Foi um dos fundadores do Partido Republicano, depois Presidente da República, escrevia compulsivamente, investigou Camões — que elegeu como símbolo da nacionalidade —, nunca atravessou a fronteira. Teófilo Braga visto por si e pelos contemporâneos — admiradores e críticos —, no centenário da sua morte. (Publicado originalmente na revista do Expresso, edição de 27 de Janeiro de 2024, pp. 50-52)
Passou
a vida a escrever. Foi encontrado morto na sua mesa de trabalho. Tinha 80 anos.
Faleceram os três filhos e, anos depois, a mulher. Teófilo Braga morava só.
Rodeado de livros, asfixiado por ressentimentos e sempre empenhado em completar
e concluir os temas que o absorveram a vida inteira. Deixou uma obra de
investigação e de crítica com mais de 200 títulos. Ele próprio assim se
definiu: “Dentro de um poço, desde que lá tivesse os meus livros, uma resma
de papel e um lápis, conseguiria viver.”
Por
sua vez, Ramalho Ortigão, que o conheceu com proximidade, afirmou: “Simples,
sóbrio, duro, com hábitos de uma austeridade de espartano, sabendo reduzir as
suas necessidades a toda a restrição a que lhe reduzam os meios, vivendo no
seu isolamento como Robinson na sua ilha. (...) Não publica um volume por
semana, pela razão única de que não há prelos, em Portugal, que acompanhem
a velocidade vertiginosa da sua pena. Escreve de graça, desinteressadamente,
em satisfação do seu prazer supremo, o prazer de espalhar ideias.”
Na
segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, Teófilo
Braga (1843-1924) foi um dos autores com maior número de obras publicadas
sobre a história da literatura portuguesa, desde os primórdios até João de
Deus e Antero de Quental. Assinalam-se, neste contexto, as investigações
sobre Camões, nos múltiplos aspetos da obra épica, lírica e teatral; “Gil
Vicente e as Origens do Teatro Português”; “Bernardim Ribeiro e o Bucolismo”;
Cristóvão Falcão, autor da “Écloga Cristal”; Bocage, sua vida e Época;
“Filinto Elísio e os Dissidentes da Arcádia”; a “História do Romantismo em
Portugal”; e “Garrett e a sua Obra”.
A
curiosidade de Teófilo estendeu-se a outros temas: o povo português, nos seus
costumes, crenças e tradições; o cancioneiro e o romanceiro popular; os
contos tradicionais. Também se consagrou à política. Encontra-se ligado à
fundação, ao desenvolvimento e à projeção do Partido Republicano
Português. Desempenhou as funções de presidente do governo provisório e de
Presidente da República.
Acrescente-se o percurso na Universidade de Coimbra, a propósito das opções pedagógicas que se refletiram na cultura e na sociedade portuguesas: Sistema de Sociologia (para alargar as previsões, comprová-las e acelerá-las pela intervenção política e governativa); Soluções Políticas da Política Portuguesa, para demonstrar que o povo estava preparado para receber a República.
De estudante a professor
Nasceu
em Ponta Delgada a 24 de fevereiro de 1843. Enquanto aluno do liceu, principiou
a atividade literária em jornais e revistas em São Miguel. Aprendeu, ainda,
rudimentos da tipografia. Dirigiu-se, aos 18 anos, para Coimbra. Tinha a
ambição de ser professor na universidade.
Arrostando
com os maiores sacrifícios, sem quaisquer apoios financeiros, vivendo apenas
de explicações, tirou, entre 1862 a 1867, o curso de Direito, com elevadas
classificações. Um ano depois fez provas de doutoramento com uma tese acerca
da história do direito português — os forais. Reconheceram-lhe os méritos.
Contudo, para ascender à cátedra, foi preterido por um candidato que possuía
relações privilegiadas com o júri. Tentou, em seguida, lecionar Direito
Comercial na Academia Politécnica do Porto. Voltou a ser rejeitado.
Finalmente, concorreu, em 1872, a uma cátedra sobre Literaturas Modernas no
Curso Superior de Letras, um concurso público muito renhido. Entre os
candidatos encontravam-se Pinheiro Chagas e Luciano Cordeiro. Eram os outros
candidatos e tinham as maiores proteções no corpo docente. Teófilo
conseguiu, finalmente, vencer. Teófilo Braga radicou-se, a partir de então,
em Lisboa, até falecer a 28 de janeiro de 1924. Nunca atravessou a fronteira.
