João Carlos Mendonça João coordena o Leitorado de
Português em quatro universidades na Rússia. O Leitorado está presente na
Universidade Estatal de Moscovo Lomonossov, na Universidade Estatal de Relações
Internacionais de Moscovo, na Universidade Estatal de São Petersburgo e na
Universidade Estatal Linguística de Moscovo. Neste ano letivo, a língua
portuguesa é ensinada a 264 alunos das mais variadas licenciaturas nas quatro
universidades: desde futuros professores ou tradutores, a futuros diplomatas ou
advogados e ainda investigadores científicos
Leitor
naquele país desde 2004, João Mendonça João assumiu o Leitorado de Português
três anos após a sua criação, tendo substituído a professora Maria José Homem.
“A língua e cultura portuguesas são cada vez mais alvo de interesse por parte
dos russos”, assegura João Mendonça João.
Quantos alunos de Português há nessas instituições? E que
objetivos têm ao optarem pela língua portuguesa?
Na
Universidade Estatal de Moscovo Lomonossov temos 18 estudantes. Trata-se,
essencialmente, de um público de estudantes de filologia portuguesa. Uns
enveredam pelo ramo educacional, outros pela tradução. Outros ainda dedicam-se
à investigação científica. Um ou outro entra na carreira diplomática.
É
o caso da atual Cônsul da Embaixada da Rússia em Lisboa, que foi das minhas
primeiras estudantes. Muitos dos professores das principais universidades em
que o português é lecionado formaram-se nesta universidade.
Na
Universidade Estatal de Relações Internacionais de Moscovo temos 147
estudantes, por definição vocacionados para carreiras internacionais,
essencialmente em áreas como a diplomacia. A economia, o jornalismo/relações
públicas, a administração, o direito. A língua é sim ensinada para fins
específicos. A universidade forma o essencial dos quadros da diplomacia russa.
Na
Universidade Estatal Linguística de Moscovo estudam 90 jovens. Esta
universidade forma essencialmente futuros tradutores e intérpretes, para além
de professores. É a grande referência nas áreas em apreço e alma mater de
alguns principais colaboradores das Embaixadas lusófonas com representação em
Moscovo. É o caso do tradutor/intérprete do nosso Embaixador, Guennadi
Galiskarov, que mantém paralelamente uma atividade de docente na dita
universidade.
Na
Universidade Estatal de São Petersburgo, temos neste momento nove estudantes.
Acredita-se que esta universidade tenho sido pioneira no ensino do português na
então URSS, com o contributo do Professor Anatoly Gakh, nascido no Brasil.
Trata-se essencialmente de um público de estudantes de filologia portuguesa.
Uns
enveredam pelo ramo educacional, outros pela tradução, outros dedicam-se à
investigação científica. Muitos acabam por trabalhar como guias-intérpretes,
dada a vocação turística da Veneza do norte. Gostaria de referir o caso
invulgar de um estudante que se tornou numa importante personalidade do futebol
russo. A sua paixão pelo futebol aliada a um perfeito domínio da língua levou-o
ao clube Zenit, onde começou por trabalhar como intérprete dos jogadores
portugueses, brasileiros e do staff português do clube. Mais tarde tirou o
curso de treinador, em virtude do qual se tornou treinador principal dos
juniores do clube de São Petersburgo.
É
neste momento treinador-adjunto da equipa principal. O futebol tem sido outra
das saídas profissionais dos nossos estudantes. Outros estudantes da
Universidade Estatal de São Petersburgo, movidos por um notável espírito de
iniciativa, criaram centros de língua portuguesa.
Como é ministrado o ensino?
O
ensino da língua é sistematizado, em todas as universidades. Começando pela
licenciatura. Nos dois primeiros anos aprendem as bases da gramática
portuguesa. A partir do 3º ano é lhes providenciado um ensino diferenciado,
orientado para a sua área de especialização.
No
caso da Universidade de Relações Internacionais de Moscovo, os estudantes que
reprovam às disciplinas de língua chumbam o ano, e correm o risco de ter que
cumprir o serviço militar, em caso de expulsão. O português é essencialmente
ensinado como 1ª ou 2ª língua curricular, como uma carga horária consistente de
10 horas semanais no caso da 1ª língua, seis horas no caso da segunda língua, e
três horas no caso dos estudantes que optam pelo português como 3ª língua
(opcional).
Para
além disso, os rapazes de cidadania russa frequentam a partir do 2º ano a
cátedra militar em que para além da instrução militar frequentam aulas de
tradução militar da primeira língua ministrada. Aí o ensino é bastante
consistente, sendo que os estudantes acabam por saber de cor e salteado toda a
terminologia ligada ao armamento e à tática militar. Algumas estudantes por opção
própria frequentam as aulas da cátedra militar. Uma das nossas finalistas, que
frequentou este curso, trabalha neste momento no setor da defesa da Embaixada
do Brasil em Moscovo.
