I
Num país em que cada vez menos se lê livros
impressos de boa qualidade (ou não) e há muitos mandatários que se mostram
publicamente inimigos pessoais da Língua Portuguesa, não é de se admirar que
nunca houvesse sido publicado aqui um livro de Yehuda Amichai (1924-2000), o
mais celebrado poeta israelense dos últimos tempos, autor de mais de vinte
volumes em verso e prosa traduzidos em mais de 40 idiomas. Para corrigir essa
falha imperdoável, a editora Bazar do Tempo, do Rio de Janeiro, acaba de lançar
a antologia Terra e Paz, com organização, tradução e notas do professor,
jornalista, romancista, contista, ensaísta e poeta Moacir Amâncio.
Doutor em Língua Hebraica e Literatura Judaica pela
Universidade de São Paulo (2001) e professor de Literatura Hebraica da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma instituição, Amâncio
traduziu diretamente do hebraico e selecionou estes poemas que oferecem um rico
panorama da obra de Amichai. Sem contar que, no início da década de 1980,
quando andava a aprender a língua hebraica em Israel, conheceu pessoalmente o
poeta em Jerusalém, a cidade histórica que ocupa espaço privilegiado em sua
vasta obra.
Na apresentação que escreveu para este livro, “Para
bagunçar a Bíblia: Yehuda Amichai e a reinvenção da tradição”, o tradutor, para
situar o leitor, faz um histórico do processo de construção do estado judaico
na Palestina, que começou a partir do final do século XIX, com o
recrudescimento das perseguições ao povo de Israel, especialmente na Europa, de
que o famoso Caso Dreyfus foi o fato mais significativo, tendo mobilizado o
escritor francês Émile Zola (1840-1902), que escreveu o artigo “J´accuse” (Eu
acuso), em defesa do oficial francês, judeu, Alfred Dreyfus (1859-1935),
acusado de traição em fraudulento processo em 1894.
Foi a essa época que o jornalista e escritor judeu
austro-húngaro Theodor Herzl (1860-1904), ao testemunhar aquela fúria
antissemita, decidiu lançar o movimento denominado sionismo que tinha por
objetivo fundar um país onde o seu povo estivesse a salvo das agressões
históricas, mas que só haveria de amadurecer em 1948, três anos depois do fim
da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com a criação pela Organização das
Nações Unidas (ONU) do Estado de Israel.
Nascido em 1924 na cidade de Würzburg, Alemanha, com
o nome de Ludwig Pfeufer, em uma família judia ortodoxa, o futuro poeta acompanharia
a família em 1935 em sua decisão de migrar para a Palestina, fugindo do regime
nazista. E haveria de seguir vivamente desde pequeno essas vicissitudes, tendo
participado como soldado das brigadas do exército britânico na Segunda Guerra
Mundial em incursões no Egito e lutado na guerra de independência de Israel
contra os países árabes em 1948. Depois, haveria de se naturalizar cidadão
israelita, adotando o nome hebraico de Yehuda Amichai, que, segundo a tradição,
afastaria as humilhações do passado que o seu povo sofrera.
Depois da guerra de 1948, estudou literatura
hebraica e textos bíblicos e tornou-se professor do ensino secundário. Publicou
o seu primeiro livro de poesia, Achshav Uve-Yamim HaAharim (Now and
in Other Days), em 1955. A forma inovadora como utiliza a língua hebraica influenciou
o hebraico moderno, a tal ponto que passou a ser considerado o poeta nacional
de Israel, depois de Hayim Nachman Bialik (1783-1834), que deu início à
modernização da poesia hebraica.
II
Em suas poesias, Amichai trata de assuntos do dia-a-dia
e de assuntos filosóficos e do significado da vida e da morte. Muitas de suas
poesias tratam de Deus e fazem referências à experiência religiosa. Como
observa o tradutor na apresentação, a erudição hebraica, inclusive bíblica, de
Amichai “está nos originais, nos jogos de palavras, em sugestões sutis que, de
algum modo, permeiam a tradução, assim como o diálogo com a poesia de seu tempo
em todo o mundo, como se vê neste poema que leva por título “Jerusalém”: Num
telhado da Cidade Velha, /o lençol branco de uma mulher inimiga, / a toalha de
um homem inimigo / para enxergar o suor do seu rosto. (...) / Hasteamos muitas bandeiras, / eles hastearam
muitas bandeiras. / Para pensarmos que eles são felizes. / Para pensarem que
nós somos felizes.
É a partir de Jerusalém que o poeta revive sua
própria história, inclusive a de sua família, como quando diz que sua filha é
mais parecida com sua mãe do que consigo e sua mulher. Ou ainda quando lembra
que seu filho foi convocado pelo exército. “Quando ele vem para casa, / à
noite ele se cala, depois dorme, também a menina dorme. / Eis os dois que
dormem na minha casa de frente para as muralhas da Cidade Velha”.
