A antropóloga Marisa Gaspar defende que o macaense se assume hoje como fruto de uma mistura étnica e “não como um português”, como antes da transição de Macau, e que Pequim tem dado sinais de valorizar a comunidade
“O
que acontece depois da transição de Macau para a China é que os macaenses
começam a assumir-se como tal, não como um português, como acontecia antes,
ainda que português de Macau, que não é igual ao português de Portugal, mas
começam a assumir este modelo de crioulidade, de mistura étnica”, nota a
académica do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa,
que se encontra no território a fazer trabalho de investigação.
A
estudar a comunidade há mais de uma década, Marisa Gaspar assume em entrevista
à Lusa a dificuldade em caracterizar em poucas palavras esta comunidade
euro-asiática, composta sobretudo por lusodescendentes com raízes em Macau.
Fala, sim, de uma definição “tão fluida e tão maleável”.
A
antropóloga começa por dizer que “é muito mais do que o binómio entre português
e chinês”, como várias vezes tem sido descrita, tratando-se de “uma mistura
rica de muitas pessoas, ao longo dos séculos”. “Inicialmente, as famílias
chegaram a Macau quando Macau foi estabelecido, sendo famílias que já vinham de
Goa, de Malaca, de entrepostos comerciais, e que quando chegaram, estes
mercadores traziam as próprias famílias, já elas misturadas”, refere, indicando
que esta é a teoria que se admite ser a mais correcta.
Autora
da obra “No tempo do bambu: Identidade e ambivalência entre macaenses” (2015),
adaptação para livro da tese de doutoramento, em que explora como mudanças
pós-transição se reproduziram em termos de alterações identitárias, Marisa
Gaspar deixou no título pistas para representar a comunidade. O bambu é “algo
que é flexível, que se pode vergar, erguer, que se adapta”, considera. E mais:
“Uma identidade fluida, pouco definida, pouco clara, que se pode adaptar da
forma como se quer e que dá mais vantagens em determinado momento. E eu falo
disso como uma estratégia (…) mas num sentido positivo, não como algo
depreciativo. Tens essas características e podes ir-te movendo nestes mundos”,
salienta.
Vantagens
para uma comunidade que vive a atualidade de um “quase laboratório social”,
como a antropóloga classifica Macau, que, após um período de três anos fechada
ao mundo devido à covid-19, testa “novas políticas públicas”.
Estas
políticas, para áreas como o turismo e o património, com vista a diversificar a
economia do território, fortemente dependente do setor do jogo, são temas que a
especialista está a trabalhar para o pós-doutoramento, em que aborda igualmente
o turismo gastronómico.
Macau
foi classificada em 2017 cidade criativa em gastronomia pela Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), e, quatro anos
mais tarde, a cozinha macaense entrou, em conjunto com o teatro em patuá, para
a lista do património cultural intangível da China. “É um marco a China
reconhecer um património que de facto é estrangeiro e tem uma base portuguesa
clara como um património nacional seu. E isto acho que também é demonstrativo
de que quer integrar a comunidade macaense como uma comunidade da China”,
refere.
A
docente do ISEG tem observado “a proliferação de restaurantes portugueses
nestes últimos anos” em Macau e reconhece que “os macaenses podiam estar muito
mais, se calhar, a aproveitar esta conjuntura e a cidade da gastronomia”. De
qualquer maneira, Marisa Gaspar sublinha que são todas estas geografias a
habitar a região semiautónoma que conferem uma identidade ao território: “É
aquela misturada toda, a que mistura o galo de Barcelos com o gato [do Japão;
Maneki-neko], com a serradura. (…) É esta misturada de coisas que não importa
exatamente saber qual é a origem, ou se mantém a autenticidade ou não das
coisas. Eu acho que o produto final, que é o que vende ao turismo, é o facto de
ver Macau como uma cidade não chinesa”.
Na
obra “No tempo do bambu: Identidade e ambivalência entre macaenses”, lançada há
quase dez anos, Marisa Gaspar estimava que sete mil macaenses residiam nessa
altura no território e que os membros da comunidade dispersos pelo mundo
pudessem rondar os 150 mil, números que poderão não ser actuais, segundo
referiu. In “Ponto Final” - Macau
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