11
anos depois de legalizar o aborto por opção da mulher, Portugal apresenta queda
no número de procedimentos realizados. Enquanto o assunto causa tensão no
Brasil, onde o debate mais recente sobre descriminalização gerou até ameaças de
morte, a estatística portuguesa se mantém confortável abaixo da média no índice
de abortos realizados na Europa.
Os corredores do Centro
Hospitalar da Cova da Beira, na cidade de Covilhã, região central de Portugal,
conduziram a brasileira Mariana Panaro a um pequeno consultório onde, pela
primeira vez na vida, poderia falar em aborto livremente. Foi em 2008, Mariana
tinha 29 anos e Portugal completava o primeiro aniversário da legalização da
interrupção da gravidez por opção da mulher.
"Era uma sala simpática.
Tinha a mesa, duas cadeirinhas na frente para o casal sentar, do lado, a mesa
ginecológica e o aparelho de ultrassom", conta Mariana à Sputnik Brasil.
Foi nesta unidade que atendeu,
ao longo de nove anos, mulheres dos mais variados perfis. Ginecologista e
obstetra natural de São Paulo, Mariana levou para Portugal lembranças marcantes
causadas pela ilegalidade do aborto no Brasil.
"Lembro-me
de ver uma adolescente, no hospital de Cotia, devia ter 17 anos, que ouviu
falar que permanganato de potássio era bom para abortar. É uma substância
utilizada antigamente pelos dermatologistas para secar lesões de pele. É ácido,
então as mulheres enfiavam no fundo da vagina e tinham a ilusão de que seria
abortivo. Lembro-me dessa menina chegar e sangrar muito, estava entrando em
choque. Quando examinamos, vimos que ela tinha um buraco na parede da vagina.
Se ela não fosse atendida, morreria grávida, porque aquilo não é abortivo. Ela
estava se esvaindo em sangue e foi muito marcante. Qual a necessidade de uma
pessoa ter que fazer isso?", se pergunta a interlocutora da Sputnik.
Mariana se mudou para Portugal
em 2007, ano em que o país realizou um referendo nacional com a pergunta:
"Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se
realizada por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de
saúde legalmente autorizado?". Mais de 59% dos portugueses votaram a favor
e a nova legislação entrou em vigor no mesmo ano.
A experiência em vários
hospitais públicos do estado de São Paulo poderia ter feito Mariana estranhar a
nova realidade de trabalho. O emprego no hospital de Covilhã foi o primeiro,
como parte do processo para validar a especialização em Ginecologia e
Obstetrícia em Portugal.
"Quando comecei a
trabalhar, meu chefe perguntou logo se eu era a favor ou contra [o aborto]. Ele
estava preocupado, porque o médico que fazia com ele não ia sempre e os outros
todos já diziam que eram contra e não fariam", lembra a médica.
"Quando a gente faz muito
plantão lá no Brasil, a gente vê toneladas de mulheres que fazem aborto ilegal,
que enfiam agulhas, varas, que chegam ao hospital em choque hemorrágico, com
intestino a sair pelo colo do útero. Então de tanto ver isso por lá, chegar
aqui e ser legalizado, das mulheres não correrem riscos, foi algo
libertador", conta Mariana.
Legalização
e redução
A primeira legislação sobre
aborto em Portugal é de 1984, que determinava prisão de dois a oito anos para
quem facilitasse os procedimentos e de até três anos para a mulher que
realizasse. A interrupção só era permitida para gestações decorrentes de
estupros e casos de risco grave à saúde da mãe e do feto.
Em 1997, a lei foi alterada.
As punições continuaram, mas ampliou-se o prazo para o aborto nos casos de
malformação do feto (de 16 para 24 semanas) e também o conceito de estupro. A
interrupção passou a ser permitida em casos de "crime contra a liberdade e
autodeterminação sexual da mulher".
Em 2007, depois do referendo,
o aborto por opção da mulher, quando realizado até a décima semana de gestação
em estabelecimentos de saúde oficiais, deixou de ser crime.
De acordo com dados da Direção
Geral de Saúde (DGS) do governo de Portugal, o número de abortos realizados no
país rondava os 20 mil por ano antes da legalização. Em 2008, o registro foi de
18.615 procedimentos, 97% deles por opção da mulher. Até 2011, o número só
cresceu.