A sua vida, de enorme sobriedade, circunscreveu-se entre a intimidade e os
contactos quotidianos: o Curso Superior de Letras; instalado no edifício da
Academia das Ciências, da qual foi vice-presidente. (O rei, por razões
estatutárias, era o presidente de honra). Deslocava-se, ainda, para fazer
pesquisas documentais à Torre do Tombo que funcionava no Palácio de São
Bento, e à Biblioteca Nacional, estabelecida no antigo Convento de São
Francisco, na área do Chiado. Pertenceu a uma tertúlia na rua do Arsenal, na
livraria Carrilho Videira, que reunia e editava obras de republicanos. Andava a
pé ou nos transportes públicos, mesmo quando foi Presidente da República.
Ramalho
Ortigão procurou, ainda, defini-lo nestes termos: “Este débil de aspeto um
pouco valetudinário, dorso curvo, ventre chato, estômago escavado, deixando
descair as calças em pregas sobre os sapatos, é o mais forte, o mais rijo, o
mais enérgico temperamento que tenho conhecido.” Os caricaturistas
retrataram-no com ironia. Joshua Benoliel fixou-o em dezenas de fotografias.
Tornara-se uma figura típica de Lisboa.
As polémicas
A
atividade literária, histórica, filosófica e política de Teófilo Braga
desencadeou sucessivas controvérsias: Castilho atacou a sua participação na
Questão Coimbrã; Camilo, pelos mais diversos motivos, constituiu um dos seus
mais acérrimos adversários; Ricardo Jorge, a propósito de um estudo acerca
de Rodrigues Lobo, denunciou-o como plagiário.
Todavia,
entre os críticos mais severos, avulta Antero de Quental: “Os primeiros
passos no estudo da história literária portuguesa — escreveu — foram
dados pelo sr. Teófilo Braga, essa glória ninguém lhe tira. Tem defeitos: a
impaciência que o leva muitas vezes a conclusões prematuras; e o espírito
sistemático que o leva também a conclusões falsas. (...) O lado inferior e
frágil — acentua Antero de Quental — são as teorias gerais, a parte
filosófica; sente-se que não é essa a vocação do sr. Teófilo Braga. Ao
mesmo tempo quimérico e sistemático, dá às suas doutrinas gerais uma
feição dogmática que lhes tira aquele poder de ductilidade e compreensão,
sem o qual uma teoria, para acomodar os factos ao seu rigor inflexível, tem de
os forçar, umas vezes e outras vezes, de pôr de lado. Isto é — adverte
Antero de Quental — o que torna abstrusas certas obras, como a ‘Poesia do
Direito’.” (in “Considerações sobre a Filosofia da História Literária
Portuguesa”, Porto 1872)
Camões, o símbolo nacional
Camões
foi um dos temas que, durante meio século, mais entusiasmou Teófilo.
Interessaram-lhe todos — ou quase todos — os aspetos da vida e a obra do poeta.
Fez uma reflexão e estudo dos textos mais antigos de biógrafos e
comentadores, o chantre Severino de Faria, o licenciado Manuel Correia, o
historiador e filólogo Manuel Faria de Sousa e o memorialista João Soares de
Brito.
Formulou
hipóteses e extraiu conclusões, muitas das quais se revelaram precárias, em
torno das circunstâncias relativas à conceção, publicação e divulgação
de “Os Lusíadas”; e a outros assuntos como a tença, a morte e a sepultura de
Camões; e, ainda, a permanência em África e no Oriente. Sejam quais forem as
reservas, os estudos de Teófilo proporcionam pistas para investigação do
tempo histórico e da amplitude da obra do poeta, que não ficou alheio ao
desconcerto do mundo e às vulnerabilidades da condição humana.
Procedeu
a uma campanha de opinião pública para celebrar, em todo o país, o terceiro
centenário da morte de Camões. A informação existente indicava o dia 10 de
junho. Foi exatamente nesse dia que se realizaram, em 1880, as comemorações,
com a participação de intelectuais, políticos e elevado número de
populares. Destinavam-se a promover a coesão do Partido Republicano, unindo as
várias tendências e grupos dispersos, no pensamento e na ação. Recorde-se
que, pouco antes de falecer, concedeu uma entrevista ao “Diário de Notícias”,
na qual insistiu que a data do nascimento de Camões era 5 de fevereiro de 1524.
