No
final da década de 60, a ditadura militar no Brasil deteve e prendeu muitos
artistas e intelectuais pelos seus ideais políticos. Eu fui um deles. Os militaristas
estão de volta
RIO DE JANEIRO - “O Brasil não
é para principiantes”, dizia António Carlos Jobim. Jobim, que escreveu “A
Garota de Ipanema”, foi um dos músicos mais importantes do Brasil, a quem
podemos agradecer pelo facto de que os amantes da música em todos os lugares
precisam de pensar duas vezes antes de classificar o pop brasileiro como “world music”.
Quando contei a um amigo
americano sobre a linha do maestro, ele retorquiu: "Nenhum país é". O
meu amigo americano tinha razão. De certa forma, talvez o Brasil não seja tão
especial.
Neste momento, o meu país está
a demonstrar que é uma nação entre outras. Como outros países do mundo, o
Brasil está a enfrentar uma ameaça da extrema-direita, uma tempestade de
conservadorismo populista. O nosso novo fenómeno político, Jair Bolsonaro, que
deve vencer a eleição presidencial no domingo, é um ex-capitão do Exército que
admira Donald Trump, mas parece mais com Rodrigo Duterte, o homem forte das
Filipinas. Bolsonaro defende a venda sem restrições de armas de fogo, propõe
uma presunção de autodefesa se um agente de autoridade matar um
"suspeito" e declarar que um filho morto é preferível a um
homossexual.
Se Bolsonaro vencer a eleição,
os brasileiros podem esperar uma onda de medo e ódio. Na verdade, nós já vimos
sangue. No dia 7 de outubro, um partidário de Bolsonaro esfaqueou o meu amigo
Moa do Katendê, um músico e mestre de capoeira, devido a um desentendimento
político no estado da Bahia. A sua morte deixou a cidade de Salvador de luto e
indignação.
Recentemente, deparei-me a pensar
nos anos 80. Estava a produzir discos e a tocar para multidões esgotadas, mas
sabia o que precisava mudar no meu país. Naquela época, nós brasileiros
estávamos a lutar por eleições livres depois de 20 anos de ditadura militar. Se
alguém tivesse-me dito então que algum dia elegeríamos para a presidência
pessoas como Fernando Henrique Cardoso e depois Luiz Inácio Lula da Silva,
teria soado como uma ilusão. Então aconteceu. A eleição de Cardoso em 1994 e, de
seguida, a de Lula em 2002 teve um enorme peso simbólico. Eles mostraram que
éramos uma democracia e mudaram a forma da nossa sociedade ajudando milhões a sair
da pobreza. A sociedade brasileira ganhou mais auto respeito.
Mas, apesar de todo o
progresso e da aparente maturidade do país, o Brasil, a quarta maior democracia
do mundo, está longe de ser sólida. Forças obscuras, de dentro e do exterior,
agora parecem estar a impelir-nos para trás e para baixo.
A vida política aqui está em
declínio há algum tempo - começando com uma recessão económica, depois uma
série de protestos em 2013, o impeachment
da presidente Dilma Rousseff em 2016 e um enorme escândalo de corrupção que
colocou muitos políticos, incluindo Lula, na prisão. As facções de Cardoso e da
Silva ficaram gravemente feridas e a extrema-direita encontrou uma oportunidade.
Muitos artistas, músicos,
cineastas e pensadores viram-se num ambiente onde ideólogos reacionários, que -
através de livros, sítios e artigos noticiosos - têm denegrido qualquer
tentativa de superar a desigualdade ligando políticas socialmente progressistas
a um tipo de pesadelo venezuelano, gerando medo que os direitos das minorias
irão corroer os princípios religiosos e morais, ou simplesmente instruindo as
pessoas na brutalidade através do uso sistemático de linguagem depreciativa. A
ascensão de Bolsonaro como uma figura mítica cumpre as expectativas criadas por
esse tipo de ataque intelectual. Não é uma troca de argumentos: aqueles que não
acreditam na democracia trabalham de formas insidiosas.
As principais agências noticiosas
tenderam a minimizar os perigos, trabalhando de facto para Bolsonaro
descrevendo a situação como um confronto entre dois extremos: o Partido dos
Trabalhadores potencialmente a levar-nos para um regime autoritário comunista,
enquanto Bolsonaro lutaria contra a corrupção tornando a economia do mercado
amigável. Muitos na imprensa de grande circulação ignoram intencionalmente o facto
de que Lula respeitou as regras democráticas e que Bolsonaro defendeu repetidas
vezes a ditadura militar dos anos 60 e 70. Na realidade, em Agosto de 2016,
enquanto votava contra Dilma, Bolsonaro fez uma demonstração pública de dedicar
a sua acção a Carlos Alberto Brilhante Ustra, que administrou um centro de
tortura nos anos 70.
Como figura pública no Brasil,
tenho o dever de tentar esclarecer estes factos. Eu sou agora um homem velho,
mas era jovem nos anos 60 e 70, e tenho memória. Então eu tenho que falar.
No final dos anos 60, a junta
militar deteve e prendeu muitos artistas e intelectuais pelos seus ideais
políticos. Eu era um deles, junto com meu amigo e colega Gilberto Gil.
Gilberto e eu passámos uma
semana numa cela conspurcada. Então, sem nenhuma explicação, fomos transferidos
para outra prisão militar por dois meses. Depois disso, quatro meses de prisão
domiciliária até, finalmente, o exílio, onde ficámos por dois anos e meio.
Outros estudantes, escritores e jornalistas foram presos nas celas onde
estávamos, mas nenhum foi torturado. Durante a noite, porém, podíamos ouvir os
gritos das pessoas. Eles eram presos políticos que os militares pensavam estar
ligados a grupos de resistência armada ou a jovens pobres que foram apanhados
em roubos ou na venda de drogas. Esses sons nunca saíram da minha mente.
Alguns afirmam que as
declarações mais atrozes de Bolsonaro são apenas posturas. De facto, ele parece
muito com muitos brasileiros comuns; está a demonstrar abertamente a
brutalidade superficial que muitos homens consideram que precisam de esconder.
O número de mulheres que votam nele é, em cada sondagem, muito menor do que o
número de homens. Para governar o Brasil, ele terá que enfrentar o Congresso, o
Supremo Tribunal Federal e o facto de que as pesquisas mostram que uma grande
maioria dos brasileiros dizem que a democracia é o melhor sistema político de
todos.
Eu citei a frase de Jobim - “O
Brasil não é para principiantes” - para trazer um toque de cor divertido ao meu
ponto de vista dos tempos difíceis. O grande compositor estava sendo irónico, mas
ele falou a verdade e sublinhou as particularidades do nosso país, um país
gigantesco no Hemisfério Sul, racialmente miscigenado, o único país com o
português como língua oficial nas Américas. Eu amo o Brasil e acredito que pode
trazer novas cores para a civilização; Eu acredito que a maioria dos
brasileiros também a ama.
Muitas pessoas aqui dizem que
estão planeando viver no estrangeiro se o capitão vencer. Eu nunca quis morar
noutro país além do Brasil. E não quero agora. Fui forçado ao exílio uma vez.
Isso não vai acontecer novamente. Eu quero que minha música, a minha presença,
seja uma resistência permanente a qualquer característica antidemocrática que
venha de um provável governo Bolsonaro. Caetano
Veloso – Brasil in “The New York Times”
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