A médica Ana Aroso, membro da
direção da Associação para o Planejamento da Família, explica à Sputnik Brasil
que a subida inicial "foi simplesmente porque passamos a conhecer os
abortamentos a título oficial. Depois tivemos os anos da crise, que começou em
2008. Talvez muitas dessas gravidezes tivessem sido aceitas se não fosse a
questão do desemprego nesta época".
Foi em 2012 que começou a
trajetória da queda dos abortos em Portugal. A redução desde 2008 até 2016, ano
da última estatística disponibilizada pela DGS, é de 14,3% no total de
interrupções e de 14,4% nos casos em que foi opção da mulher.
"Há aqui vários ganhos,
um deles é terem terminado os problemas de saúde da mãe quando faz a
interrupção, como as perfurações dos órgãos genitais, do útero, as infecções. É
todo um conjunto de melhorias que foram alcançadas ao longo destes anos",
afirma à Sputnik Brasil o médico Francisco George, que chefiou a Direção Geral
de Saúde de 2005 até o ano passado. Desde 2012, a mortalidade por complicações
de abortos inseguros em Portugal está zerada.
Do momento em que decide
interromper a gravidez até concluir o procedimento, a mulher passa por pelo
menos três consultas. Na primeira, ela manifesta o interesse e é feito um
ultrassom para confirmar que a gestação não ultrapassa as dez semanas. Os
profissionais também avaliam se a paciente não está sendo pressionada a
abortar.
"Depois
existe um período de reflexão de no mínimo três dias, em que podemos
disponibilizar apoio psicológico, um apoio social, de ajuda monetária quando há
desemprego, caso essa seja a causa para a interrupção. No fim da reflexão há
uma nova consulta. A mulher já vai ter optado se quer o regime terapêutico com
medicamentos ou o cirúrgico. Habitualmente, recomendamos a primeira tentativa
com medicamentos, porque é mais simples, feito em ambulatório. A medicação é dada
na consulta e a segunda dose, 48 horas depois, pode ser feita no domicílio.
Depois tem de haver uma terceira consulta para um acompanhamento. Temos que
comprovar que houve uma expulsão completa do conteúdo uterino e falar da
contracepção, sobre como evitar um novo aborto", explica a diretora da
Associação para o Planejamento da Família.
O procedimento é o mesmo em
unidades de saúde da rede pública ou privada, mas os perfis são bem diferentes.
No sistema público, 98% dos abortos voluntários são feitos com medicamentos.
Nas clínicas particulares, 97% são cirurgias.
A lei portuguesa garante o
acesso ao aborto seguro para qualquer mulher, mesmo estrangeiras em situação de
residência não regularizada no país. Desde 2014, quando a DGS começou a
divulgar dados da nacionalidade das pacientes, as brasileiras ocupam o segundo
lugar no ranking das estrangeiras a abortar por opção em Portugal. Foram 379 em
2016, atrás apenas das cabo-verdianas.
Embora não haja distinção
entre residentes e não residentes, a diretora-executiva da Clínica dos Arcos,
unidade privada que mais realiza abortos no país, fala sobre o interesse
existente por parte de quem ainda está no Brasil.
"Elas entram em contato
conosco principalmente por e-mail ou telefone", diz Sónia Lourenço. São
dois os principais fatores apresentados pelas brasileiras que vêm abortar em
Portugal. "A língua, que, por ser a mesma, dá mais uma segurança, mas
principalmente o anonimato, incomparável com outros locais. Aqui, ela será só
mais uma na multidão a fazer turismo, ninguém vai saber o que ela veio
fazer", explica a gestora.
Viajar para abortar não é
novidade para as brasileiras, mas só no ano passado o tema veio à tona
escancaradamente. Rebeca Silva, a primeira mulher a pedir ao Supremo Tribunal
Federal para interromper uma gravidez no Brasil, viajou para fazer o
procedimento na Colômbia, assistida por entidades de defesa dos direitos das
mulheres, depois de ter o pedido negado.
A bióloga Taís*, do Rio de
Janeiro, considerou a opção depois de descobrir que estava grávida e de
conversar com outras mulheres que já tinham abortado.
"Cogitei realizar em
qualquer país que fosse descriminalizado". No fim das contas, Taís acabou
conseguindo medicamentos abortivos na própria cidade. "O número de
mulheres que já realizaram procedimentos de interrupção é extremamente maior do
que imaginamos. As pessoas não falam, por ser crime, por incompreensão de
algumas partes da sociedade. Mas há uma grande parcela que mantém esse diálogo
vivo e forma uma rede de apoio mútuo", analisa a bióloga à Sputnik Brasil.