O Governo, presidido por Álvaro de Castro e tendo António Sérgio como
ministro da Instrução, determinou que o dia 5 de fevereiro passasse a ser
feriado nacional. A data foi aprovada pelo Congresso da República e promulgada
pelo chefe de Estado, Manuel Teixeira Gomes. Concretizava-se assim, a título
póstumo, a aspiração cívica de Teófilo: o sentimento nacional é um dos
pilares fundamentais para a unificação dos portugueses. “Pelo amor do seu
território, pela necessidade de manter a independência”, escreveu, “é
possível alcançar uma ação comum, um sentimento coletivo que fortifica o
sentimento da pátria e da nacionalidade.” (...) “Camões”,
sintetizou, “deu expressão a esse sentimento, que transformou uma pátria
numa nacionalidade”.
Presidente da República
Proclamada
a República, Teófilo Braga foi escolhido para chefe do governo provisório (5
de outubro de 1910 a 4 de setembro de 1911). Acompanhou a apresentação, o
debate e a votação da legislação que estruturou o novo regime. A ditadura
de Pimenta de Castro (28 de janeiro de 1915 a 14 de maio de 1915) que encerrou
o Parlamento e conduziu à demissão do Presidente da República Manuel de
Arriaga (eleito a 24 de agosto de 1911 e a desempenhar funções até 26 de
maio de 1915). Perante esta crise, que provocou uma das mais sangrentas e
devastadoras revoluções, solicitaram a Teófilo Braga para ocupar o cargo,
porque reconheciam nele uma reserva moral e cívica. Eleito em sessão do
Congresso a 29 de maio de 1915, obteve 98 votos a favor, contra 1 voto para
Duarte Leite e três votos em branco. Durante quatro meses assegurou a chefia
do Estado, em circunstâncias particularmente complexas, a nível nacional e
internacional. A defesa dos territórios portugueses de África, em especial
Angola e Moçambique, perante ameaças da Alemanha, determinou a expedição de
contingentes do Exército e da Marinha. A 5 de agosto de 1915 a Europa eclodiu
o que viria a ser a Grande Guerra.
Os
efeitos do conflito acentuaram-se com muito impacto nas lutas partidárias e na
subida dos preços dos bens de consumo diário. Gerou-se a corrida aos bancos
para levantar os depósitos. Havia uma profunda instabilidade política e
social. Contudo, a entrada de Portugal na guerra, em solidariedade com a
Inglaterra — e devido à secular aliança subscrita entre os dois países — só
se verificaria a 7 de agosto de 1916. Deu lugar a mais outra controvérsia
entre as forças militares e os principais partidos políticos.
Europa e Atlântico
Teófilo
Braga, ao tomar posse, referiu que a sua orientação visava “a harmonia de
todos os poderes do Estado, o reconhecimento de que o poder soberano da nação
reside essencialmente no Congresso, de que o presidente não é senão um
mandatário. O contrário seria eu a exercer um imperialismo presidencialista”.
Fez
questão de salientar que, perante “esta espécie de solidariedade humana,
que corrige os excessos do egoísmo nacional (...), um outro equilíbrio
europeu tem de fundar-se.” Assim, “a política externa de Portugal
deriva completamente da sua situação geográfica; ela solidarizou-se com a
Europa, quando combatia o imperialismo da Espanha no século XVII e quando no
século XIX desmoronava o imperialismo napoleónico, ela nos fará cooperar na
atividade mundial dos grandes Estados, com o apoio no Atlântico”. Noutro
passo, Teófilo Braga concluiu: “Apresentando estes dois aspetos de
política, interna e externa, da nação portuguesa, dela se deduz um plano do
Governo. E ao proferir as palavras de compromisso de honra, desta hora em
diante só aspiro que, ao regressar dignamente ao lar, se possa dizer: cumpriu
o que prometeu; guiou-se pelo bom senso e pelo desinteresse.”
Consagração Nacional
Teófilo
Braga, tal como João de Deus e Guerra Junqueiro, após o seu falecimento teve
honras nacionais e foi sepultado nos Jerónimos — à data o Panteão Nacional.