É
de salientar o contributo da Universidade de Relações Internacionais de Moscovo
para a divulgação do português através da conceção de materiais didáticos de
referência para fins específicos. Eu e os meus colegas temos editado ao longo
destes anos inúmeros manuais fundamentais, usados inclusive na Bielorrússia.
Sou co-autor de dois manuais. Um para principiantes, outro para níveis
intermédios.
A
principal arquiteta destes materiais é a professora Galina Petrova, autora de
outros manuais, tais como o manual de ‘Português jurídico’, o ‘Português para
níveis avançados’, elaborado em co-autoria com as professoras Elena Gavrilova e
Irina Tolmatcheva, ou o ‘Manual de correspondência diplomática’ em colaboração
com a Professora Maria Khvan. O manual das chamadas “leituras de casa” é outro
material essencial nas nossas práticas pedagógicas, com uma seleção de textos
de autores lusófonos com exercícios de gramática e léxico.
Pode indicar atividades académicas que são dinamizadas?
São
frequentes os encontros com representantes das missões diplomáticas, com
linguistas, através de palestras, e outras personalidades. No caso da
Universidade Estatal de Relações Internacionais, multiplicam-se os encontros
com altas patentes da diplomacia e política mundial. Todos os anos, organizamos
na Universidade Estatal de Moscovo Lomonossov um ciclo de conferências
intitulado ‘Leituras camonianas’, nas quais participam professores das várias
instituições de ensino superior e estudiosos russos de variadíssimos quadrantes
da lusofonia. Participo pontualmente conferências organizadas pelo Centro de
Estudos Africanos da Academia das Ciências da Rússia. A Universidade Estatal de
São Petersburgo, por sua vez, organiza todos os anos um ciclo de conferências
dedicado às questões da lusofonia.
O
Camões, I.P. tem apoiado a edição de atas das conferências.
Dinamizamos
o ensino do português em outras cidades, como Piatigorsk, no Cáucaso do Norte,
ou Rostov no Don, onde chegámos a organizar várias semanas da cultura
portuguesa, inclusive.
Há um variado programa cultural a complementar as
atividades académicas?
Realiza-se,
há cerca de 40 anos, o Dia da Língua Portuguesa na Universidade de Relações
Internacionais, hoje em dia celebrado como Dia da CPLP, relacionado outrora com
o 25 de Abril. Criei o centro de exames do CAPLE, e desde 2011 coordeno as
provas do CAPLE em Moscovo.
O
conjunto de atividades culturais é levado a cabo em estreita colaboração com a
nossa Embaixada. O cinema tem sido uma aposta ganha. Já organizámos, em Moscovo,
sete festivais de cinema português e outros tantos em lugares como São
Petersburgo, Nizhniy Novgorod.
O
cinema português já faz parte da agenda cultural destas cidades. Participamos
inclusive ativamente em festivais de cinema europeu em colaboração com a
Delegação da UE em Moscovo, em cidades como Tomsk, Rostov no Don, Kaliningrado
e Kazan. Nos últimos anos alargámos o âmbito dos festivais de cinema à Arménia.
Na
Sibéria já vamos no 3º Festival em Novossibirsk, no famoso cinema Pobeda, que
constitui uma excelente plataforma de divulgação cultural. O último festival
teve, apesar da pandemia, um impacto mediático sem precedentes. Prevê-se no
próximo ano a realização de uma exposição de fotografia à margem do festival de
cinema português de Novossibirsk. No mês de fevereiro agendámos o 1º festival
de cinema português de Krasnoyarsk na Sibéria.
A
música erudita portuguesa ocupa lugar importante nas nossas programações com um
conjunto de concertos, não só em Moscovo como em outras paragens mais
distantes, como Novossibirsk, Tomsk, Kaliningrado, Irkutsk, Kisslovdsk, no
Cáucaso. Muitos deles realizaram-se nomeadamente em colaboração com o Maestro
João Tiago Santos, que tem levado a música sinfónica e coral às melhores salas
do país.
É
importante salientar que as orquestras russas interpretam as composições de
autores portugueses.
Dinamizamos
a divulgação da literatura portuguesa, apoiando a tradução e edição de autores
portugueses neste país, em estreita colaboração com a Biblioteca de Literatura
Estrangeira de Moscovo e com a Biblioteca Mayakovsi de São Petersburgo, que
organiza todos os anos um concurso internacional de literatura ‘São Petersburgo
a ler’, que visa a promoção das obras de autores estrangeiros junto do público
russo.
A
iniciativa consiste num conjunto de eventos, desde encontros com autores,
leituras em público em espaços informais. O público ao longo do ano elege as
obras da sua preferência. A nossa primeira participação valeu-nos o 2º lugar
com ‘Equador’, de Miguel Sousa Tavares. O concurso impulsionou a edição de ‘E
se eu gostasse muito de morrer’, de Rui Cardoso Martins.
O
ano de 2019 foi um ano crucial dada a efeméride dos 240 anos do estabelecimento
das relações diplomáticas entre Portugal e a Rússia.
