Faz
20 anos a descoberta de uma preciosidade científica que trouxe um novo olhar
sobre a evolução humana e a relação entre o Homo sapiens e os neandertais. A
antropóloga que escavou o esqueleto da criança pediu agora que seja tesouro do
país
Cidália Duarte e João Zilhão
abrem uma caixa à prova de quase tudo no Museu Nacional de Arqueologia, em
Lisboa. Lá dentro está uma preciosidade – os ossos da criança do Lapedo,
devidamente acondicionados numa espuma branca de polietileno expandido. A caixa
é bem grande, pelo que do seu interior a antropóloga e o arqueólogo vão puxando
por umas alças os tabuleiros – quatro – por onde se distribuem os ossos,
pequenos e frágeis, de uma criança que viveu há 29 mil anos e que alguém
sepultou com todo o cuidado. É um reencontro de Cidália Duarte e João Zilhão
com o esqueleto, os responsáveis pela sua escavação no vale do Lapedo, concelho
de Leiria, há 20 anos. A festa de aniversário é este fim-de-semana no Museu de
Leiria. Assinalando a data, Cidália Duarte pediu há dias à Direcção Geral do
Património Cultural a classificação do esqueleto como “bem móvel de interesse
nacional”. Por outras palavras, como tesouro do país.
“Cumpre os requisitos para ser
um tesouro nacional”, sublinha a antropóloga, que há 20 anos estava no então
Instituto Português de Arqueologia (IPA) e agora trabalha na Direcção Regional
de Cultura do Norte, tutelada pelo Ministério da Cultura. “Tem de se comprovar
a sua singularidade e raridade. E ele é singular: é o único esqueleto [humano]
quase completo do Paleolítico Superior em Portugal e um dos poucos do mundo.
Pelo facto de ser uma criança, muito frágil, também é raríssimo”, nota.
“A sua autenticidade também
está comprovada aqui: a obra de arte é da própria natureza”, acrescenta Cidália
Duarte, dizendo que o esqueleto da criança do Lapedo contém uma herança
biológica da humanidade, em particular das populações europeias daqueles
tempos. Acresce que também está comprovada a sua antiguidade, como exige ainda
a legislação para a classificação como tesouro nacional, uma vez que o sítio
arqueológico onde foi descoberto está datado. E, por fim, a memória: “O que nos
traz para a memória colectiva é o modo de vida e a bagagem biológica dessa
época de há pouco menos de 30 mil anos, além das características culturais de
como a sepultura estava feita.”
Acasos
felizes
Vamos agora ao momento da
descoberta, contando a história desde o início, para memória futura. No Outono
de 1998, um estudante universitário na área do património, Pedro Ferreira,
oriundo da região, lembrou-se de ir ao vale do Lapedo à procura de pinturas
rupestres que pudessem resultar num trabalho da sua licenciatura. Encontrou
pinturas de três figuras antropomórficas com alguns milhares de anos,
informação que acabou por chegar ao IPA. Na altura João Zilhão era o presidente
do IPA e pediu a Pedro Souto e João Maurício, da Sociedade Torrejana de
Espeleologia e Arqueologia (em Torres Novas), que fossem averiguar esse relato.
As figuras antropomórficas
existiam realmente. Mas enquanto estavam no local, a 28 de Novembro de 1998,
Pedro Souto e João Maurício repararam no outro lado do vale num abrigo rochoso
que parecia promissor como sítio paleolítico. Ao aproximarem-se, viram que uma
terraplenagem tinha deixado à vista dezenas de restos de fauna e rochas de
sílex talhadas. Era uma jazida do Paleolítico Superior. João Maurício
apercebeu-se de uma reentrância no abrigo e escavou-a com a mão: foi aí que se
deparou com alguns ossos, que reconheceu como possivelmente humanos. Tapou
tudo.
O que se seguiu, a 6 de
Dezembro, foi uma inspecção ao local por João Zilhão, Cidália Duarte e Ana
Cristina Araújo (também do IPA), incluindo ainda Pedro Ferreira, Pedro Souto e
João Maurício, entre outros elementos. Cidália Duarte reconheceu de imediato
ossos do braço e da mão de um único indivíduo humano, uma criança. E quando os
mostrou a João Zilhão, ele notou que estavam tingidos de ocre vermelho,
substância usada em ritos funerários que se encontra em sepulturas do período
Gravetense (entre há 30 e 26 mil anos), do Paleolítico Superior. Só podia ser a
sepultura de uma criança. “Temos de tratar deste assunto já!”, recorda João
Zilhão, agora na Universidade de Barcelona.
Ficaram tão entusiasmados que,
no regresso a Lisboa, pararam o carro algumas vezes para verem o material que
recolheram e se convencerem de que era mesmo uma sepultura gravetense. “E para
pensar: ‘O que vamos fazer agora?’”, lembra Cidália Duarte.
Logo a 12 de Dezembro, com o
Natal à porta, iniciaram uma escavação arqueológica de emergência. “Era
Inverno, estava um frio horrível, a chover. Mas queríamos tirar o esqueleto”,
diz João Zilhão. A escavação terminou a 9 de Janeiro de 1999. Por essa altura
já a descoberta era notícia nacional. Perto do Natal, o telejornal da RTP1
anunciava ao país a descoberta do esqueleto de uma criança do Paleolítico
Superior, um presente natalício para os arqueólogos, e o achado foi noticiado
em vários jornais e televisões.
O que foi surgindo aos olhos
dos investigadores durante a escavação, só com uma pequena pausa na véspera do
dia de Natal, revelava que era uma criança muito pequena. Teria cerca de quatro
anos na altura da morte.
