Dedico este artigo a António Valdemar, jornalista, investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-Academia Brasileira de Letras (cadeira nº 3), que tem colaborado intensamente com o Blog de São João del-Rei, divulgando a cultura lusa através de artigos e ensaios amparados em fontes históricas e trazendo da Ilha Delgada sua expertise, inspiração e investigação para deleite dos leitores brasileiros
Há
por toda a Europa um monte de antigas pontes denominadas "pontes do
diabo". Estas pontes foram construídas sob condições tão desafiadoras que
a sua conclusão bem-sucedida exigiu um esforço heroico por parte dos
construtores e da comunidade, garantindo seu status legendário.
É
facto público e notório que as lendas constituem um vasto e fascinante espólio
cultural de Portugal. O Norte português é especialmente rico no que diz
respeito a lendas, numa dança macabra de fantasmas e almas penadas, duendes e
princesas cativas, lobisomens e potes de ouro escondidos.
No
Barroso, são muitas as lendas narradas de geração em geração, mas a mais
conhecida de todas é a da Ponte da Misarela, em que, como em tantos outros
casos acontece, o protagonista é o diabo. Localizada na aldeia de Sidrós, na
freguesia de Ruivães, concelho de Vieira do Minho, distrito de Braga, o cenário
do episódio é a velha ponte em arco com 13 metros de vão, sobre o rio Rabagão,
que serve de fronteira entre os distritos de Braga e Vila Real, e cujas margens
abundantes em penhascos parecem belas a uns e assustadoras a outros, conforme a
imaginação e o estado de espírito do observador.
Para
descrever a Ponte do Diabo de Portugal, socorro-me de um romance histórico
intitulado “O mutilado de Ruivães - Das invasões francesas às lutas civis”, de
Mário Moutinho e A. Sousa e Silva (1980):
“É uma ponte de arquitectura extravagante, louca, de um só arco, com mais de treze metros de vão, lançada com arrojo sobre dois rochedos, onde as águas do Rabagão se estreitam e despedaçam com fragor e saltam a grande altura, transformando-se em vaporosa chuva. O pavimento, abaulado, mede 27 metros de comprimento. Fica no fundo de um desfiladeiro alcantilado, a um quilómetro da confluência do Rabagão com o Cávado. Tão medonho e agreste é o sítio e tão severo o aspecto da ponte, que a vivíssima imaginação do povo não tardou a tecer-lhe lendas.
Diz-se
que um padre, querendo fazer uma pirraça ao Diabo, se disfarçou em salteador
perseguido pelas justiças de Montalegre, e foi certo dia, à meia-noite, àquele
lugar para passar o rio. Como o não pudesse passar, por meio de esconjuros,
invocou o auxílio do Inimigo. Ouve-se um rumor subterrâneo e eis que aparece,
afável e chamejante, o anjo rebelde:
—
'Que queres de mim?' — perguntou ele.
—
'Passa-me para o outro lado e dar-te-ei a minha alma.'
Satanás,
que antegozava já a perdição do sacerdote, estendeu-lhe um pedaço de pergaminho
garatujado e uma pena molhada em saliva negra, dizendo:
—
'Assina!'.
O
padre assinou. O Demónio fez um gesto cabalístico e uma ponte saiu do seio
horrendo das trevas.
O
clérigo passa e, enquanto o diabo esfrega um olho, saca da caldeirinha da água
benta, que escondera debaixo da capa de burel, e asparge com ela a infernal
alvenaria, fazendo o sinal da cruz e pronunciando bem vincadas as palavras do
exorcismo.
Lúcifer,
logrado, deu um berro bestial e desapareceu num boqueirão aberto na rocha, por
onde saíram línguas de fogo, estrondos vulcânicos e fumos pestilenciais.
O
vulgo das redondezas, na sua ignorância e ingenuidade, e não sabemos a origem,
aproveita-se da ponte para ali exercer um rito singular.
Quando
uma mulher, decorridos que sejam dezoito meses após o seu enlace matrimonial,
não houver concebido, ou, quando pejada, se prevê um parto difícil ou perigoso,
não tem mais que ir à Misarela, à noite, para obter um feliz sucesso. Ali, com
o marido e outros familiares, espera que passe o primeiro viandante. Este é
então convidado para proceder à cerimónia, a qual consiste no baptismo in
ventris do novo ou futuro ser. Para isso, o caminhante colhe, por meio de uma
comprida corda com um vaso adaptado a uma das extremidades, um pouco de água do
rio e com a mão em concha deita-a no ventre da paciente por um pequeno rasgão
aberto no vestuário para este efeito, acompanhando a oração com a seguinte
ladainha:
Eu
te baptizo
criatura
de Deus,
Pelo
poder de Deus,
e
da Virgem Maria.
