Assim não, senhor Presidente, de Ungulani Ba Ka Khosa, foi a minha última leitura de
2023.
Um
livro surpreendentemente cáustico, um autêntico manifesto. Livro premonitório
de um autor preocupadíssimo com o seu tempo, com o rumo dos acontecimentos em
Moçambique.
As
vozes que se encontram nesta obra de ficção narrativa (bastante porosa, diga-se
de passagem) dialogam, de forma áspera, desencantada e contundente, com as
vozes que transportamos dentro de nós, espicaçando a apatia dos ‘João Merda’ e
‘Catarina Punheta’ desta vida, nomes de baptismo passíveis de se encontrar num
país “que já nasceu fodido”, com uma moçambicanidade “hipócrita” e sem raízes.
A
obra indaga o nosso destino colectivo, como nação política, nação cultural,
nação económica, prenhe de debates estruturantes constantemente adiados.
Passa em revista a questão identitária sublinhando a matriz Bantu, o complexo de inferioridade em relação ao europeu, a aventura socialista, os campos de reeducação, a miragem da cidade de Unango que estava a ser construída “com enxadas e machados”, as execuções sumárias, a fome, a guerra, a paz sem reconciliação, o capitalismo selvagem, as talácuas, essas formigas “verdadeiramente vorazes” que “formam um tapete à medida que devassam a floresta, devorando tudo à sua passagem”, os “esquadrões da morte”, o “desnorte” governativo, as eleições como “legitimação” de “novas trapaças”, enfim, a necessidade de reavaliar as nossas utopias de sociedade e de progresso. Dedicado à geração 8 de Março, é um livro intenso, actual, que vale a pena ser debatido.
A hora maconde
Foi
arriscado ler A hora maconde, de Marcelo Panguana, a seguir ao romance Assim
não, senhor Presidente, da autoria de Ungulani Ba Ka Khosa. Um título
estava a seguir ao outro na cabeceira e caí na tentação de fazer comparações.
Não estava no plano.
Ambos
os livros exploram à partida uma boa matéria-prima: a História de Moçambique
como colónia portuguesa (Panguana) e como país independente (Ba Ka Khosa). Mas
os livros têm personalidades diferentes, à luz das estratégias discursivas
usadas por cada um dos autores para tecnicamente nos apresentarem uma prosa com
entrosamento, ritmo e clímax bem delineado.
Objectivamente,
a proposta de Panguana não tem um início tão arrebatador quanto à de Ba Ka
Khosa. Enquanto este autor agarra o leitor à primeira e usa técnicas que
prolongam o seu interesse até ao fim, com o texto a evoluir em forma de espiral
em direcção ao desfecho, a voz do narrador de Panguana só se encontra consigo
lá mais para o meio da história e perde alguma assertividade na busca do
clímax.
Entretanto,
o romance de Marcelo Panguana é um relato da guerra numa perspectiva bem
interessante: a de um oficial negro do exército colonial português em conflito
com a sua consciência por estar a combater guerrilheiros nacionalistas.
A
proposta literária de Marcelo Panguana faz um notável retrato do perfil
psicológico da tropa colonial na frente de combate.
De
permeio, exalta a paradoxal beleza das paisagens no teatro das operações em
Cabo Delgado e enaltece a cultura maconde que, coincidentemente, este ano viu o
mapiko consagrado como património universal pela UNESCO.
(Um
aparte castrense: achei interessante a revisitação feita à eficiência logística
do exército colonial que conseguia assegurar serviços de socorro e regularmente
distribuir correio, vinho e mantimentos nos lugares mais recônditos onde
estivesse um soldado português, um assunto com bastante actualidade quando se
discute a relação entre a logística e o moral combativo das nossas forças
armadas no presente).
Voltemos
à técnica. A composição das personagens em A hora maconde poderia ter
sido favorecida por algum barro adicional, por forma a que os níveis de
verosimilhança conseguissem estar à altura do ângulo escolhido pelo autor para
contar a história dos últimos anos da guerra colonial e prender o leitor do
princípio ao fim, sem oscilações acentuadas de interesse.
A
minha expectativa pode ter sido inflacionada pela força do título,
extraordinariamente bem conseguido, e pela trajectória do autor, recheada de
distinções.
Para
terminar esta brevíssima nota de leitura, não vá alguém pensar que tenho a
veleidade de esgotar a complexidade deste livro nestes parcos parágrafos,
subscrevo as observações que Nelson Saúte fez do trabalho bastante confrangedor
de revisão.
A
Alcance Editores devia ter um maior controlo da qualidade dos seus produtos. É
imperativo que a editora proteja a sua marca, a dignidade das suas colecções e
o prestígio de autores da estirpe de Marcelo Panguana e Ungulani Ba Ka Khosa. Daniel
da Costa – Moçambique in “O País”
Sem comentários:
Enviar um comentário