Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

‘Alucilâminas’: a poética do desespero

Nova obra de Silas Corrêa Leite homenageia a poeta, romancista e contista norte-americana Sylvia Plath

                                                                                   

                                                                    I

Com versos inspirados na obra da poeta, romancista e contista norte-americana Sylvia Plath (1932-1963), Silas Corrêa Leite (1952) acaba de lançar Alucilâminas: poemas plathônicos versos atemporais da redoma de vidro de Sylvia Plath (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2023), em que trava um diálogo com aquela que é considerada uma das mais celebradas escritoras do Ocidente, ainda que só tenha chegado a essa condição depois de cometer suicídio, em Londres, na flor de seus 30 anos.

Repetindo o que Herberto Helder (1930-2015) e Hilda Hilst (1930-2004) já fizeram com versos de Luís de Camões (c.1524-c.1580) e Fernanda Young (1970-2019) com versos de Florbela Espanca (1894-1930) e Ana Cristina César (1952-1983), reproduzindo palavras destes autores em peças poéticas sem recorrer ao uso de itálico ou de notas de rodapé, Silas constrói poemas em que conserva o tom confessional de Sylvia Plath, chegando a um ponto em que não se sabe quem seria o verdadeiro autor do texto.

Obviamente, não se trata de plágio nem de algum recurso que se confunda com apropriação indébita ou com a agora tão em voga inteligência artificial, pois a referência à poeta norte-americana está explícita até no subtítulo do livro. Como diz o autor no preâmbulo, o que ele pretendeu fazer foi “tão somente transformar em releituras próprias as ideias, loucuras, escuridões e lampejos sobrevivenciais da poeta que não suportou continuar vivendo”. Para tanto, não deixou de recorrer à imaginação para reinventar a sua trágica vida e assim procurar colocar em versos “o tom, o timbre e as profundezas de abismos” da alma da poeta.

 

                                                                   II

Para o leitor brasileiro que desconhece quem foi Sylvia Plath, faz-se necessário tentar reconstituir aqui, em breves palavras, o que foi o seu destino marcado pelo desespero da depressão. Além de poemas, ela escreveu, sob o pseudônimo Victoria Lucas, o romance semiautobiográfico The bell jar (1963), que no Brasil recebeu como título A redoma de vidro e em Portugal saiu como A campânula de vidro. Suas principais obras são as coletâneas The Colossus and other poems (1960), sem tradução em português, e Ariel (1965), entre outros livros, todos publicados postumamente.


Nascida em Boston, filha de austríacos, desde cedo ela publicou versos em jornais e revistas regionais. No Smith College, faculdade de artes, editou uma revista interna que fez despertar um convite para que fosse editora da revista feminina Mademoiselle, em Nova York. A experiência durou pouco, mas serviu como inspiração para o seu romance A redoma de vidro, narrativa inspirada em acontecimentos do verão de 1952, quando a autora tentou o suicídio pela primeira vez e foi internada em uma clínica psiquiátrica.

Em 1955, formou-se com uma monografia sobre o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e, naquele mesmo ano, ganhou uma bolsa de estudos e foi estudar na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, país onde continuou publicando poemas. Lá, em 1956, conheceu o poeta Ted Hughes (1930-1988), que também se tornaria um dos grandes nomes da poesia norte-americana do século XX e seria autor de livros infantis. Casaram-se em junho daquele ano.

Em 1957, mudaram-se para os Estados Unidos, onde continuaram suas carreiras e tiveram dois filhos: Frieda e Nicholas. No período, Sylvia começou a explorar a literatura confessional, ao mesmo tempo em que o relacionamento se tornava cada vez mais difícil. Além de ter sofrido um aborto na segunda gravidez, ela descobriu uma traição do marido, o que os levou ao divórcio em setembro de 1962. Em dezembro de 1962, ela se mudou com os filhos de volta para Inglaterra.