Se
for rapaz, será Gervaz;
se
for rapariga, será Senhorinha.
Pelo
poder de Deus e da Virgem Maria,
um
Padre-Nosso e uma Ave-Maria.
O
barulhar iracundo da cachoeira no abismo imprime a estas cenas um cunho de
tétrica magia.
Segue-se
depois uma lauta ceia, assistindo, geralmente, o improvisado padrinho. E o
êxito é completo: um neófito virá alegrar a família.
Claro
que, se na primeira noite não passar o viandante desejado, a viagem à Misarela
repetir-se-á até o cerimonial se realizar nas condições devidas.
De
um dos lados ergue-se um enorme rochedo que o povo denominou 'Púlpito do
Diabo', por crer que o Demo vai ali pregar à meia-noite, quando as bruxas das
redondezas se reúnem em magno concílio...”
Ouçamos
também um estudioso local da estrutura da lenda, [FRADE, 2017], que analisa
quais elementos entraram na sua constituição que, a seu ver, explicam o porquê
da lenda em si e do rito que se firmou (em sua opinião, a lenda dos
baptismos nocturnos), transformando a ponte num portento para a população
local que começou a ver naquelas águas uma cura para gravidezes difíceis.
Segundo ele,
“Ambas
as lendas contam com um elemento de transição. Numa, o destaque vai para a
ponte, e uma ponte é sempre um sítio de transgressão, de passagem para o outro
lado, que é conotado como uma acção de provação. Noutra, sobressai a água,
adicionando-lhe outro elemento de passagem, a meia-noite, que no fundo é uma
nova ponte, neste caso entre um dia que acaba e outro que começa. A água,
enquanto elemento fundador, é objecto de adoração pelo homem, que lhe foi
entregando deuses de toda a espécie, conforme esteja ela em forma de mar, ou de
rio, ou de fonte, ou de qualquer outra.
Parece haver uma confluência de ritos misteriosos e de
origem pagã que a igreja, por não obedecerem ao dogma estabelecido, certamente
desaprovou ou tentou integrá-los numa nova ordem. É sabido que o simbolismo das
pontes foi assimilado por ela — bastará lembrar a palavra pontífice, que
significa construtor de pontes, e atribuída ao Papa como sumo pontífice. O
mesmo para a água, introduzida na igreja enquanto via para o baptismo.
Na realidade, o que aqui vemos são antiquíssimos cultos à
água modernizados por olhar católico. Poderá a imposição do Diabo a esta obra
ter sido uma invenção bispal para afastar o povo de ritos hereges? Pode, claro.
Mas, como aconteceu em variadíssimos exemplos, não teve o resultado esperado.” Francisco Braga – Brasil in “Blog do Braga”
Bibliografia:
BASTOS, Jorge: Ponte
da Misarela - Lendas, histórias e como ir, sítio Portugalthings.com
Ligação: https://www.portugalthings.com/pt/ponte-da-misarela-lendas-historia-e-como-ir/
BOTELHO, Fernanda: O
Mutilado de Ruivães - Recensão (elaborada em 1986 para a Fundação Calouste
Golbenkian), 27 de janeiro de 2013
Ligação: https://www.ruivaes.com/2013/01/o-mutilado-de-ruivaes-recensao.html
FRADE, Ricardo Braz: Ponte
da Misarela, sítio www.portugalnummapa.com, 16 de janeiro de 2017.
Ligação: https://www.portugalnummapa.com/ponte-da-misarela/#google_vignette
GERES - Serra do
Geres: Ponte do Diabo, sítio serradogeres.com
Ligação: https://serradogeres.com/index.php/locais-paisagisticos/ponte-do-diabo
MOUTINHO, Mário
& SOUSA E SILVA, A.: "O mutilado de Ruivães - Das invasões
francesas às lutas civis", Braga, 1980, 362 p.
SILVA, Fernando: Sobre
"O Mutilado de Ruivães", sítio www.vilaruivaes.com, 16 de junho
de 2006
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