A tradição de oferecer dinheiro no Ano Novo Lunar, para desejar sorte e afastar maus espíritos, tem origem há mais de dois mil anos na China e é mantida por muitos portugueses em Macau
No
momento de entregar um ‘lai-si’ no Ano Novo Lunar, Rui Barbosa e Ana Dias
respeitam o ritual. Manda a tradição que o portador deste pequeno envelope o
faça com as duas mãos. “Sempre que possível com as duas mãos”, diz à Lusa a
portuguesa. “Também sigo as regras da data em que se começa a dar”, observa
Rui.
Os
envelopes ‘lai-si’, como se diz em cantonês (em mandarim é ‘hong bao’), são
distribuídos na China e noutros países do Sudeste Asiático em ocasiões
especiais, como casamentos ou durante o Ano Novo Lunar, que arranca já este
sábado.
Pequenos,
vermelhos – cor auspiciosa – e estampados com caracteres dourados. Esta é a
fisionomia mais comum dos envelopes, que, por esta altura, combinam com as ruas
de Macau, carregadas de lanternas vermelhas ou outras decorações festivas, e
lojas a vender posters com o deus da Fortuna, com mensagens de sorte, ou
peixes, símbolo de abundância na cultura chinesa.
“Os
‘lai-si’ têm especialmente um significado cultural, é uma forma de integração
nos costumes do sítio onde vivemos”, diz Rui Barbosa. A viver há 17 anos no
território, o engenheiro civil nota que na área da construção esta é uma
prática comum, talvez porque muita mão-de-obra seja oriunda da China
continental e aguarde o gesto dos patrões.
Ana
Dias, a trabalhar na área da promoção da língua portuguesa, tem 14 anos de
Macau. Abraçou o costume por respeito às tradições e para “participar
culturalmente na sociedade” em que vive. Admite que para quem tem rendimentos
baixos, este “é um reforço simpático” nas finanças. “Os ‘lai-si’ significam
transmitir votos de desafogo económico – os colegas chineses falam do dinheiro
a circular”, continua.
Ana
deposita notas de 50 ou 100 patacas (5,76 ou 11,52 euros) nos pequenos
envelopes e oferece-os, por exemplo, aos porteiros do prédio onde vive,
empregados de limpeza e filhos de amigos. Já Rui distribui os presentes
monetários na semana a seguir às festividades, já que durante os feriados
muitas pessoas estão fora.
Diz
a tradição que os envelopes devem ser dados por casados a jovens solteiros,
apesar de, hoje em dia, as fronteiras entre o que deve ou não ser feito estarem
cada vez mais esbatidas. O mesmo acontece com a data de entrega, ou até com o
valor ofertado.
Em
Guangdong, a província mais rica do país, onde se inclui Macau, dá-se sobretudo
10 ou 20 yuan (1,3 ou 2,6 euros) e é um acto mais simbólico, refere Wang Yu,
especialista na história cultural da China.
Mas
se subirmos no mapa, em direcção a regiões com economias mais fragilizadas, os
valores podem disparar. O académico do departamento de História da Universidade
de Macau sugere que esta é uma forma de ajudar pessoas com dificuldades ou até
uma questão de estatuto: “Se der muito dinheiro, isso significa que tem
dinheiro, que ganha bem”.
Na
infância deste professor, situada na província de Anhui, no centro-Este do
país, a prática era marcada por um sabor agridoce. “Os meus pais estavam sempre
ansiosos com o Ano Novo, porque tínhamos uma família grande e tinham de dar
muito dinheiro”, recorda. Era assim que o valor coleccionado por Wang acabava
por servir para pagar contas. “A felicidade durava só uma noite”, diz.
Mas
e qual é a origem dos ‘lai-si’? Conta o académico que o hábito popularizou-se
nas últimas dinastias chinesas, Ming (1368-1644) e Qing (1644–1911). No
entanto, a ideia já data do período Han (202 a.C – 9 a.C; 25–220), em que se
ofereciam moedas de metal com inscrições para afastar os maus espíritos.
O
dinheiro adquire um papel central na dinastia Song (960-1279), sendo uma
prática restrita a um grupo próximo do imperador. “A cultura comercial era
muito popular e alguns académicos defendem que, se olharmos para as origens do
capitalismo chinês, estas podem remontar à dinastia Song”, avalia.
Um
hábito que se tem transformado e que procura hoje respostas para a revolução
digital, com aplicações de telemóvel a permitirem que envelopes vermelhos
virtuais cheguem ao outro lado do planeta.
Uma
tradição materialista? Rui Barbosa fala num acto “essencialmente simbólico”, à
imagem do Natal com a oferta de presentes. Ana Dias reflecte: “Simbólico por um
lado, porque muitas pessoas que recebem também dão e vice-versa – a tal ideia
do dinheiro a circular – e materialista, dentro do espírito pragmático chinês
de valorizar o plano económico”.
Já
o artista de Macau Eric Fok defende que este é um método útil para ajudar os
mais novos a desenvolverem o sentido de poupança. E admite que tem uma
preferência pelos envelopes físicos que “permitem o toque, sentir o calor”.
Quem
também não aderiu à tecnologia foi Ana Dias. “Embora sejam mais ecológicos,
parece-me que os ‘lai-si’ virtuais perdem o encanto associado ao ritual”
Nos
últimos sete anos, foram recolhidos 13,69 milhões de envelopes de ‘lai-si’
pelas autoridades locais, com a possibilidade de reutilizar 3,43 milhões, de
acordo com dados da Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental. In “Ponto
Final” - Macau
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