Sozinha com uma criança de dois anos e um bebê de nove meses, na manhã de 11 de fevereiro de 1963, ela vedou o quarto dos filhos, deixando leite, pão e a janela aberta, e se trancou na cozinha com o gás do forno ligado, após tomar uma alta dose de remédios, colocando fim em sua vida.

 

                                                                   III

Não é preciso muito esforço para apreender o conteúdo lírico dos poemas que compõem este livro. São poemas livres (sem rima nem estrofação) que, por seu conteúdo fragmentado e desestruturado, assemelham-se à prosa versificada, mas em que está presente o “eu lírico” do poeta, fenômeno que passa necessariamente pela emoção e pelo pensamento e desvenda um estado de ânimo pessimista, angustiante e cético.

É o que pode constatar nesta segunda parte do poema “Pássaros noturnos”: “(...) Tento ler. Fuga. Tento escrever. / Sofro. Vazo / Não cabe em mim uma angústia tamanha / Alimento uma amargura como uma procissão / de leprosos pedindo perdão a Deus por estarem existindo / Doentes pedindo um copo de água do mar para as feridas vivas / Sozinha e carente aqui não tenho como atender o meu outro lado / do espelho quebrado / Nem como perdoar os sacrificados pelos ceifadores injustos da terra injusta. / O inferno desce sobre mim”.

Como se vê, a interação de Silas com a poeta é tão profunda que é como se a própria Sylvia Path estivesse vivendo esse momento.  Na verdade, o poeta, ao incorporar a poeta como seu alter ego, busca transformar as ideias e impressões dela sobre sua vida, e sua poesia, em vários textos, unindo versos diversos. E procura também verter as reflexões da poeta e seus entendimentos de sua história de vida e de ousadia literária.

No poema “Desenhos”, parece que se ouve a voz de Silvia Plath, transtornada, a se lamentar de sua vida errante, saudosa de uma parte de sua personalidade que teria ficado no passado, mas ainda com força para reencetar outra trajetória de vida, o que, infelizmente, como se sabe, não lhe foi possível por muito tempo:

          “Nas palavras desenho o meu Eu transtornado, / desfigurado / Nos desenhos assino meu ser renegado, / com a paleta de minha angústia-remorso / Estou sempre em viagem, como sempre, contraditória? / Sou mais meus avessos / Escrevendo e desenhando, que mundo perfeito tento criar? / Fiquei em algum lugar do passado, e o que escrevo e desenho, / É só tentando recriar um outro mundo possível, / Onde o amor seja eterno, / e a morte seja só um conto de farsas, / Ao redor de uma fogueira de vaidades”.

 

                                                        IV

Já o poema “Pulsos” ilustra à perfeição a poesia desesperadora de Sylvia Plath, em que Silas, por intermédio de seu alter ego feminino, diz que, para viver aquela vida de sofrimento melhor seria que não tivesse vindo ao mundo:

 “(...) Melhor seria não ter amado / Não ter nascido / Não ter gerado / Não ter sobrevivido como uma foice cega num campo de lavanda. / Pior, muito pior, camarada / É ter que afiar a navalha cega / No seu pulso esquerdo / Alvo como a neve do Ártico / Mas ter um horror à da imagem que fica nesse prenúncio de adeus / demorado... A estética da beleza não perdoa monstros escritos / com sua própria dor”.

Por sua vez, o poema “Redoma”, que já no título remete para o romance autobiográfico da autora, procura reproduzir o possível estado de ânimo de Sylvia Plath diante do comportamento do marido, que a teria trocado por outra mulher, sem levar em conta a responsabilidade com a família. De fato, mais tarde, fruto de um lar desestruturado, o filho de ambos, Nicolas Hughes, que não era casado nem tinha filhos, em março de 2009, aos 47 anos, no Alasca, haveria de se enforcar em sua casa, acrescentando outro capítulo trágico à história familiar. Já o pai, o poeta Ted Hughes, passaria anos combatendo feministas que o consideravam culpado pela morte da mulher:

