Foi identificado pela
primeira vez em 1887, mas foram precisos 127 anos para que se chegar à
conclusão de que é uma nova espécie. O musaranho-fingui acaba de nascer
oficialmente, nas páginas de uma revista científica.
Passava já quase uma semana
desde a sua chegada à ilha do Príncipe e as armadilhas colocadas nos pontos
mais estratégicos ainda não tinham dado qualquer resultado. “Metemos as
armadilhas todas nos sítios perfeitos para aquele animal e zero. Nada! É
engraçado que as populações estavam bastante interessadas em ajudar e insistiam
até para que puséssemos as armadilhas nas suas casas”, conta Luís Ceríaco,
biólogo e curador-adjunto de herpetologia do Museu Nacional de História Natural
e da Ciência (Muhnac), em Lisboa. “Dei por mim, de facto, por baixo das camas e
das mesas das casas das pessoas a meter as armadilhas. Mas zero, não deram em
nada.”
Foi então, em Março de 2013,
durante uma caminhada de manhã cedo numa estrada de terra batida a caminho do
Pico Papagaio no Parque Nacional do Ôbo – o pico mais próximo da cidade de
Santo António do Príncipe, de floresta cerrada –, que a equipa liderada por
Luís Ceríaco apanhou finalmente o primeiro exemplar de um musaranho procurado
há mais de um século.
“No total, apanhámos quatro
exemplares, e sempre muito perto das populações, o que nos deixou a ideia de
que é um animal que aproveita muito a proximidade ao ser humano para o alimento
e tudo mais.”
Crocidura fingui, ou
musaranho-fingui, é agora o mamífero insectívoro mais recente a ser reconhecido
pela comunidade científica. Identificado e descrito por uma equipa de biólogos
portugueses (do Muhnac e da Universidade de Évora) e franceses (do Museu de
História Natural de Paris, ou MNHN), é uma espécie exclusiva da ilha do
Príncipe, recentemente classificada como Reserva Mundial da Biosfera da UNESCO.
Foi no âmbito do seu doutoramento
na Universidade de Évora – dedicado à história da zoologia dos séculos XVIII,
XIX e XX – que Luís Ceríaco encontrou no arquivo histórico do Muhnac uma carta
de Francisco Newton, zoólogo e investigador português, responsável pela
exploração das colónias portuguesas do Golfo da Guiné na segunda metade do
século XIX, a mando do então director da secção zoológica do Museu Nacional de
Lisboa (hoje Muhnac), José Vicente Barbosa du Bocage. “Por este paquete mando
seis caixas, contendo aves, répteis, insectos e várias outras coisas. Vai um
exemplar de um rato insectívoro que me parece novo, duas rãs, duas aves e dois
morcegos”, lê-se na carta datada de 12 de Agosto de 1887.
Apesar da sugestão inicial
de Francisco Newton, esta espécie foi primeiro confundida com a espécie
existente na ilha de São Tomé (Crocidura thomensis), também colectada por
Francisco Newton e descrita por José Vicente Barbosa du Bocage. Já no início do
século XX, numa altura em que as revoluções da Primeira República tomaram
grandes proporções, o Museu Nacional de Lisboa foi alvo de uma granada, que
destruiu uma das alas de zoologia. Perdeu-se então, entre outros, o único
exemplar do musaranho conservado até então – aquele que tinha sido capturado
por Francisco Newton.
Só em 1964, durante uma
expedição organizada pelo MNHN de Paris ao Golfo da Guiné, é que se conseguiram
apanhar exemplares em São Tomé e no Príncipe. Com base em diferenças
morfológicas, a espécie do Príncipe foi então classificada como Crocidura
poensis, a mesma de um outro musaranho existente na ilha do Bioco e que é uma
das espécies mais comuns destes mamíferos semelhantes a um rato no Golfo da
Guiné. E assim ficou classificado o musaranho da ilha do Príncipe até ao início
do século XXI.
Nos últimos dez anos,
expedições de equipas da Academia de Ciências da Califórnia, nos Estados
Unidos, permitiram apanhar exemplares juvenis, levando à conclusão, através de
análises de ADN, de que o musaranho poderia, na realidade, ser uma espécie nova
para a ciência.
No caso de Luís Ceríaco, ele
deslocou-se à ilha em Fevereiro de 2013, a convite do governador-geral autónomo
do Príncipe, de início com um objectivo muito diferente: “Tínhamos a ideia de
montar lá um pequeno museu, pelo que fui fazer uma apresentação e falar do que
é um museu.” Era um projecto maior do que o museu de história natural Lisboa,
numa ilha com pouco mais de 6000 habitantes, e que acabou por ser inviável.
“Ficou tudo em standby, o museu não deu em nada e eu comecei logo as visitas ao
campo.”
Feita a apresentação do
projecto do museu, Luís Ceríaco aproveitou assim o tempo livre que ainda tinha
no Príncipe e foi várias vezes ao campo. Afinal, tinha-se cruzado com a
referência a um mamífero insectívoro que parecia novo a Francisco Newton. Será
que existia mesmo?
