amigo Rodrigues de Freitas, Meninos Milionários, numa fábula sobre o
universo infantil (e a dimensão adulta que ele já encerra) de novo encenada nas
margens do Douro. A recepção ao filme voltou a ser distante, e ele só foi
verdadeiramente redescoberto mais tarde, com a sua passagem na televisão e após
a menção honrosa conquistada num encontro de cinema para jovens em Cannes, em
1961.
Nos anos subsequentes a
Aniki-Bóbó e durante cerca de duas décadas, Oliveira viu-se impedido de
concretizar os seus sucessivos projectos cinematográficos, entre os Os Gigantes
do Douro (1934), que, a seguir a Douro, Faina Fluvial, se propunha ir mais
longe às raízes da vida árdua dos trabalhadores das vinhas naquela região do
interior do país, e Angélica (1952), que só viria a concretizar mais de meio
século depois.
Pelo meio, realiza algumas
curtas-metragens para os amigos, gere a empresa industrial herdada do pai e
dedica-se ao cultivo da vinha no Douro, na quinta sua e de sua mulher Maria
Isabel Carvalhais, com quem casa em 1940. “Ele era um rapaz muito pretendido
ali na Foz. E era muito sabido, mas também muito humano. Gostei logo dele, pela
maneira sensível como tratava as pessoas”, testemunhou Maria Isabel aquando da
celebração do 90.º aniversário do marido.
O casamento interromperia,
curiosamente, outra faceta da carreira desportiva de Oliveira – a de piloto de
automóveis, que teve o seu momento mais alto com o 3.º lugar conquistado, ao
volante de um Ford B8 Especial, no Circuito da Gávea, no Rio de Janeiro
(equivalente à actual Fórmula 1).
Num momento de maior desalento
perante a falta de perspectivas para cumprir a sua principal vocação, admitiu
mesmo, em 1946, em declarações à revista Filmagem, abandonar a actividade do
cinema. Mas o apelo da Sétima Arte continuou a ser mais forte e, em meados da
década de 50, decidiu ir aprender a técnica da cor numa fábrica da Agfa, na
Alemanha. No regresso, pôs em prática o que aprendeu em O Pintor e a Cidade,
percorrendo de novo o seu Porto natal desta vez guiado pelas aguarelas de
António Cruz (o documentário torna-se no primeiro filme a cores realizado em
Portugal).
O realizador terá, no entanto,
de esperar pelo início da década de 60 para conseguir finalmente apoio
institucional para voltar a filmar. Com o subsídio do Estado avança para a
realização de dois filmes, que marcarão essa década do Cinema Novo português:
Acto da Primavera (1962), registo pessoalíssimo, inesperado e contra toda a
iconografia da tradição duma representação popular da Paixão de Cristo, e A
Caça (1963), uma parábola buñuelana – dir-se-á depois – sobre a fragilidade do
Homem perante a Natureza. Em 1963, e após um debate subsequente a uma projecção
de Acto da Primavera no Porto, Oliveira foi detido pela PIDE e passa alguns
dias no Aljube, em Lisboa, onde tem como companheiro de prisão o escritor
Urbano Tavares Rodrigues.
No início da década de 70,
realiza O Passado e o Presente, a partir duma peça de Vicente Sanches, num
filme que volta a confundir e a dividir a crítica e a deixar os espectadores
desconcertados perante o seu olhar irónico e implacável sobre a vida da
burguesia no país.
O 25 de Abril de 1974 apanha
Oliveira a caminho do estúdio para filmar a peça Benilde ou a Virgem-Mãe, de
José Régio, seu amigo e uma espécie de conselheiro intelectual já então
desaparecido, e a cuja obra haveria de voltar mais tarde (O Meu Caso, 1986, e O
Quinto Império – Ontem como Hoje, 2004). E nesses dias de agitação em que toda
a gente, com os cineastas à frente, saíram para a rua a festejar, filmar e fazer
a Revolução, Oliveira persiste em continuar em estúdio para realizar a sua
própria “revolução”: a adaptação cinematográfica – a terceira na história do
cinema português – da obra-prima de Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição
(1978).