 “...se eu pudesse ser quem me trai – e me odeia / Eu ficaria bonita e pomposa de terno de tweed e de guarda-chuva, / ou de bengala de mármore ou de marfim / Com minha gravata de pose / e meu exército branco de palavras dominadas a floretim. / ... mas há um cheiro forte de torta de morango no escuro / As crianças dormem como porcelanas envernizadas / e eu vigiando-as bebo e fumo / alucinada / Com medo das cortinas e das fronhas azuis daqui de casa / que cobrem todos os espelhos do território interior / Que antes mostravam minhas frágeis rudezas nuas / ... para depois quando o dono absoluto voltar todo empertigado / e feliz / e ego satisfeito (...quando voltar tarde das colheitas de elogios) / Dormirei como uma lesma, com estranhos remorsos / numa redoma de hipocrisia, / conversando com os meus próprios ossos...

 

                                                                   V

Nascido em Monte Alegre, hoje Telêmaco Borba, no Paraná, Silas Corrêa Leite, além de contista e romancista, é poeta, letrista, professor, bibliotecário, desenhista, jornalista, ensaísta, blogueiro e membro da União Brasileira de Escritores (UBE). Venceu alguns concursos com seus romances, artigos, poemas e letras de blues. Foi premiado no Concurso Lygia Fagundes Telles para Professor Escritor, da Secretaria de Educação do governo do Estado de São Paulo.

Lançou Campo de trigo com corvos (Jaraguá do Sul-SC, Design Editora, 2007); Gute-Gute, barriga experimental de repertório (Rio de Janeiro, Editora Autografia, 2015); Goto, a lenda do reino encantado do barqueiro noturno do rio Itararé (Florianópolis, Clube de Autores Editora, 2013); Tibete, de quando você não quiser ser gente (Rio de Janeiro, Editora Jaguatirica, 2017); Ele está no meio de nós (Curitiba, Kotter Editorial, 2018); O Marceneiro – a última tentativa de Cristo (Maringá-PR, Editora Viseu, 2019),  O lixeiro e o presidente (Curitiba, Kotter Editorial, 2019); e Desjardim –  muito além do farol do final do mundo (Belo Horizonte, Editora Caravana, 2023).

Nos últimos tempos, lançou Transpenumbra do Armagedon (São Paulo, Desconcertos Editora, 2021); Cavalos Selvagens, romance imaginativo (Curitiba/Taubaté, Kotter Editorial/Letra Selvagem, 2021); A Coisa: muito além do coração selvagem da vida (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2021); Lampejos (Belo Horizonte, Sangre Editorial, 2019); Leitmotiv: a longa estrada de fogueiras da cor de laranja: diário da paixão secreta de Anne Frank (Curitiba, Kotter Editorial, 2023), e Vaca profana: microcontos (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2023).

É autor ainda de Porta-lapsos, poemas (São Paulo, Editora All-Print, 2005); O Homem que virou cerveja, crônicas (São Paulo, Giz Editorial, 2009); e Favela stories, contos (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2022). Seus trabalhos constam de mais de cem antologias, inclusive no exterior, como na Antologia Multilingue de Letteratura Contemporanea, de Treton, Itália, e Christmas Anthology, de Ohio/EUA.

É autor do primeiro livro interativo da Internet, o e-book O rinoceronte de Clarice, que virou tema de dissertação de mestrado na Universidade de Brasília (UnB) e de tese de doutoramento na Universidade Federal de Alagoas (UFAL). É criador do Estatuto do Poeta, traduzido para o inglês, francês, espanhol e russo. Adelto Gonçalves - Brasil

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Alucilâminas – poemas platônicos em releituras atemporais da redoma de vidro de Sylvia Plath, de Silas Corrêa Leite, com texto de apresentação de Flávio Amoreira. Cotia-SP: Editora Cajuína, 108 págs., R$ 60,00, 2023. Site: www.cajuinaeditora.com.br   

E-mail: contato@editoracajuina.com.br  E-mail do autor: poesilas@terra.com.br Site do autor: www.poetasilascorrealeite.com.br

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Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e  doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br





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