Cem
anos depois
Na semana passada dei um
concerto em Nuremberga, na Alemanha. O espectáculo aconteceu entre o que resta
das paredes de uma igreja que foi bombardeada na Segunda Guerra Mundial. Na
Alemanha, temos a sensação de que a História é uma como uma cicatriz no meio do
rosto: desde fora é impossível não notá-la, e custa-nos desviar o olhar de cima
dela. Mas e desde dentro? Sempre me perguntei como seria nascer num lugar que
carrega tão pesada carga histórica. Como lidar com o passado, quando esse
passado colectivo não é motivo de orgulho mas sim da mais profunda e solene
vergonha?
Durante o Mundial de
futebol, vencido este ano pela Alemanha, pensei várias vezes sobre essas
questões. Estes dias, em conversa com um amigo alemão que é um grande
aficcionado do futebol, ele contou-me que essas mesmas perguntas estão a ser
discutidas no seu país. Explicou-me que, tanto antes como durante o Mundial,
houve um debate interno bastante acalorado sobre se, politicamente, seria bom
ou não que a Alemanha ganhasse a Copa do Mundo. Ele próprio confessou-me que,
por mais que gostasse de futebol e de ganhar, preferia, no fundo, que a sua
seleção tivesse ficado com o segundo ou com o terceiro lugar.
O debate arrancou nas redes
sociais e acabou por saltar para alguns meios de comunicação mais críticos. A
questão central era se a Alemanha de hoje estava ou não preparada para esse
nacionalismo que o futebol alimenta, em especial no campeonato do mundo. Uns
acham que a Alemanha tem o mesmo direito que outras nações de celebrar os seus
feitos desportivos. Afinal, é só desporto. “Não é política”, argumentam. Outros
acham que é ainda demasiado cedo para sacar à rua as bandeiras nacionais. Não
têm a certeza de que a população esteja preparada para uma nova onda de orgulho
nacional, mesmo que este pareça o mais inocente dos nacionalismos. “A Alemanha
tem uma História”, lembram.
Também na semana passada se
comemorou o centenário da Primeira Guerra Mundial e esse foi, justamente, o
tema do festival em que participei em Nuremberga. Acompanhei pela televisão a
transmissão da cerimónia oficial. Estavam reunidos em Liège os chefes de estado
de grande parte dos países envolvidos, inclusive a Alemanha. Fiquei curiosa
para ouvir o discurso do presidente alemão. Joachim Gauck começou por agradecer
humildemente, em nome da população alemã, o facto de ter sido convidado para estar
ali presente, contudo, assumiu que não era fácil estar naquela posição.
Aquele não foi, seguramente,
um discurso fácil. A Alemanha não só perdeu a Primeira Grande Guerra como fez
outra pior a seguir. A Segunda Guerra Mundial talvez seja um dos poucos
episódios da História onde não existem dúvida sobre quem foram os “vilões”
(tomando aqui emprestada a expressão ao Cinema). Mas Gauck falou de cabeça
baixa e fê-lo bem. Em poucas palavras, condenou o seu próprio país e assumiu o
quão imoral foi a Alemanha no passado. Falou dos perigos do nacionalismo e da
importância da reconciliação. Disse que tínhamos que aprender com a História
para não repetir os mesmos erros.
Depois de uma guerra, é
certo que é preciso perdoar. Só não devemos esquecer, porque a História se
escreve para nos lembrarmos dela, mesmo que seja através das ruínas de um
edifício. A pedra tem uma idade. A pedra também ensina. Derrubar a História de
um país é, por isso, ameaçar o seu destino, roubando-lhe a oportunidade de
aprender com o antigamente. Cem anos depois, será que aprendemos alguma coisa? Aline Frazão – Angola in “Rede
Angola”
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