Em plena pandemia da covid-19, elementos da comunidade
chinesa em Portugal angariam fundos para comprar e fazer doação de máscaras. O
objectivo é ajudar o “seu segundo” país, onde alguns nasceram e todos vivem,
trabalham e têm a escola dos filhos
Foto: Cláudia Aranda |
Em
Lisboa, Nuno Min planeia ir ao final do dia distribuir máscaras cirúrgicas aos
bombeiros e polícias que encontrar pelo caminho em trabalho. “Este é um tempo
difícil e eu quero dar máscaras para ajudar a fazer prevenção e protecção”,
explica ao Ponto Final o jovem piloto de 23 anos, a quem a pandemia da covid-19
já atrasou a entrada na carreira comercial de aviação. “Estou a fazer isto em
nome individual, vou andar na rua e quando encontrar polícias, bombeiros vou
dar um pacote de máscaras, cerca de 50 peças”, explica o jovem originário de
Hangzhou, Zhejiang, há oito anos em Portugal. As máscaras adquiridas em lojas
locais, pagou-as do seu bolso. “As que eu dou são as minhas máscaras privadas,
os polícias e bombeiros são vitais, quando estão a fazer operações têm mais
contacto com as pessoas, é perigoso e, por isso, comecei a ir à rua entregar”,
relata. Entretanto, e até ao final do dia, Nuno Min vai estar na Rua da Palma,
na zona do Martim Moniz, a organizar com outros voluntários do “Centro de
serviço e de apoio à comunidade chinesa em Portugal” a distribuição de máscaras
fornecidas pela Embaixada da República Popular da China em Portugal destinadas
à comunidade chinesa. As embalagens com 10 peças cada são registadas antes de
partilhadas. “Devemos fazer ‘scanning’ do código QR para fazer o registo
na embaixada”, explica o voluntário.
É
quarta-feira e completa-se uma semana desde que, a 18 de Março, foi decretado o
estado de emergência para travar a pandemia da covid-19, que entrou em vigor às
00h00 do dia 19. As ruas foram ficando vazias de gente, muitas lojas e
restaurantes encerraram, alguns ainda antes da implementação do confinamento
obrigatório para doentes com covid-19 e recolhimento domiciliário para a
generalidade da população. Foram suspensos o comércio e serviços. Há muito que
a população chinesa se tornou invisível, não anda ninguém na rua, estão
resguardados em casa. Os negócios fazem-se à porta fechada, por telefone ou
WeChat, a rede social chinesa equivalente ao WhatsApp. A excepção à regra
acontece em dia de fazer doações.
Em
Vila do Conde foi com as palavras de ânimo “Força Portugal” que foram doadas
1500 máscaras certificadas e de utilização hospitalar à câmara municipal por um
grupo de 24 pais e mães de crianças da comunidade chinesa daquela zona do país
– a entrega fez-se na terça-feira, dia 24. “Conseguimos 1500 máscaras N95, nós
comprámos estas máscaras para doar à câmara municipal de Vila do Conde, para
eles distribuírem pelos hospitais”, explica Jie Zheng Chiou. Quem se encarregou
de encontrar a mercadoria foi outra mãe, Jiang Xiaoqing. “Comprámos através de
um intermediário, a senhora Jiang viu que um senhor tinha essas máscaras à
venda, não é preço de origem, é mais caro, decidimos comprar para doar. Então
mandámos mensagem para um grupo de WeChat para quem quisesse partilhar. No fim,
juntámos 24 pais e mães de alunos do Colégio Luso-Internacional do Porto”, diz
Jie. Metade das máscaras seguiram no mesmo dia para o Centro Hospitalar Póvoa
de Varzim e Vila do Conde, adiantou ao Ponto Final a presidente da Câmara
Municipal de Vila do Conde, Elisa Ferraz.
Ajudar o “segundo país”
Foto: Cláudia Aranda |
Ultrapassada
a angústia de poderem ver os familiares infectados na China, a propagação da
covid-19 na Europa é o que mais inquieta a população chinesa, cerca de 35 mil,
segundo Y Ping Chow, presidente da Liga dos Chineses em Portugal. Neste número
incluem-se os que já nasceram no país e que são naturalizados portugueses, por
isso os números da Liga não coincidem com as estatísticas oficiais do Serviço
de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que indicam no relatório publicado online
uma população residente em Portugal de 25 357 pessoas com nacionalidade chinesa.