O
Camões, I.P. e a DGLAB apoiaram a tradução e edição de sete projetos que
incluíram a tradução de duas traduções de poesia de Fernando Pessoa na Rússia,
uma tradução de poesia de Fernando Pessoa para bielorrusso, uma tradução de uma
obra de José Saramago para arménio, ‘E se eu gostasse muito de morrer’, de Rui
Cardoso Martins, e uma antologia de poesia de Sophia de Mello Breyner Andressen
para russo.
Entre
as atividades previstas estão um festival de fado comemorativo dos 100 anos do
nascimento de Amália Rodrigues e um concerto de piano com Pedro Emanuel Pereira
e o Maestro António Vitorino de Almeida.
Sou
regulamente convidado a participar em programas televisivos, que permitem
chegar às massas. No passado mês de novembro, fui protagonista de um programa
dedicado à cultura portuguesa no canal federal Moskva 24. Em 2018, participei
no programa ‘Moscovo com sotaque’, dedicado à vivência de um português em
Moscovo. E a lista não acaba aqui.
Recebemos
frequentemente solicitações de museus e outras instituições. É o caso da
Galeria Tretiakov, que pretende editar um catálogo da obra de Paula Rego.
Têm-se
realizado ao longo dos últimos meses encontros frutíferos online com os
colegas dos outros leitorados do leste europeu, com vista à partilha de ideias
e experiências.
Deles
resultaram projetos como o do ressuscitamento dos encontros de teatro dos
leitorados que se realizaram em Portugal até 2011.
No seu entendimento, até onde poderá crescer o interesse
pela língua portuguesa na Rússia?
O
português não é propriamente uma língua apenas exótica e rara neste país.
As
vicissitudes históricas e políticas resultantes do processo de independência
das nossas colónias africanas estimulou o ensino do português na então URSS,
levando as autoridades soviéticas a formar cooperantes que seriam enviados para
os PALOP. A Rússia mantém fortes ligações económicas a estes países até os dias
de hoje. As relações com o Brasil por sua vez intensificaram-se com a criação
do grupo BRICS, apesar de se registar um abrandamento desde a chegada ao poder
de Jair Bolsonaro.
Portugal
passou a ser o destino turístico de eleição para muitos russos com alto poder
de compra. São muitos os que adquirem bens imobiliários em sítios privilegiados
no nosso país, o que os leva a aprender a língua.
Desde
2018, a prova de língua passou a ser exigida pelas autoridades do SEF para a
obtenção do chamado ‘Golden Visa’. Se até então não tínhamos mais de oito ou
nove candidatos às provas, a partir de então registou-se um aumento
significativo. Em 2018, 24 indivíduos passaram as provas.
Este
crescente interesse reflete-se também no aparecimento de vários centros de
língua privados nas principais cidades, e na afluência de público nas nossas
iniciativas culturais, que beneficiam frequentemente do apoio financeiro de
“mecenas” russos, apaixonados por Portugal.
Importante
será salientar que a própria política de algumas das universidades russas acaba
por beneficiar a língua portuguesa, sendo que as línguas são atribuídas
arbitrariamente aos estudantes, de acordo com as necessidades do MNE russo.
Todos
os anos dezenas de estudantes começam a aprender o português, independentemente
da nossa ação de promoção.
O
português goza de um estatuto prestigiado nas principais instituições de ensino
superior do país, e é dominado por várias figuras públicas, tais como Igor
Setchin, o ex- ministro Serguei Iastrzhemskii, a ex-esposa do atual presidente,
ou o falecido jornalista e diretor da emissora de rádio nacional Govorit Moskva
(Fala Moscovo), Serguei Dorenko.
A
emissora de rádio Govorit Moskva tem um programa exclusivamente dedicado à
cultura portuguesa. Tenho participado com alguma regularidade no programa, cuja
crescente audiência permite avaliar o interesse dos russos pela língua e
cultura portuguesas.
Em
2017, a exposição inédita ‘Senhores do Oceano. Tesouros do Império Português
dos séculos XVI-XVII’, realizada no Museu do Kremlin, anunciada a Vladimir
Putin pelo Embaixador Paulo Vizeu Pinheiro, foi vista por milhares de
visitantes, e objeto de palestras ministradas por historiadores da arte russos.
O
povo russo é sem dúvida um povo sedento de novidade, com forte apetência para a
cultura.
A
língua e cultura portuguesas são cada vez mais alvo de interesse por parte dos
russos. Esse interesse não se limita a Moscovo e São Petersburgo.
Ainda
me recordo da forte afluência do público às aulas abertas de língua no âmbito
dos Dias da Europa. A língua portuguesa foi sempre a mais procurada.
Estamos
empenhados em alargar os caminhos da nossa ação de promoção da língua e cultura
portuguesas.
A
colocação de outros leitores e docentes em universidades de outras regiões
poderiam contribuir para o reforço da nossa presença. Ana Pinto – Portugal in “Mundo
Português”
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