I
Em 1994, à época que
desenvolvia pesquisas sobre a vida e a obra do poeta Tomás Antônio Gonzaga
(1744-1810), deparava-me frequentemente na sala de leitura da Biblioteca
Nacional de Lisboa (BNL) com um colega de pesquisas que se destacava porque
estava sempre trajado com uma guayabera ou slack, espécie de farda de mangas
curtas, que se veste por cima das calças, muito usada na região do Caribe e
popularizada no Brasil, na década de 1960, pelo presidente Jânio Quadros
(1917-1992).
Foi preciso, no entanto, a
coincidência de uma viagem num domingo numa caminhoneta de Lisboa para Abrantes
para que nos aproximássemos. Como não poderia faltar numa conversa entre
pesquisadores, quis saber o que tanto pesquisava. Ele me respondeu: – Camilo.
Como à época eu acabara de escrever um ensaio intitulado “O poema de forma
livre: Oito Elegias Chinesas, de Camilo Pessanha”, que seria publicado na
Revista Vértice, de Lisboa, nº 65, março-abril de 1995, acrescentei de supetão:
– Camilo Pessanha... E ele respondeu: – Não, o outro. Só mais tarde é que eu
descobriria que, em Portugal, só Camilo se refere sempre a Camilo Castelo
Branco (1825-1890). Já Camilo Pessanha (1867-1926) exige sempre que se
acrescente o sobrenome para identificá-lo. Nos dias seguintes, quando
cruzávamo-nos nos corredores da sala de leitura da BNL, ele sempre me
recomendava: – Não deixe de estudar também Camilo, o outro, dizia, sorrindo,
com ironia.
Só agora, vinte e um anos
depois daqueles encontros rápidos e acidentais, em meio a jornais e papéis
amarelecidos, reencontro o espírito daquele velho pesquisador da BNL – até
porque a nossa alma sempre fica impregnada naquilo que escrevemos –, ao ler
Futilidade da novela: a revolução romanesca de Camilo Castelo Branco (Campinas,
Editora da Unicamp, 2012), em que o seu autor, o professor Abel Barros Baptista
(1955), cita largamente Alexandre Cabral (1917-1996), com certeza, o maior
pesquisador da obra e da vida do grande romancista português, autor de
Dicionário de Camilo (Lisboa, Editora Caminho, 1989) e outros tantos livros
sobre a obra camiliana.
II
Em Futilidade da novela,
título que tirou de uma observação de Camilo que consta do prefácio que
escreveu para Amor de perdição (1879) e que serve de epígrafe, Abel Barros
Baptista reúne ensaios produzidos ao longo de sua vida de estudioso da obra
camiliana em que procurou mostrar que o autor teve “uma visão mais ampla e mais
moderna” do romance que a de Eça de Queiroz (1845-1900), ao romper com “os
pilares da noção de romance que se imputa à forma queirosiana”. E que é falsa a noção de etapa de imaturidade
atribuída a Camilo, argumentando que, na verdade, foi ele quem fez uma
revolução no romance português, a que chama de revolução camiliana.
É no capítulo 4, “Da prática –
guerrilha e nome próprio” – que Baptista se detém mais tempo em Alexandre
Cabral, a quem atribui o primeiro esforço de explicar segundo um princípio de
coerência a dimensão do trabalho de Camilo, ao defender a tese da “noção de
profissionalismo” do romancista, que consta do prefácio para o segundo volume
de As polêmicas de Camilo (1962-1970, reeditado em 1981-1982). Para Cabral, se
muitas vezes, aos olhos de hoje, Camilo aparece como um oportunista ou
mercenário das letras, pode-se atribuir essa noção à ideia de profissionalismo
que ele assumia, ao trabalhar em periódicos e passar a defender os argumentos
do proprietário da publicação.
É o que se dá hoje com os
jornalistas profissionais que, por uma questão de sobrevivência, assumem-se
como ghost writers de políticos e empresários ou mesmo aqueles que escrevem os
editoriais dos jornais que assumem posições que, em seu íntimo, não assumiriam.
É por isso que, como dizia Cabral, Camilo pode aparecer, muitas vezes, como
“escritor católico, miguelista, constitucional etc. etc., até ao extremo de se
confessar ateu”. Para Cabral, “Camilo era, a seu modo, aquilo que eram os seus
amigos de ocasião e refletia-se em si a ideologia dos jornais em que trabalhava
profissionalmente”.
Para Baptista, essa “noção de
profissionalismo” em Camilo não deve ser vista como uma mancha na carreira do
escritor nem serve para concluir que “a sua importante obra romanesca se fez
apesar dela”. Ou seja, como folhetinista, ele escrevia de acordo com a ocasião,
ou seja, de acordo com a orientação do patrão para o qual trabalhava. Para
Baptista, “se Camilo se diz disponível para escrever romances despóticos,
jesuítas, jasenistas, cabralistas, ou monárquico-representativos, é porque ele
próprio é tudo isso e ao mesmo tempo não é nada disso: paradoxo do romancista,
a juntar ao paradoxo do ator como o entendia Diderot”. Por aqui se vê o que aguarda neste livro o
leitor interessado na obra camiliana.
III
Abel Barros Baptista |
Escreveu, sobretudo, ensaios
no campo específico da literatura portuguesa e brasileira, especialmente sobre
Machado de Assis: A formação do nome. Duas interrogações sobre Machado de Assis
(Lisboa, 1991, Prêmio de Ensaio do Pen Club de Portugal; Editora da Unicamp,
2003); e Autobibliografias. Solicitações do livro na ficção de Machado de Assis
(Lisboa, 1998, Grande Prêmio de Ensaio da APE; Editora da Unicamp, 2003).
Os seus últimos livros são
Coligação de Avulsos. Ensaios de Crítica Literária (Lisboa, 2003), Ensaios
Facetos (Lisboa, 2004), O Livro Agreste. Ensaio de curso de literatura
brasileira (Editora da Unicamp, 2005), e De espécie complicada (Coimbra, 2010).
Desde 1997, é diretor-adjunto da revista Colóquio/Letras. Dirigiu para as
Edições Cotovia, de Lisboa, o Curso Breve de Literatura Brasileira, coleção de
catorze volumes (2005/2006). Adelto
Gonçalves - Brasil
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Futilidade
da novela: a revolução romanesca de Camilo Castelo Branco, de
Abel Barros Baptista. Campinas: Editora da Unicamp, 292 págs., 2012. Site: www.editora.unicamp.br E-mail:
vendas@editora.unicamp.br
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio
Editora, 1981), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho,
2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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