Só em Vila do Conde concentram-se cerca de dois mil cidadãos de origem chinesa,
na zona industrial de Varziela onde se localiza aquele que é descrito como o
maior centro empresarial do país. A autarca Elisa Ferraz explica que esta é
“uma comunidade muito antiga. Temos muitos elementos que já aqui nasceram, que
aqui fizeram o seu percurso de vida, que frequentam as nossas escolas,
nomeadamente o ensino superior, e que também participam na vida associativa
concelhia, quer cultural, quer desportiva, portanto é uma comunidade que está
perfeitamente integrada na vivência deste nosso concelho”.
Depois
de se unir para apoiar familiares na China durante o pico do surto da doença
respiratória aguda com origem em Wuhan, na província de Hubei, a comunidade
agora volta a mobilizar-se para ajudar as cidades e concelhos onde se inserem.
“Esta pandemia é uma coisa muito grave, quando na China deu-se esta doença nós
ajudámos os nossos familiares, comprámos máscaras aqui em Portugal para mandar
para a China. Muitas comunidades chinesas fizeram isso, na Europa, nos Estados
Unidos, mandaram tudo para a China. Desta vez está a acontecer a mesma coisa e
nós decidimos ajudar”, explica outro pai do grupo de 24, empresário, chinês
nascido e criado em Portugal, que prefere não ser identificado. “Acho que é uma
preocupação para nós comunidade chinesa, Portugal é o nosso segundo país, e
queremos ajudar tal como ajudámos a China. Temos que ajudar onde nós estamos,
onde temos as nossas empresas e família e a escola dos nossos miúdos. Para a
maior parte dos chineses que estão cá há mais anos a reforma também vai ser em
Portugal, ou seja este é o nosso segundo país”, afirma o empresário com negócio
no Porto.
Y
Ping Chow reforça a ideia afirmando que “o chinês sente que está a viver em
Portugal, o dinheiro que ganha também ganhou a trabalhar aqui, portanto sente a
obrigação de contribuir e ajudar o seu segundo país”.
Conselhos que vêm da China
A
comunidade chinesa reproduz em Portugal o modelo recomendado pelos familiares e
autoridades na China, apesar de a Direcção-Geral de Saúde em Portugal, assim
como a Organização Mundial de Saúde (OMS), desincentivarem o uso da máscara por
pessoas sem sintomas, alegando não haver evidência que a sua utilização previna
a infecção. Não obstante o uso da máscara não ser obrigatório, tal como o é na
China continental, Macau e Hong Kong, onde se defende que a sua existência
reduz a probabilidade de transmissão, a procura em Portugal aumentou, assim
como a especulação de preços. Ainda na semana passada, na multicultural Rua do
Benformoso, junto ao Martim Moniz, em Lisboa, vendia-se cada máscara por três
euros – que baixava a dois se regateado. Nas poucas farmácias onde se consegue
encontrar o escasso material o preço por unidade multiplicou nas últimas
semanas, alegando aumento por parte dos fornecedores.
“Nós,
agora, estamos em casa e sair só com máscara é o que os meus pais que estão na
China aconselharam. Ficar em casa, porque não precisamos de fazer mais nada para
evitar [a doença]. E sair com máscara. É o que se passou na China, estamos aqui
e estamos a ouvir os conselhos daqueles que já passaram por isto, os meus pais
ficaram em casa um mês e meio quase dois meses, eles estão em Zhejiang”,
explica Jie. Também o empresário que não quer ser identificado está convencido
de que o uso da máscara é essencial. “Esta é uma doença muito forte, que se
ultrapassa pela prevenção, acho que toda a gente deveria usar máscara”. Mas,
não há máscaras no mercado nacional que cheguem para os 10 milhões de
habitantes, a distribuir diariamente, admitiu já a autoridade de saúde.
Para
evitar que o coronavírus se propague, alastra-se a solidariedade. Nas redes
sociais o relato de vizinhos chineses que num prédio da capital colocaram à disposição
de todos solução alcoólica desinfectante e onde as crianças vão de porta em
porta distribuir máscaras entusiasmou os cibernautas e já conta com quase sete
mil partilhas. Nas mesmas redes sociais, partilham-se novas aplicações, onde
quem precisa de apoio e os que se voluntariam para auxiliar se podem inscrever.
