O
Brasil perde oportunidades ao se manter distante do Suriname e da Guiana, seus
vizinhos do norte
Não se ouve um professor de
Geografia tratar do tema, mas a maior ilha marítimo-fluvial do mundo está em
parte no Brasil. Dois países sul-americanos escolherão seus presidentes no
próximo mês, mas nenhum jornal ou analista político brasileiro discutiu o assunto.
É raro aparecer no debate sobre a questão energética que nosso sistema elétrico
nacional seria mais seguro e eficiente se financiássemos a construção de
hidroelétricas em nossos vizinhos caribenhos. Poucos imaginariam que os dois
países que fazem fronteira com o Pará tenham um quarto de suas populações
hinduísta, que a China pagou a reconstrução da chancelaria de um e que o outro
tenha o críquete como esporte nacional.
Ainda que para os brasileiros
Suriname e Guiana pareçam tão distantes como Indonésia ou Botsuana, nossos dois
vizinhos têm-se aproximado fortemente da América do Sul na última década, fruto
de uma convergência política sem precedentes. A vinculação definitiva de ambos
ao subcontinente, porém, depende da concretização de projetos de integração e
do fortalecimento da cooperação.
Além do colonialismo
extemporâneo da França, a independência tardia, alguns litígios fronteiriços,
as relações prioritárias com as antigas metrópoles e com o Caribe e a carência
de infraestrutura marcam o distanciamento da Guiana e do Suriname em relação à
Venezuela e ao Brasil e atravancam a integração do centro-norte da América do
Sul.
Guiana e Suriname são o centro
da Ilha das Guianas, território único que conforma a maior ilha
marítimo-fluvial do planeta, cuja integração de infraestrutura é muito
deficiente e nunca foi planejada em conjunto. Localizada no norte da América do
Sul, é, ao mesmo tempo, atlântica, caribenha e amazônica, tendo como principais
demarcações os dois principais rios do norte da América do Sul, o Amazonas e o
Orinoco, e a interconexão natural entre eles pelo canal Cassiquiare e o rio
Negro; sua parte setentrional é dividida ao meio pelo rio Essequibo. Além de Suriname
e Guiana, esse território é compartilhado por Brasil – pelos estados de Amapá,
Roraima e a calha norte do Amazonas de todo o estado do Pará e do Amazonas até
o rio Negro –, Venezuela – estados de Delta Amacuro, Bolívar e Amazonas – e a
França – território ultramarino da Guiana. Conforma uma área de 1,7 milhão de
km² e quase sete milhões de habitantes, considerando as localidades limítrofes,
com cidades industriais como Manaus, Puerto Ordaz e Linden, além de polos
regionais como Boa Vista, Macapá, Caiena, Puerto Ayacucho e São Gabriel da
Cachoeira.
Na Ilha das Guianas há um
enorme potencial hidroelétrico com épocas de incidência de chuvas
complementares (opostas) às da calha sul do rio Amazonas, onde estão as
principais usinas brasileiras na Amazônia, como Belo Monte, Tucuruí, Jirau e
Santo Antônio. O desenvolvimento desse potencial e a interligação dos sistemas
de transmissão de energia garantiriam, ao mesmo tempo, mais segurança
energética para o Brasil e, por meio de energia segura e mais barata, competitividade
às economias de Guiana e Suriname.
A necessidade de financiamento
das hidroelétricas na Guiana e no Suriname superariam alguns anos da produção
interna total de ambos os países. A única garantia que poderia viabilizar o
projeto é a própria compra da energia e só o Brasil e, parcialmente, a
Venezuela poderiam comprá-la. A garantia do fornecimento de energia também
poderia financiar a pavimentação da estrada que liga o centro econômico do país
ao Brasil (Linden-Lethem) e a construção de um porto de águas profundas.
Idealmente, se concretizaria um anel, conhecido como Arco Norte - tema de
Sessão Extraordinária da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do
Senado Federal em 21 de novembro de 2013 -, de geração e transmissão elétrica em
toda a Ilha das Guianas, conectado aos sistemas nacionais do Brasil e da
Venezuela, e também rodoviário ligando Roraima ao Amapá.
Hoje a Guiana tem uma das três
energias mais caras entre os mais de trinta países da América Latina e do
Caribe. Esse é o desafio à geração de empregos no país que tem metade de seus
nacionais vivendo no exterior, principalmente na América do Norte. Cerca de 40%
do PIB da Guiana é oriundo de remessas internacionais.
Projetos na área energética
foram decisivos para a integração do Brasil com o Paraguai, a Argentina e a
Bolívia. A construção de Itaipu vinculou o Paraguai ao Paraná, o Gasbol tornou
o Brasil o maior parceiro comercial da Bolívia tanto nas importações como nas
exportações. Nos dois casos, a renegociação dos contratos na última década
garantiu mais recursos aos países vizinhos e o Brasil continua comprando
energia significativamente abaixo dos preços na Europa ou em outras regiões. O
programa nuclear conjunto entre Brasil e Argentina foi decisivo para o
distensionamento das relações entre ambos, que levou à criação do Mercosul.
Antes desses projetos o Brasil não era o principal parceiro econômico,
comercial ou político de nenhum desses três países.
A Venezuela já utiliza a maior
parte de seu potencial hídrico de geração de energia. Essa fonte renovável
respondia em 2000 por 70% da matriz elétrica do país e hoje corresponde a 50%.
O contencioso territorial entre Venezuela e Guiana, em tese, poderia ser
amenizado se fossem viabilizados projetos regionais conjuntos na área
energética.
