Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Portugal - A “ponte do diabo”

Dedico este artigo a António Valdemar, jornalista, investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-Academia Brasileira de Letras (cadeira nº 3), que tem colaborado intensamente com o Blog de São João del-Rei, divulgando a cultura lusa através de artigos e ensaios amparados em fontes históricas e trazendo da Ilha Delgada sua expertise, inspiração e investigação para deleite dos leitores brasileiros


Há por toda a Europa um monte de antigas pontes denominadas "pontes do diabo". Estas pontes foram construídas sob condições tão desafiadoras que a sua conclusão bem-sucedida exigiu um esforço heroico por parte dos construtores e da comunidade, garantindo seu status legendário.

É facto público e notório que as lendas constituem um vasto e fascinante espólio cultural de Portugal. O Norte português é especialmente rico no que diz respeito a lendas, numa dança macabra de fantasmas e almas penadas, duendes e princesas cativas, lobisomens e potes de ouro escondidos.

No Barroso, são muitas as lendas narradas de geração em geração, mas a mais conhecida de todas é a da Ponte da Misarela, em que, como em tantos outros casos acontece, o protagonista é o diabo. Localizada na aldeia de Sidrós, na freguesia de Ruivães, concelho de Vieira do Minho, distrito de Braga, o cenário do episódio é a velha ponte em arco com 13 metros de vão, sobre o rio Rabagão, que serve de fronteira entre os distritos de Braga e Vila Real, e cujas margens abundantes em penhascos parecem belas a uns e assustadoras a outros, conforme a imaginação e o estado de espírito do observador.

Para descrever a Ponte do Diabo de Portugal, socorro-me de um romance histórico intitulado “O mutilado de Ruivães - Das invasões francesas às lutas civis”, de Mário Moutinho e A. Sousa e Silva (1980):

“É uma ponte de arquitectura extravagante, louca, de um só arco, com mais de treze metros de vão, lançada com arrojo sobre dois rochedos, onde as águas do Rabagão se estreitam e despedaçam com fragor e saltam a grande altura, transformando-se em vaporosa chuva. O pavimento, abaulado, mede 27 metros de comprimento. Fica no fundo de um desfiladeiro alcantilado, a um quilómetro da confluência do Rabagão com o Cávado. Tão medonho e agreste é o sítio e tão severo o aspecto da ponte, que a vivíssima imaginação do povo não tardou a tecer-lhe lendas.

Diz-se que um padre, querendo fazer uma pirraça ao Diabo, se disfarçou em salteador perseguido pelas justiças de Montalegre, e foi certo dia, à meia-noite, àquele lugar para passar o rio. Como o não pudesse passar, por meio de esconjuros, invocou o auxílio do Inimigo. Ouve-se um rumor subterrâneo e eis que aparece, afável e chamejante, o anjo rebelde:

— 'Que queres de mim?' — perguntou ele.

— 'Passa-me para o outro lado e dar-te-ei a minha alma.'

Satanás, que antegozava já a perdição do sacerdote, estendeu-lhe um pedaço de pergaminho garatujado e uma pena molhada em saliva negra, dizendo:

— 'Assina!'.

O padre assinou. O Demónio fez um gesto cabalístico e uma ponte saiu do seio horrendo das trevas.

O clérigo passa e, enquanto o diabo esfrega um olho, saca da caldeirinha da água benta, que escondera debaixo da capa de burel, e asparge com ela a infernal alvenaria, fazendo o sinal da cruz e pronunciando bem vincadas as palavras do exorcismo.

Lúcifer, logrado, deu um berro bestial e desapareceu num boqueirão aberto na rocha, por onde saíram línguas de fogo, estrondos vulcânicos e fumos pestilenciais.

O vulgo das redondezas, na sua ignorância e ingenuidade, e não sabemos a origem, aproveita-se da ponte para ali exercer um rito singular.

Quando uma mulher, decorridos que sejam dezoito meses após o seu enlace matrimonial, não houver concebido, ou, quando pejada, se prevê um parto difícil ou perigoso, não tem mais que ir à Misarela, à noite, para obter um feliz sucesso. Ali, com o marido e outros familiares, espera que passe o primeiro viandante. Este é então convidado para proceder à cerimónia, a qual consiste no baptismo in ventris do novo ou futuro ser. Para isso, o caminhante colhe, por meio de uma comprida corda com um vaso adaptado a uma das extremidades, um pouco de água do rio e com a mão em concha deita-a no ventre da paciente por um pequeno rasgão aberto no vestuário para este efeito, acompanhando a oração com a seguinte ladainha:

Eu te baptizo

criatura de Deus,

Pelo poder de Deus,

e da Virgem Maria.

