Macau sempre teve um “estatuto privilegiado” nas
representações feitas por Portugal face às colónias africanas e Timor-Leste.
Não houve apropriação de costumes e modos de vida dos macaenses, nem estes
foram abrangidos pelo estatuto do indígena. Ainda hoje se olha para Macau de
forma diferente e, em parte, por uma razão: as diferenças na cor da pele. Esta
é uma das ideias deixadas num estudo recentemente publicado pela investigadora
da Universidade de Lisboa Patrícia Ferraz de Matos
“Colonial
representations of Macao and the Macanese: Circulation, knowledge, identities
and challenges for the future” [Representações coloniais de Macau e dos
macaenses: Circulação, conhecimento, identidades e desafios para o futuro] é o
título de um artigo académico da autoria de Patrícia Ferraz de Matos, da Universidade
de Lisboa (UL), publicado recentemente na revista científica Portuguese
Journal of Social Sciences.
A
investigadora defende que Macau sempre gozou de um estatuto privilegiado em
termos de representação por parte da metrópole por oposição às colónias
africanas ou a Timor-Leste, algo que acabou por perdurar até aos dias de hoje.
“Ao
viverem relativamente isolados da metrópole portuguesa entre os séculos XVI e
XIX, os macaenses desenvolveram uma cultura e crioulo locais através da
incorporação de várias influências que receberam das zonas marítimas da Ásia
Oriental. Ao fazer isso, puderam manter o seu estilo de vida, tradições,
idioma, gastronomia e profissões associadas ao Governo local”, pode ler-se.
Ao
HM, a investigadora adianta que “Macau não foi um território de exploração como
foi Angola ou Moçambique, com plantações, em que as pessoas eram obrigadas a
trabalhar porque tinham de pagar um imposto, e por isso é que tinham o estatuto
de indígena.” Acresce o facto de, perante a ONU, Macau nunca ter sido
considerado uma colónia. Em algumas colónias portuguesas houve destruição de
aldeias, onde foram construídas escolas e hospitais ao estilo europeu. “Em
Macau isso não aconteceu”, lembrou a autora.
Em
termos gerais, no período colonial, Macau “era visto e representado como um
território remoto em que muito pouco era conhecido”. “Ao analisar as
representações dos territórios sobre administração colonial portuguesa, é
evidente que Macau desfrutava de um estatuto privilegiado, particularmente em
comparação com as descrições feitas dos territórios africanos e de Timor”,
lê-se ainda.
Nestas
representações do tempo do Estado Novo, as práticas sócio-culturais de Macau
eram vistas como “originais e uma mistura de várias culturas”. “Por outro lado,
as adições (do jogo) são mencionadas, tal como o facto de a lei ser mais
flexível. O fascínio em torno de Macau estava muitas vezes relacionado com o
seu alegado exotismo e com o facto de podermos encontrar elementos
identificáveis com a cultura portuguesa num território tão distante e
diferente”, aponta o artigo.
Uma questão de pele
A
cor da pele também acabou por influenciar o processo de representação de Macau.
“[Os habitantes das colónias africanas] eram pessoas de raça negra, era este o
termo usado nos documentos, e os seus descendentes, que não soubessem ler e
escrever ou que tivessem costumes considerados primitivos [estavam inseridos no
estatuto do indígena]. Isso não aconteceu com os macaenses”, adiantou Patrícia
Ferraz de Matos.
A
investigadora analisou exposições, livros escolares e outras iniciativas do
Estado Novo onde o império colonial era descrito e mostrado aos portugueses,
incluindo o espaço dedicado a Macau e às restantes colónias no Portugal dos
Pequenitos, em Coimbra.
“Há
determinados aspectos que não encontramos nos pavilhões de África, isto no
Portugal dos Pequeninos. Encontramos sementes e armas, no de Macau não.
Encontramos uma escola ou uma série de lojas, algo mais próximo de existir numa
sociedade ocidental. Macau era um pouco visto como mestiço, e parte desse
privilégio que [o território teve] pela forma como foi visto e representado
[por Portugal] terá a ver com isso.”
Esse
estatuto de privilégio “comparativamente aos países africanos, penso que se
mantém”, defende a académica, e é algo que tem a ver “com a cor da pele e com o
racismo”.
“Portugal
é um país estruturalmente racista e a questão da cor da pele muitas vezes
esteve por detrás da definição de coisas como o Acto Colonial, o estatuto
indígena, código do trabalho do indígena, que foi aplicado nas populações
africanas e nunca em Macau”, frisou.
Patrícia
Ferraz de Matos destaca o facto de, hoje em dia, existir em Portugal um intenso
debate não apenas sobre o racismo, mas sobre as representações coloniais,
incluindo o derrube ou a manutenção de estátuas e outros símbolos. “Isso tem
muito mais a ver com a relação de Portugal com os países africanos. Macau passa
ao lado disto, completamente.”
Uma nova identidade
Olhando
para o futuro, Patrícia Ferraz de Matos destaca o facto de hoje em dia existir
“uma nova geração de macaenses que se identificam menos com a cultura
portuguesa e começaram a cultivar um novo discurso de identidade”.
Actualmente,
“a comunidade macaense ilustra um processo de aglutinação para a criação de uma
identidade étnica”, lê-se. Este movimento não está imune ao processo de
internacionalização da própria China e também de Macau, acrescenta a autora.
Este
movimento de ligação à cultura portuguesa aconteceu também muito por culpa “da
presença da comunidade portuguesa, que muitas vezes é vista como aberta ao
mundo e com uma incrível capacidade para se adaptar aos territórios
estrangeiros”.
“Tal
como no passado, e apesar de todas as transformações, Macau é ainda um lugar
interessante para reflectir sobre as estratégias de poder e de
internacionalização, o estabelecimento de relações, a circulação de pessoas e a
formação de identidades”, frisou.
Patrícia
Ferraz de Matos não deixa de destacar a realização de actividades como o
Festival da Lusofonia ou a Semana Cultura da China e dos Países de Língua
Portuguesa como exemplos de uma ligação a Portugal que ficou ao longo dos anos.
“O
Festival da Lusofonia é algo que foi definido por Macau e não pelos
portugueses. É muito interessante, tem este nome, mas poderia ter outro. É
interessante também ver o que é incluído neste festival”, concluiu. Andreia Silva
– Macau in “Hoje Macau”
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