Fingui, ou pequeno rato em
crioulo
Acompanhado de imagens de
musaranhos, Luís Ceríaco foi perguntando à população local por um “ratinho”
semelhante ao que ia mostrando em fotografias e ilustrações. “Não podia dizer
que era um musaranho insectívoro, porque as pessoas não sabem o que é um
insectívoro. Tem de se ir ao encontro do que as pessoas conhecem.”
As respostas foram muito
positivas: “Sim, há muitos desses animais por aqui”, diziam-lhe as pessoas. “E
como se chama?”, perguntava-lhes o investigador. “É o fingui”, responderam-lhe.
Fingui, termo em crioulo
para rato pequeno, é o nome pelo qual as populações locais conhecem o animal, e
foi a primeira pista que Luís Ceríaco e a equipa conseguiram obter no campo
sobre esta espécie. Um mês depois dessa primeira visita, Luís Ceríaco voltou
novamente à ilha do Príncipe com o intuito específico de localizar e estudar a
espécie. Numa semana, acabou por capturar os quatro exemplares já mencionados
do pequeno mamífero.
Feitas as análises
moleculares e morfológicas, tanto externas e internas, e pela comparação com
dezenas de exemplares de espécies próximas guardados no MNHN de Paris, a equipa
acabou por identificar e descrever esta nova espécie, num artigo publicado no
último número da revista científica Mammalia, de Março.
A descrição de um novo
musaranho é um acontecimento cada vez mais raro e vem alertar para a urgência
de estudos sistemáticos que possam conduzir à identificação de espécies novas
para a ciência. “Há menos fundos, mas cada vez se faz mais, porque estamos numa
crise de biodiversidade tremenda e arriscamo-nos a que as espécies se extingam
antes sequer que as conhecermos”, diz Luís Ceríaco.
Como fingui é o nome local
deste musaranho, os cientistas decidiram escolher Crocidura fingui para o seu
nome científico, sendo o segundo nome (a designação específica) igual ao usado
pelas pessoas. “Decidimos adoptar um nome científico próximo daquele que é
conhecido e utilizado pela população do Príncipe”, refere Luís Ceríaco.
Este musaranho de pêlo
castanho-escuro é descrito como tendo médio porte. O comprimento da cabeça e do
corpo é entre sete e dez centímetros, aproximadamente. A cauda é fina e
acastanhada, as orelhas, cinzentas e nuas, são proeminentes. E o focinho, de
ponta bifurcada e rosa-amarelado, tem vários pêlos longos.
“Externamente, o Crocidura
thomensis é significativamente maior e apresenta uma cauda mais longa e mais
robusta do que a espécie do Príncipe”, lê-se no artigo na revista Mammalia.
“Para mais, existem diferenças no que respeita à pigmentação das patas e dos
dedos (rosa no Crocidura thomensis e castanho escuro no da ilha do Príncipe), e
na coloração do pêlo (cinzento versus castanho-escuro)”. Em relação ao
Crocidura poensis, a outra espécie no Golfo da Guiné, as diferenças mais
significativas encontram-se a nível molecular.
Quanto à distribuição do
musaranho-fingui, é restrita à ilha do Príncipe. Mais: apenas é conhecido na
parte Norte da ilha. É uma espécie que se encontra “com muita frequência perto
de construções humanas, mas também em áreas semi-abertas e em cursos de água”,
escrevem os investigadores no artigo. De acordo com a população local, “é muito
comum em antigas plantações de bananas, dentro de casas e perto de afloramentos
rochosos”.
Nesta ilha, a natureza é uma
das suas maiores relíquias, principalmente as espécies endémicas (únicas da
ilha), que em proporção chegam a ser tantas ou mais do que as existentes em
Madagáscar, conhecida pela sua biodiversidade. Por isso mesmo, este estudo vem
também dar mais visibilidade à ilha do Príncipe.
Luís Ceríaco sublinha ainda
a importância dos museus e das colecções para estes estudos, pois as
potencialidades que apresentam actualmente são muito maiores do que aquelas que
os colectores de outros tempos sonharam sequer que poderiam ter. Sem as
colecções, quer de exemplares quer de manuscritos e arquivos armazenados nos
museus, não teria sido possível perceber que esta espécie ainda estava por
identificar nem tão-pouco compará-la às que já tinham sido descritas.
Esta descoberta abre portas
a estudos não só da ecologia e história natural do musaranho-fingui, como
também de outras espécies endémicas das ilhas de São Tomé e Príncipe, de
padrões biogeográficos ou de fenómenos de aparecimento de novas espécies e colonização
das ilhas, tema particularmente importante em estudos de evolução e origem das
espécies.
“Agora o passo seguinte será
o estudo ecológico e a história natural desta espécie, ou seja, do que é que se
alimenta [exactamente], qual o seu estilo de vida, qual o seu ciclo reprodutor,
onde é que ocorre e em que números.” Patrícia
Pires – Portugal in “Jornal Público”
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