Em 1925, Alfredo Guisado, poeta da “Orpheu” e vice-presidente da Câmara
Municipal de Lisboa, inscreveu-o na toponímia. A rua onde residia, a Travessa
de Santa Gertrudes, passou a denominar-se Rua Teófilo Braga. Também Alfredo
Guisado deu o nome de Teófilo Braga ao Jardim da Parada, no centro do bairro
de Campo de Ourique. Pouco depois, a 16 de outubro de 1926, inaugurava-se, no
Jardim da Estrela, um monumento dedicado a Teófilo Braga, da autoria do
escultor Teixeira Lopes. Em pleno salazarismo, o monumento saiu do Jardim da
Estrela e foi enviado para Ponta Delgada, por ocasião do centenário do seu
nascimento. Ficou junto ao Forte de São Brás, a curta distância da casa onde
nasceu.
Embora
muito combatido por intelectuais de várias tendências, também contou com a
fidelidade e dedicação de amigos como Francisco Maria Supico e de discípulos
como Teixeira Bastos, Reis Dâmaso, Fran Paxeco, A. do Prado Coelho. Um dos
seus admiradores, Álvaro Neves, inventariou a sua interminável bibliografia e
organizou o “In Memoriam”.
Ao
dissiparem-se as incompatibilidades pessoais e aversões políticas, chegou a
hora da reabilitação da vida e da obra em trabalhos de investigação e
crítica de Joaquim de Carvalho, Luís da Câmara Reys, Mário Soares e,
presentemente, Amadeu Carvalho Homem. Um facto é evidente: o homem, o erudito,
o cidadão e o político merecem ser evocados no ano do centenário da sua
morte. Destaca-se, quaisquer que sejam as reservas, o pioneiro da história da
literatura que elegeu Camões como o símbolo da nacionalidade. Foi um dos
fundadores do Partido Republicano que contribuiu para a transformação da
sociedade portuguesa, para a mudança do regime e para a solução de algumas
crises institucionais.
O “orgulho de ser açoriano”
Saiu de Ponta Delgada aos 18 anos e nunca mais voltou à ilha de São Miguel. Guardava memórias amargas da infância e da adolescência. Manteve um contacto epistolar assíduo com Francisco Maria Supico, diretor do jornal “A Persuasão”, que lhe acompanhou os primeiros passos e o incentivou a fazer carreira universitária. Entre as numerosas obras que publicou, faz referências a autores açorianos como Gaspar Frutuoso, propôs o camonianista José do Canto para sócio da Academia das Ciências e ocupou-se de temas açorianos. É o caso de “Cantos Populares do Arquipélago Açoreano” (1869). Este trabalho baseia-se na recolha feita por João Teixeira Soares de Sousa (1827-1882), a pedido de Garrett. Acerca da poesia popular — escreveu Teófilo — existem duas modalidades: “uma atual, móvel, continuamente em elaboração porque é um eco da vida, uma linguagem das paixões e dos sentimentos de hoje; a outra é tradicional, histórica, em desarmonia com os costumes presentes, mas repetida ainda religiosamente como lembrança de costumes e sucessos que já passaram.” Constitui: “o rapsodo de todas as alegrias e tristezas do poema da vida. A poesia — para o povo — é o ritmo do esforço no trabalho, o esquecimento da miséria, a expressão dos desejos, o tesouro da sua moral e tradições antigas, a linguagem do amor, o gemido, enfim, a verdade simples da sua alma.” Compreende, por conseguinte, “fados e canções da rua, orações, profecias nacionais e aforismos poéticos da lavoura”. Ao ser entrevistado por Albino Forjaz de Sampaio, declara que “nunca tivera a doença do açoriano, o apego ferrenho às suas ilhas, a nostalgia que sentimos quando delas nos afastamos. No entanto, através da minha longa vida, sempre me interessou tudo o que pudesse interessar aos Açores, especialmente à minha terra”. Afirmou, ainda com veemência: “Tenho orgulho de ser açoriano. As nossas ilhas são o foco da melhor tradição nacional. Nunca reneguei a minha terra. Sou ilhéu, nasci nesses rochedos donde irradiou o espírito das autonomias.” António Valdemar – Portugal in “Blog de São João del-Rei”
António Valdemar - Jornalista, investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências.
Sem comentários:
Enviar um comentário