Três académicos da Universidade Politécnica de Macau debruçaram-se sobre a operação de solidariedade promovida pela comunidade chinesa de Macau para apoiar vítimas de um ciclone que fustigou Portugal em 1941. O apoio partiu de instituições como a Associação de Beneficência Tung Sin Tong ou do Hospital Kiang Wu, em parceria com o Governo
Em
Fevereiro de 1941, um poderoso ciclone afectou Portugal e deixou um rasto de
destruição em todo o país, numa altura em que todas as atenções estavam viradas
para as várias frentes de batalha da Segunda Guerra Mundial. Macau, à luz da
neutralidade assumida no conflito pelo Governo de António de Oliveira Salazar,
não estava directamente envolvida na guerra, mas acabou por se tornar num
território de acolhimento para milhares de refugiados chineses que tentavam
escapar à ocupação japonesa de Xangai e Cantão. O êxodo levou a população local
a triplicar, atingindo-se a fasquia de meio milhão de habitantes.
Mesmo
enfrentando uma grave crise social, Macau não deixou de enviar dinheiro para as
vítimas portuguesas do ciclone, como prova a investigação intitulada
“Angariação de Fundos pelos Chineses de Macau para a Reconstrução do Ciclone de
1941 em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial: Perspectiva da Escolha
Pública”, da autoria dos académicos Baoxin Chen, Xi Wang e Kan Chen, da
Universidade Politécnica de Macau (UPM).
A
elite chinesa de Macau da época, em conjunto com o Governador de Macau, Gabriel
Maurício Teixeira, enviou um total de 31075,23 dólares de Hong Kong, o
equivalente a 310752,3 dólares de Hong Kong tendo em conta o câmbio actual,
após uma campanha de angariação de fundos. Entidades como a Associação de
Beneficência Tung Sin Tong e Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu
participaram nestas iniciativas.
Segundo
os autores da investigação, a concessão de donativos por Macau “ilustra a
vontade da elite chinesa e do Governo de Macau de procurar capital político e
poder em resposta à crise [gerada pela] guerra”. Trata-se ainda de um “evento
de caridade diplomática internacional pouco conhecido e que é relevante para as
relações luso-chinesas”, lê-se no artigo.
“Apesar
deste ter sido o momento mais difícil da Segunda Guerra Sino-Japonesa, a elite
chinesa de Macau mobilizou forças sociais e angariou fundos para ajudar na
reconstrução” após a passagem do ciclone, algo que foi “amplamente apoiado e
mereceu a cooperação da população chinesa de Macau”.
Tratou-se
de “uma actividade política civil” que mostra “o comportamento e o processo de
escolha do público no fornecimento e distribuição de bens públicos e na
elaboração de regulamentos adequados a fim de influenciar a escolha da
população e maximizar a utilidade social”. Para os académicos, a campanha de
recolha de donativos constitui um “extraordinário acontecimento histórico da
diplomacia internacional das relações luso-chinesas em tempo de guerra” que
“foi inadvertidamente esquecido”, consideram os autores.
Cartas guardadas
O
estudo foi desenvolvido graças a uma bolsa atribuída pela própria instituição
de ensino e só foi possível devido ao acesso que os investigadores tiveram às
chamadas “Cartas de Crédito”, provas documentais em português e chinês dos
donativos atribuídos, e que estavam à guarda de Luo Jing Xin, coleccionador
ligado à Sociedade de Colecção de Nostalgia de Macau.
Segundo
o artigo científico sobre esta investigação, a primeira parte das “Cartas de
Crédito” está em chinês e conta com 52 páginas, enquanto a segunda parte contém
36 páginas em português. Os autores fizeram ainda uma pesquisa intensiva entre
jornais chineses da época, que relataram este episódio e publicitaram a
campanha de recolha de fundos. Uma cópia destas “Cartas de Crédito” está hoje à
guarda do Centro de Estudos Culturais Sino-Ocidentais da Faculdade de Ciências
Humanas e Sociais da UPM.
Os
investigadores descrevem que os representantes da elite chinesa dirigiram-se ao
Governador assim que souberam da tempestade, apresentando “condolências às
vítimas a fim de mostrarem simpatia em nome do povo chinês”, tendo dito que “os
chineses de Macau estavam dispostos a ajudar as pessoas que tinham ficado sem
casa devido ao ciclone, para que pudessem sentir o calor e a preocupação por
parte da sociedade chinesa do outro lado do mundo”.
Foi
ainda referido por estes representantes da comunidade chinesa que “a angariação
de fundos iria beneficiar os compatriotas portugueses em sofrimento”, além de
proporcionar “às autoridades de Macau uma oportunidade para demostrar a sua
lealdade e capacidade de governação do Governo português”.