Roraima seria o estado
brasileiro mais beneficiado pela integração da Ilha das Guianas. Hoje metade
dos trabalhadores formais do estado são funcionários públicos, não pela
excelência do serviço prestado, mas pela falta de alternativa econômica. O
estado tem uma das energias mais caras do país e os altos custos logísticos
tiram sua competitividade agrícola e industrial. Ainda que Boa Vista esteja a
apenas 600 km litoral, não há estrada pavimentada que a conecte com o Caribe
guianense, nem porto de águas profundas ao chegar lá.
Em grande medida, o movimento
migratório responsável pela formação de Roraima terminou por levar 50 mil
brasileiros à Guiana, Suriname e Guiana Francesa. A política brasileira de
colonização da Amazônia nos anos 1960 e 1970 atraiu centenas de milhares de
migrantes, particularmente das regiões mais pobres do Nordeste. O fracasso dos
projetos agrícolas e a abundância de recursos minerais no escudo guianense
atraíram muitos brasileiros cujos antepassados estavam majoritariamente no
Maranhão e no Ceará ao antigo território de Roraima.
A repressão ao garimpo ilegal
após a redemocratização do Brasil e a falta de alternativas econômicas na
região estimulou a migração para a Venezuela no início dos anos 1990. Os
efeitos colaterais negativos dessa migração estimularam a definição de uma
agenda de integração entre os dois países formalizada no Protocolo de La
Guzmania, em 1994. Ainda que o documento tenha sido a base para a interconexão
elétrica e a pavimentação completa das rodovias que ligam o norte do Brasil ao
sul da Venezuela, a repressão aos garimpeiros brasileiros na Venezuela foi
ampliada e muitos foram para o interior das guianas.
Já percorri todos os estados
do Brasil e desconheço brasileiros vivendo em condições tão difíceis como os
que encontrei no interior da Guiana e do Suriname ou ao cruzar a Guiana
Francesa. Não há acesso à segurança, educação ou saúde pública, e eles são
vistos como um problema por trabalharem na informalidade em atividades que são
associadas à ilegalidade, como a exploração sexual e o contrabando. Nunca houve
políticas públicas adequadas para esses brasileiros.
A República Cooperativista da
Guiana e a República do Suriname correspondem hoje, desconsiderando os litígios
territoriais, a 2,1% do território da América do Sul, a apenas 0,45% de nossa
população e apresentam IDH (índice de desenvolvimento humano) abaixo da média
regional. Historicamente vinculados à Grã-Bretanha e à Holanda, formam a porção
não latina do subcontinente. Ambos pertencem à Comunidade do Caribe (Caricom) e
à Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA, que nasceu para se opor
às teses de internacionalização da Amazônia, mas nunca formulou sobre o
planejamento ou financiamento da integração) e, no século XX, não participaram
das principais iniciativas regionais de integração Sul-Americana, como a
Comunidade Andina (CAN) e o Mercado Comum do Sul (Mercosul).
O marco da inflexão dos dois
países rumo à América do Sul foi a participação na Cúpula de Brasília de 2000;
a aproximação foi confirmada na Cúpula de Cuzco em 2004 e vem sendo consolidada
a partir da configuração da Unasul, em 2008, e da adesão de ambos como membros
associados ao Mercosul, em 2013. Identificavam-se como caribenhos e amazônicos,
mas só recentemente passaram a se ver como sul-americanos. O período coincide
com uma maior preocupação da política externa do Brasil em relação ao Caribe,
vide a criação da Comunidade de Estados da América Latina e do Caribe (Celac).
Ainda que as bases para a
aproximação política estejam dadas, a precariedade da infraestrutura limita
muito a integração econômica. Hoje inexistem cadeias produtivas articuladas e o
comércio é de baixa intensidade. Os principais parceiros comerciais da Guiana
são Canadá, Estados Unidos, China, Reino Unido e Trinidad e Tobago e do
Suriname são os Estado Unidos, Canadá, Holanda, China e Noruega. Diferente do
que ocorre em relação a outros países da América do Sul, o Brasil é um parceiro
comercial secundário para Guiana e Suriname, fornecendo apenas 4% das
importações totais do Suriname e 2% das da Guiana; as exportações de ambos para
o Brasil e o comércio de ambos com a Venezuela e os outros países da região são
estatisticamente desprezíveis.
A integração da América do Sul
tem-se apresentado como prioridade dos governos da região. Brasil e Venezuela
foram protagonistas da criação da Unasul e da Celac. O presidente Ronald
Ramotar, da Guiana, tem apresentado a pavimentação da estrada Linden-Lethem
como a prioridade para o país e o presidente Desiré Bouterse, do Suriname, tem
procurado afastar-se da dependência política em relação à Holanda e se
aproximar da América do Sul, já em seu discurso de posse se referiu mais de 20
vezes ao Brasil. Nenhum presidente da Guiana foi tanto à Venezuela como Ramotar
e nenhum do Suriname veio tanto ao Brasil como Bouterse.
Em 11 de maio haverá eleições
gerais na Guiana e duas semanas depois no Suriname. A novidade é que a Unasul
enviará missões técnicas de observação para acompanhar ambos os processos. A
agenda de integração sul-americana é bastante vinculada aos atuais mandatários,
mas conta com apoio explícito dos diferentes grupos políticos nos dois países.
A conjuntura política favorável apresenta-se como uma grande oportunidade para
a Unasul concretizar a associação definitiva dos dois países à América do Sul,
incluindo a Ilha das Guianas no planejamento da integração da infraestrutura
amazônica e articulando as formas de viabilizar o financiamento dos projetos
necessários. Pedro Barros – Brasil in “Carta
Capital”
Pedro
Silva Barros é técnico de planejamento e pesquisa do Ipea,
professor do Departamento de Economia da PUC-SP e integrante do Grupo de
Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.
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