Média
abaixo da Europa
A cearense Débora* engravidou
enquanto fazia intercâmbio na Irlanda, aos 22 anos, por descuido com o uso da
pílula anticoncepcional. O parceiro se esquivou.
"Fiquei desesperada. Ele
deixou bem claro que era responsabilidade minha lidar com a situação, independente
da escolha que eu fizesse", conta Débora em uma conversa com a Sputnik.
"Pensei
no que eu poderia proporcionar para aquela criança. Eu não tinha terminado a
faculdade ainda, eu sabia que seria uma responsabilidade para o meu pai, que me
sustentava na época, a minha avó estava com câncer. Acabei decidindo não levar
adiante por não me sentir preparada e principalmente por saber que estaria colocando
um peso na vida do meu pai", adianta.
Por indicação de outra
brasileira, ela procurou ajuda on-line pelo projeto Women on Web, que tem sede
na Holanda e facilita o acesso a medicamentos abortivos em vários países.
A facilidade para conseguir o
remédio, mesmo com a legislação irlandesa sendo considerada uma das mais
restritivas do mundo na época, não aliviou o peso da decisão. "Além de
todo o sofrimento físico, foram horas de cólica e dor, quando expeliu, eu vi
nitidamente o feto. Isso me atormentou durante muito tempo", diz Débora.
Em maio deste ano, em um
referendo histórico, os irlandeses votaram a favor da descriminalização do
aborto. Agora, só a Polônia, que permite em casos extremos de risco à vida da
mulher, malformação do feto e crime, e Malta, que bane sob qualquer
circunstância, resistem como os dois países mais restritivos da Europa para o
aborto.
Neste cenário, Portugal tem o
menor prazo para a permissão da interrupção voluntária (só até a décima semana,
quando a Holanda, por exemplo, permite até as 22), mas está sempre abaixo da
média europeia de abortos para cada mil nascidos vivos. Foram 204 em 2014, ano
dos indicadores mais recentes disponibilizados, contra 227,96 da média da
Europa.
Embora o ex-chefe da Direção
Geral de Saúde afirme que "não se discute mais este direito" das
mulheres em Portugal, há profissionais que fazem questão de demonstrar que são
contra o aborto, declarando "objeção de consciência" para não
realizar os procedimentos na rede pública. A lei assegura o direito dos
trabalhadores. O resultado é, na maioria dos casos, o encaminhamento para a
rede privada. Na Clínica dos Arcos, 70% dos atendimentos são encaminhamentos do
sistema público, "a maioria por objeção de consciência", diz a
diretora Sónia Lourenço.
A Associação dos Médicos
Católicos Portugueses, que defendeu o "não" no referendo pela
legalização em 2007, apoia a realização da edição deste ano da Marcha pela
Vida, marcada para o próximo sábado (27) em cinco cidades do país.
A iniciativa vem "em boa
hora" declarou Dom Manuel Clemente, o Cardeal Patriarca de Lisboa, nas
redes sociais. O religioso define o movimento como lugar de "crentes ou
não crentes, mas todos crentes nesta realidade essencial que é a vida humana e
a sua dignidade".
O aborto segue levantando
discussões mundo afora, mas a análise dos números oficiais de Portugal mostra
que o procedimento é fundamental na estruturação da política de planejamento familiar
do país.
"Se
houve alguma medida que se tomou e que diminuiu a mortalidade materna de uma só
vez, mais do que a distribuição de antibióticos, mais do que introdução de
transfusões de sangue, já que a maioria das mulheres morria com hemorragias
pós-parto ou com infecções puerperais, a medida que mais depressa e que por si
só diminuiu a mortalidade materna foi a legalização do aborto", afirma a
médica Ana Aroso à Sputnik Brasil.
De acordo com a Direção Geral
de Saúde, 94% das mulheres que abortaram por opção em 2016 aderiram a métodos
contraceptivos — também de graça na rede pública — depois do procedimento.
Para Ana Aroso, a situação no
Brasil não pode se prolongar. "As autoridades públicas têm números para
provar, do ponto de vista da saúde da mulher, que esta é uma medida que tem que
ser urgentemente tomada. Não tomar é deixar morrer mulheres
desnecessariamente". Caroline
Ribeiro – Brasil in “Sputnik Brasil”
*Os
nomes foram alterados para preservar as identidades das entrevistadas.
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