Para não falar nos anúncios nos prédios residenciais de voluntários que
oferecem ajuda aos vizinhos idosos.
Entretanto,
o grupo de 24 pais e mães, agora em nome da comunidade chinesa do Porto,
prepara-se para doar mais um conjunto de máscaras cirúrgicas, 15 mil, ainda
esta semana. Esta não será, contudo, a última acção. “Estamos a tentar ver se
continuamos, se houver máscaras no mercado, e nós soubermos, vamos comprar e
continuar a doar”, assegura Jie.
Jogar majong e ver CCTV
Em
tempo de pandemia, “os chineses estão em casa, a jogar majong e a ver
televisão, canal CCTV 4, em chinês”, diz Y Ping Chow. A professora Ruike Wang
está em casa desde finais de Fevereiro, quando encerraram as escolas destinadas
a ensinar a língua chinesa aos filhos de chineses, em Vila do Conde, antes
mesmo do primeiro caso de coronavírus em Portugal ser confirmado, a 2 de Março.
“Já tínhamos parado as aulas, porque os pais estavam preocupados”, diz a jovem
de 25 anos. Também originária de Zhejiang, a professora viveu em Pequim até vir
para o Porto, há três anos, depois de estudar tradução e interpretação de
chinês para português em Macau. Apesar da situação ter melhorado na China,
Ruike não tenciona regressar a Pequim tão cedo, para “não correr riscos nos
aviões”.
Foto: Cláudia Aranda |
Em
termos económicos, Y Ping Chow não tem dúvidas de que a comunidade vai sofrer
um embate. Mas, fazer uso das medidas de apoio às empresas prometidas pelo
Executivo português, em princípio, está fora de questão. “Há sempre impacto
económico, porque nós próprios deixamos de ir ao restaurante”, diz. Por isso,
“as empresas vão enfraquecer, vão sofrer muito, mas paciência, vamos aguardar,
porque nós não queremos sobrecarregar mais o Governo português”.
Já
em meados de Fevereiro, ainda antes do surto ter alastrado a Portugal,
proprietários de lojas e restaurantes chineses queixavam-se de quebras de
clientela devido ao coronavírus. Na altura, a Liga promoveu visitas a
estabelecimentos por entidades portuguesas para afastar o clima de desconfiança
que se havia instalado e mostrar “o apoio institucional português que a
comunidade tem”, diz o seu presidente. No início do surto, associar o
coronavírus a quem quer que tivesse aparência asiática tornou-se prática
recorrente, vulgarizaram-se as chalaças e observações xenófobas. Instalou-se um
“mal-estar”, sobretudo nas escolas, refere Y Ping Chow, afirmando que “as
crianças portuguesas afastaram-se das crianças chinesas com quem brincavam,
porque os pais pediam para afastarem-se, porque podiam ter o vírus”. Também a
professora Ruike Wang conta que viveu um episódio pontual que lhe criou algum
desconforto quando um dia estava sentada num centro comercial no Porto e um
grupo de jovens lhe gritou a palavra “coronavírus”.
“Vivemos
tempos estranhos e isto traz o melhor e o pior que temos em nós enquanto seres
humanos”, comenta a actriz Jani Zhao, portuguesa de origem chinesa, que viveu
situação idêntica, quando numa esplanada alguém fez um comentário na sua
presença relacionado com o vírus. Um episódio desagradável, que Jani Zhao
atribui “ao medo profundo que as pessoas têm do desconhecido”.
A
27 de Março, o novo coronavírus, responsável pela pandemia da covid-19, já
havia infectado mais de meio milhão de pessoas em todo o mundo, das quais mais
de 24 mil morreram, indicava o mapa interactivo da Johns Hopkins University,
nos EUA.
Perante
o flagelo, Jani prefere encarar a pandemia e o período de recolhimento
domiciliário como oportunidades de mudança. “O mundo estava a precisar que as
pessoas parassem um bocadinho, os níveis de poluição baixaram drasticamente, o
céu na China está azul novamente, a minha família em Xangai diz que agora ouve
os pássaros”. E, acrescenta, “apesar de ser uma tragédia e uma catástrofe
acredito que seja uma oportunidade para a humanidade se redefinir, reestruturar
e reorganizar, é uma altura importante para reflectirmos”. Cláudia Aranda –
Portugal in “Ponto Final” - Macau
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