Aclamada pelo poeta mexicano Octavio Paz
(1914-1998), Prêmio Nobel de Literatura de 1990, a poesia de Amichai é voltada
inteiramente para a construção da paz, resultado de uma vida permeada pelas
memórias do nazismo, por perdas e conflitos que marcaram sua vida na Europa e
em Israel. É o que se percebe no poema “liberar memórias rapinantes”: (...)
Penso nas balas da guerra que não me mataram / porém mataram os meus amigos, /
melhores do que eu porque não / continuaram a viver como eu”.
Ou ainda neste poema: “Eu não fui um dos seis
milhões / que morreram na Shoá e não estive nem mesmo entre os resgatados/ nem
fui um dos seiscentos mil que saíram do Egito / mas cheguei do mar à Terra
Prometida, / eu não estive entre todos aqueles mas o fogo e a fumaça / ficaram
em mim, e as colunas de fogo e fumaça mostram / o caminho noite e dia, restou
em mim a busca insana /por uma saída de emergência e por lugares macios, / pela nudez da terra para me abrigar dentro
da fragilidade / para dentro da esperança, / restou em mim o desejo da busca /
de água fresca falando em voz baixa para a rocha e batendo loucamente.
Trata-se, portanto, de “uma poesia marcadamente
israelense, judaica e universal”, como se pode ver por estes versos em
homenagem a Israel: (...) O país é muito pequeno, /eu posso contê-lo dentro
de mim. /A erosão do solo erode também o meu descanso / e o nível do Lago de
Genesaré sempre está na minha mente. / Portanto eu posso senti-lo por inteiro
ao fechar os olhos. Mar-vale-monte. /Portanto eu posso lembrar de tudo o que
aconteceu nele / de uma só vez, como um homem que lembra /toda a sua vida no
instante de sua morte.
III
Nascido em Espírito Santo do Pinhal-SP, mas
estabelecido na cidade de São Paulo desde jovem, Amâncio estreou na literatura
com a novela O saco plástico (1974) e surpreendeu a crítica com a prosa
fragmentária de Estação dos confundidos (1977). Passou a maior parte de
sua vida profissional nas redações dos jornais Folha de S. Paulo, O Estado
de S. Paulo, Gazeta Mercantil e O Globo e das revistas Visão
e Shalom.
Publicou o livro de contos O riso do dragão
(1981) e Súcia de mafagafos (1982), que reúne duas histórias bastante
fragmentadas e com a linguagem da prosa já se misturando com a poesia. A partir
de 1993, rendeu-se de vez à poesia com o livro Do objeto útil, que lhe
rendeu o Prêmio Jabuti. Em Figuras na sala (1996), fez uma homenagem à
melhor tradição modernista brasileira. Em 1997, publicou um livro de
reportagens e artigos, Os bons samaritanos e outros filhos de Israel.
Mas logo voltou à poesia com O olho do canário (1998). Em 1999, deu à
luz Colores siguientes em que reuniu poemas escritos em castelhano. É o
livro que marca o início de uma série de peregrinações poliglotas, que vão
atingir o seu auge com Abrolhos (2007) em que várias composições estão
escritas em hebraico.
Depois, em Contar a romã prestou homenagem ao
idioma de Góngora (1561-1627), Quevedo (1580-1645) e Cervantes (1547-1616). Em
2001, publicou sua tese de doutoramento, Dois palhaços e uma alcachofra: uma
leitura do romance ‘A Ressurreição de Adam Stein’, de Yoram Kaniuk, na qual
discute as diferentes formas de se ver o Holocausto em estudo sobre a obra do
escritor israelense Yoram Kaniuk (1930-2013).
Em Ata (2007), reuniu seis livros de poemas
publicados até então e outros inéditos, além de ensaios como Dois palhaços e
uma alcachofra e Yona e o Andrógino – notas sobre poesia e cabala
(2010) mais a antologia por ele organizada e traduzida de poemas do israelense
Ronny Someck (1951) sob o título Carta a Fernando Pessoa (2015). Também
traduziu Badenheim 1939 (2012), livro de Aharon Appelfeld (1932-2018) e
participou da tradução dos poemas da poeta israelense Tal Nitzán (1960)
incluídos no livro O Ponto da Ternura (2013).
É autor ainda de O Talmud, tradução de
trechos e estudos (1995), e organizador de Ato de presença: Hineni
(2005), coletânea de ensaios em homenagem à professora Rifka Berezin, Kelipat
Batsal. Em 2016, publicou Matula, seu sétimo livro de poesia. Adelto
Gonçalves - Brasil
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Terra e Paz:
antologia poética, de Yehuda Amichai, com organização, tradução e
notas de Moacir Amâncio. Rio de Janeiro: Editora Bazar do Tempo, 184 págs., R$
62,00, 2018. E-mail: contato@bazardotempo.com.br
Site: www.bazardotempo.com.br
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Adelto Gonçalves
é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
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