Espartilhada entre uma
primeira versão como série televisiva (a preto-e-branco) e uma muito
longa-metragem de mais de quatro horas para as salas, o Amor de Perdição de
Oliveira levava ao extremo a sua filosofia de que o cinema é a fixação da
literatura através do teatro da palavra. O realizador voltou a ser mal recebido
em Portugal, e elogiado em Paris. É este facto que, associado à parceria que, a
partir de Francisca (1981), estabelece com o produtor Paulo Branco, vai fazer
toda a diferença.
O
segundo fôlego
Começa aqui, em simultâneo com a estreia da
sua ligação com a amiga de há muitos anos, a romancista Agustina Bessa-Luís
(autora de Fanny Owen, que estaria na origem de Francisca), o segundo (grande)
fôlego da carreira e da obra do realizador. Desde essa altura, a história é
(mais ou menos) bem conhecida: Oliveira começa a trabalhar à velocidade de um
filme por ano, reincidindo na colaboração criativa (mas nem sempre pacífica)
com Agustina, em alternância com os regressos a Régio e a Camilo (O Dia do
Desespero, 1992).
Vale Abraão (1993), O Convento
(1995) e Party (1996) prosseguem a parceria criativa com Agustina (que chegaria
a nove filmes), reforçam a projecção internacional do cinema de Oliveira e
permitem-lhe contar com grandes figuras do cinema mundial nas suas fichas
artísticas: Catherine Deneuve e John Malkovich (O Convento), mas também Michel
Piccoli (Party, 1996, Vou para Casa, 2001, Belle Toujours, 2007), Marcello
Mastroianni (Viagem ao Princípio do Mundo, 1997), Lima Duarte (Palavra e
Utopia, 2000, Espelho Mágico, 2005), Claudia Cardinale (O Gebo e a Sombra,
2012), entre outros. Sempre ao lado da sua dupla portuguesa de eleição, Luís
Miguel Cintra-Leonor Silveira, além de algumas presenças inesperadas, como a de
Pedro Abrunhosa ele próprio (A Carta, 1998) ou de Maria de Medeiros (Porto da
Minha Infância, 2001).
Estes são os anos da grande
projecção mediática e internacional do realizador português que começou no
tempo do cinema mudo, que somou presenças anuais consecutivas nos principais
festivais de cinema, ora Cannes, ora Veneza (onde “Il Maestro” gozava de uma
popularidade ímpar), mas também de Berlim e de São Paulo. Entra para o Guinness
como o mais velho realizador em actividade em todo o mundo, e mantém esse
estatuto durante anos sucessivos, continuando a realizar e a concretizar
projectos todos os anos, mesmo depois de ter rompido a relação de trabalho com
Paulo Branco, após Espelho Mágico.
Nos intervalos das
longas-metragens, realiza pequenos filmes a convite dos festivais de São Paulo
e de Cannes, respectivamente Do Invisível ao Invisível (2005) e Chacun son
Cinéma: Rencontre Unique (2007), e também documentários para as fundações
Gulbenkian (O Improvável Não É Impossível, 2006) e de Serralves (Painéis de São
Vicente de Fora. Visão Poética, 2010). Até O Velho do Restelo, curta estreada
em Veneza em Setembro do ano passado.
Filmar era a sua forma de
respirar, e os filmes a sua paixão. “É um verdadeiro cedro-do-líbano; só há-de
cair arrancado por uma violenta tempestade, daquelas a que a gente diz que é
impossível resistir”, dele disse o seu amigo vindo do círculo de Régio em Vila
do Conde, o padre e historiador João Marques, também recentemente falecido, na
Póvoa de Varzim.
O cedro-do-líbano finalmente
caiu. Os filmes ficam aí, à espera de novos públicos, mesmo se essa sempre foi
uma relação difícil. Sérgio Andrade –
Portugal in “Jornal
Público”
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