Se for rapaz, será Gervaz;

se for rapariga, será Senhorinha.

Pelo poder de Deus e da Virgem Maria,

um Padre-Nosso e uma Ave-Maria.

O barulhar iracundo da cachoeira no abismo imprime a estas cenas um cunho de tétrica magia.

Segue-se depois uma lauta ceia, assistindo, geralmente, o improvisado padrinho. E o êxito é completo: um neófito virá alegrar a família.

Claro que, se na primeira noite não passar o viandante desejado, a viagem à Misarela repetir-se-á até o cerimonial se realizar nas condições devidas.

De um dos lados ergue-se um enorme rochedo que o povo denominou 'Púlpito do Diabo', por crer que o Demo vai ali pregar à meia-noite, quando as bruxas das redondezas se reúnem em magno concílio...”

Ouçamos também um estudioso local da estrutura da lenda, [FRADE, 2017], que analisa quais elementos entraram na sua constituição que, a seu ver, explicam o porquê da lenda em si e do rito que se firmou (em sua opinião, a lenda dos baptismos nocturnos), transformando a ponte num portento para a população local que começou a ver naquelas águas uma cura para gravidezes difíceis. Segundo ele,

Ambas as lendas contam com um elemento de transição. Numa, o destaque vai para a ponte, e uma ponte é sempre um sítio de transgressão, de passagem para o outro lado, que é conotado como uma acção de provação. Noutra, sobressai a água, adicionando-lhe outro elemento de passagem, a meia-noite, que no fundo é uma nova ponte, neste caso entre um dia que acaba e outro que começa. A água, enquanto elemento fundador, é objecto de adoração pelo homem, que lhe foi entregando deuses de toda a espécie, conforme esteja ela em forma de mar, ou de rio, ou de fonte, ou de qualquer outra.

Parece haver uma confluência de ritos misteriosos e de origem pagã que a igreja, por não obedecerem ao dogma estabelecido, certamente desaprovou ou tentou integrá-los numa nova ordem. É sabido que o simbolismo das pontes foi assimilado por ela — bastará lembrar a palavra pontífice, que significa construtor de pontes, e atribuída ao Papa como sumo pontífice. O mesmo para a água, introduzida na igreja enquanto via para o baptismo.

Na realidade, o que aqui vemos são antiquíssimos cultos à água modernizados por olhar católico. Poderá a imposição do Diabo a esta obra ter sido uma invenção bispal para afastar o povo de ritos hereges? Pode, claro. Mas, como aconteceu em variadíssimos exemplos, não teve o resultado esperado.” Francisco Braga – Brasil in “Blog do Braga”

 

Bibliografia:

BASTOS, Jorge: Ponte da Misarela - Lendas, histórias e como ir, sítio Portugalthings.com

Ligação: https://www.portugalthings.com/pt/ponte-da-misarela-lendas-historia-e-como-ir/

BOTELHO, Fernanda: O Mutilado de Ruivães - Recensão (elaborada em 1986 para a Fundação Calouste Golbenkian), 27 de janeiro de 2013

Ligação: https://www.ruivaes.com/2013/01/o-mutilado-de-ruivaes-recensao.html

FRADE, Ricardo Braz: Ponte da Misarela, sítio www.portugalnummapa.com, 16 de janeiro de 2017.

Ligação: https://www.portugalnummapa.com/ponte-da-misarela/#google_vignette

GERES - Serra do Geres: Ponte do Diabo, sítio serradogeres.com

Ligação: https://serradogeres.com/index.php/locais-paisagisticos/ponte-do-diabo

MOUTINHO, Mário & SOUSA E SILVA, A.: "O mutilado de Ruivães - Das invasões francesas às lutas civis", Braga, 1980, 362 p.

SILVA, Fernando: Sobre "O Mutilado de Ruivães", sítio www.vilaruivaes.com, 16 de junho de 2006

Ligação: https://vilaruivaes.blogs.sapo.pt/12282.html


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