Classificação
coincide com nova exposição sobre o São José Paquete de África, um dos
primeiros a fazer a ligação Moçambique-Brasil. Estima-se que 212 escravos
tenham morrido neste naufrágio ocorrido a 27 de Dezembro de 1794 nas imediações
do Cabo da Boa Esperança
Os destroços do navio negreiro
português São José, que naufragou ao
largo da Cidade do Cabo em 1794, causando a morte a mais de 200 escravos, foram
declarados este mês património nacional da África do Sul. Este sítio
arqueológico subaquático, a que correspondem aqueles que serão eventualmente os
primeiros vestígios alguma vez encontrados de um navio que se afundou ainda com
escravos africanos a bordo, está agora classificado e é motivo de uma nova
exposição.
O São José Paquete de África transportava 512 negros acorrentados.
Vinha de Lisboa, de onde saiu em Abril de 1794, e passou por Moçambique para
carregar escravos. Em Dezembro, encetava uma viagem que se previa que durasse
perto de quatro meses, rumo ao Brasil, onde os escravos eram esperados como
mão-de-obra forçada nas plantações de cana-de-açúcar. Mas a difícil travessia
do Cabo da Boa Esperança revelar-se-ia fatal. Fará precisamente 224 anos esta
quinta-feira, 27 de Dezembro, que o navio encontrou um rochedo e se estilhaçou,
a cerca de 50 metros da costa, na zona de Clifton, perto da Cidade do Cabo. O
comandante, o português Manuel João Perreira (irmão do proprietário do barco,
António Perreira), e a tripulação sobreviveram, mas estima-se que 212 pessoas —
metade dos escravos — terão morrido afogadas. Os escravos sobreviventes foram
depois vendidos na Cidade do Cabo.
Durante mais de dois séculos,
o navio esteve submerso. Os caçadores de tesouros que primeiro encontraram os
seus destroços, há cerca de 30 anos, identificaram-no inicialmente como um
navio holandês, mas em 2015, depois de uma investigação dos arqueólogos do
projecto Slave Wrecks Project, concluiu-se que se tratava do navio português São José Paquete de África.
Um dos elementos essenciais
para a sua identificação foram as barras de ferro com que o navio saíra de
Portugal e que serviam de lastro ou contrapeso, conforme a carga humana
variável. A informação constava do manifesto de carga do São José depositado no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa.
A classificação oficializada
no início do mês coincidiu com a inauguração de uma exposição no Museu Iziko,
da Cidade do Cabo. Unshackled History:
The Wreck of the Slave Ship, São José, 1794 exibe alguns artefactos
recuperados do fundo do mar, incluindo, além das referidas barras de ferro,
grilhetas e correntes usadas para prender os moçambicanos escravizados, que
estavam cobertas por sedimentos e areia.
Se não tivesse naufragado pelo
caminho, o São José Paquete de África
teria cumprido uma das primeiras viagens de tráfico humano entre Moçambique e o
Brasil, rota que se tornaria frequente e estaria activa durante mais de um
século. “Estima-se que mais de 400 mil pessoas da costa oriental africana
tenham feito essa viagem entre 1800 e 1865. Transportadas em condições
desumanas em viagens que demoravam dois a três meses, muitas não sobreviveram à
viagem”, recorda o museu sul-africano.
A mostra conta ainda com uma
simulação interactiva do local do naufrágio e dos respectivos destroços, uma
ferramenta desenvolvida pelo Museu Smithsonian de História e Cultura
Afro-Americana, que acolheu já uma exposição sobre o navio português e que está
intimamente associada ao projecto – não sem algumas críticas pela sua
preponderância sobre a do país africano. De acordo com a South African
Broadcasting Corporation, o United States Ambassador’s Fund for Cultural
Preservation doou cerca de 420 mil euros para a investigação do Slave Wrecks
Project em 2016.
“Portugal foi pioneiro no
tráfico transatlântico. Mais de 40% dos escravos foram levados em navios
portugueses, um valor superior ao de qualquer outro país – Espanha,
Grã-Bretanha, França, Holanda”, lembrava em 2016 ao Público o antropólogo
Stephen Lubkemann, coordenador internacional do Slave Wrecks Project.
Um naufrágio coloca sempre
algumas questões sobre a titularidade do património – no caso, o navio é
português, as vítimas são moçambicanas, os destroços foram encontrados em águas
sul-africanas. Esta classificação pela África do Sul visa, independentemente
disso, contar a história do São José
e das suas vítimas. “Era uma nota de rodapé na História”, comentou à emissora
pública sul-africana o arqueólogo marinho Jaco Boshoff, envolvido na coordenação
da exposição.
“Dar memória à história do São José num contexto global é um
projecto significativo e notável”, destaca em comunicado Rooksana Omar,
presidente do Museu Iziko. “É mais do que história africana, americana, moçambicana
ou europeia. É uma história sobre as nossas histórias partilhadas.” Joana Cardoso – Portugal in "Público"
Sem comentários:
Enviar um comentário