Dois meses de recolha
Foi
então criada uma comissão de angariação de fundos depois da aprovação do
Governador Gabriel Teixeira, e publicado no jornal Va Kio, dia 27 de Março de
1941, um artigo onde se descreviam “os enormes prejuízos causados pelo ciclone
em Portugal e a situação de vida das pessoas”. Lia-se, na peça, o seguinte: “O
ciclone varreu todo o território de Portugal. Por onde se passava havia telhas,
árvores e casas destruídas até à ruína, tendo depois seguido [o ciclone]
directamente para a vizinha Espanha”.
Apelava-se
ao ressurgimento do “Grande Espírito Tradicional Chinês, ‘仁義’ (Ren Yi)”, relativo aos sentimentos de benevolência e
rectidão. No artigo apelava-se ainda à ajuda da população, para que a comissão
pudesse “reunir os donativos suficientes para prestar ajuda e apoio necessários
aos que sofrem”.
A
22 de Março de 1941 o comité reuniu pela primeira vez para discutir o formato
da recolha de donativos. O encontro foi presidido pelo presidente da Associação
Comercial de Macau, Ko Ho Ning, com representantes das associações do Hospital
Kiang Wu e da Tung Sin Tong. Foi então criado o “Comité de Ajuda dos Chineses
para a Catástrofe do Ciclone Português”, presidido por Ko Ho Ning.
A
25 de Março organiza-se uma segunda reunião na Associação Comercial, onde se
chegou a um “consenso sobre a estrutura organizacional, o funcionamento e as
questões de implementação da angariação de fundos”. Nesta reunião,
determinou-se que o Banco de Cantão, localizado na Rua Cinco de Outubro, e o
Banco Tung Tak, na avenida Almeida Ribeiro, seriam as principais agências a
guardar os donativos, recolhidos em Outubro e angariados entre 22 de Março e 23
de Maio. Neste processo “os chineses de Macau demonstraram um enorme fervor
filantrópico”, destacam os académicos.
Para
angariar dinheiro, organizaram-se bazares de beneficência, competições
desportivas ou espectáculos de teatro de ópera cantonense, nomeadamente por
parte do Teatro Tai Ping, à época bastante conhecido tanto em Macau como em
Hong Kong.
O
estudo revela que a comunidade chinesa de Macau, “de todos os estratos sociais”
foi “a principal fonte de donativos”, contribuindo com 14.156,94 dólares de
Hong Kong [câmbio da época], o que constituiu cerca de metade do dinheiro
recolhido. Além das associações já referidas, participaram nesta recolha de
fundos “celebridades e comerciantes conhecidos que se refugiaram em Macau
durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa, bem como o Governador de Macau e
funcionários do Governo”. São destacados no estudo donativos de Zhou Yong Neng,
que chefiava a delegação do Kuomitang em Macau, ou Sir Robert Ho Tung.
Esta
campanha de recolha de fundos não tinha apenas objectivos de apoio social, mas
também uma forte mensagem política, “não se tratando de uma mera actividade de
auxílio e de caridade, mas de um acto deliberado com requisitos políticos
específicos”, com diversas implicações.
“Naquela
época eram inseparáveis as relações sociais entre Portugal e Macau e havia o
objectivo comum de proteger Macau”, apesar das diferenças socioculturais entre
portugueses e chineses e o grande distanciamento geográfico.
A
elite chinesa acreditava que “China e Portugal tinham um destino comum ligado
ao desenvolvimento histórico” e, numa altura em que Macau e a comunidade
chinesa enfrentavam os dissabores da guerra, “os dois lados não eram apenas
parceiros a enfrentar uma crise, mas também uma força vital na protecção de uma
pátria comum – Macau”.
Os
investigadores acreditam que esta ideia “permitiu que o evento de angariação de
fundos corresse bem e reunisse mais contributos sociais”, apesar de constituir
“um desafio”.
Segundo
uma reportagem do jornal Público de 12 de Fevereiro do ano passado, que cita o
meteorologista Paulo Pinto, “nunca houve tamanha destruição” em Portugal como a
tempestade registada nesse ano de 1941. Não se sabe ao certo quantas vítimas o
ciclone deixou, mas terão sido mais de uma centena de mortos e centenas de
feridos.
Adélia
Nunes, geógrafa portuguesa e autora de um dos poucos estudos sobre o incidente,
relatou ao jornal que “foi uma situação catastrófica para o país”, tendo o
ciclone atingido também Espanha. Andreia Silva – Macau in “Hoje
Macau”
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