Também se ia percebendo o
grande cuidado posto na preparação da sepultura. Foi purificada com um ramo de
pinheiro-da-casquinha, que foi aí queimado. Sobre o ramo queimado colou-se o
corpo da criança, embrulhado numa mortalha de pele coberta de ocre vermelho. O
corpo estava um pouco inclinado para a esquerda, com o pé esquerdo sobreposto
no direito. Além disso, deixaram-lhe um coelho como oferenda, uma vez que se
encontraram ossos deste animal, também com ocre, entre as pernas da criança.
Por fim, colocaram-lhe adornos. Junto do pescoço, o esqueleto tinha uma concha
marinha perfurada e, perto da cabeça, quatro dentes caninos de veado furados.
Se esta descoberta já tinha
importância científica só por si – na altura, era mesmo o único esqueleto quase
completo de uma criança do Paleolítico Superior na Europa –, a discussão
científica que desencadeou a seguir deu-lhe ainda maior relevância mundial e
pôs Portugal no mapa-múndi da evolução humana.
Da
discórdia à razão
João Zilhão falou da
descoberta a Erik Trinkaus, um antropólogo norte-americano especialista em
anatomia e características morfológicas dos nossos antepassados do Paleolítico
Médio e Superior, que veio a Portugal visitar a escavação no início de Janeiro
de 1999. Enquanto os trabalhos arqueológicos ainda decorriam, Erik Trinkaus ia
analisando e medindo em Lisboa, no laboratório, os ossos que chegavam do
terreno. Já nos EUA, Trinkaus fazia o estranho pedido a Cidália Duarte e João
Zilhão para voltarem a medir o comprimento do fémur e da tíbia. Achava que se
tinha enganado nas medições. Mas não tinha.
Em Junho de 1999, a equipa
anunciava ao mundo, na revista Proceedings of the National Academy of Sciences
(PNAS), que o esqueleto da criança apresentava traços anatómicos típicos de
dois grupos humanos que, durante muito tempo, se consideraram perfeitamente
distintos – os humanos já anatomicamente modernos (Homo sapiens) e os
neandertais. Muitas outras publicações se seguiram.
Há 29 mil anos, os humanos
modernos, grupo a que pertencia a criança, já se tinham espalhado pela Europa
vindos de Leste, enquanto os neandertais (anatomicamente diferentes dos humanos
actuais) já estavam extintos. O seu último reduto foi na Península Ibérica, há
cerca de 34 mil anos (segundo datações entretanto calibradas). Além das razões
da extinção dos neandertais, que tipo de relacionamento houve entre eles e os
humanos modernos era motivo de um intenso debate científico. Tinham-se matado,
acabando os neandertais extintos como grupo humano? Ou procriaram e deixaram
descendentes com uma mistura de características?
Ora, a equipa afirmava que o
esqueleto do Lapedo ainda mantinha traços morfológicos de cruzamentos antigos
entre os dois grupos humanos – ocorridos pelo menos cinco mil anos antes do
nascimento da criança, uma vez que ela viveu há 29 mil anos e os neandertais
tinham desaparecido há 34 mil. E a prova dessa miscigenação estava nas pernas e
na anca da criança. Os neandertais tinham pernas curtas e ancas largas,
enquanto nos humanos modernos as pernas eram longas e as ancas estreitas. A
criança do Lapedo misturava os dois traços: ancas estreitas, como os humanos
modernos, e pernas curtas como os neandertais. Também tinha queixo, um traço
dos humanos modernos, inexistente nos neandertais, mas estava metido para
dentro de forma invulgar.
Tais afirmações de que a
criança anatomicamente moderna tinha antepassados neandertais foram alvo de um
ataque feroz, dizendo-se que não havia provas genéticas da procriação entre
esses dois grupos de humanos. A evolução das técnicas de genética permitiria
mais tarde a descodificação tanto do nosso genoma como o dos neandertais,
matando finalmente essa discussão em 2010. Temos mesmo um bocadinho dos
neandertais dentro de nós ainda hoje. As populações actuais da Eurásia
(território onde os neandertais viveram) partilham genericamente entre 2% a 4%
de ADN neandertal. “Esse valor era alto nas populações do Paleolítico Superior
e, com o tempo, tem vindo a diminuir”, refere João Zilhão. Ainda há poucas
semanas um estudo genético concluía que os dois grupos de humanos se tinham
reproduzido várias vezes ao longo de dez mil anos. “Tem sido divertido ver que
os geneticistas escrevem actualmente coisas que parecem tiradas, palavra por
palavra, do que escrevemos há mais de uma dúzia de anos.”
Um
“documento vivo”
Passados 20 anos, finda essa
polémica, o esqueleto é agora importante porquê? “Foi o achado certo no momento
certo, que abriu a caixa de Pandora da revisão dos estudos sobre os neandertais
e do seu papel na evolução humana, sobre o que é ser Homo sapiens e um humano
anatomicamente moderno e da profunda revisão da ortodoxia no final do século
XX, actualmente em curso”, responde João Zilhão. “Já havia uma série de
elementos que punham em questão que os neandertais eram uma espécie diferente,
que se tinham extinguido sem deixar descendentes e que foram substituídos por
uma espécie nova aparecida em África há 150 mil a 200 mil anos [os humanos
modernos] e que, graças à superioridade cognitiva que outras espécies não
tinham, nomeadamente os neandertais, conquistaram o mundo.”
Também para Cidália Duarte o
esqueleto da criança do Lapedo trouxe outros olhares. “Depois de ter sido
descoberto e de ter havido uma imensa polémica sobre a procriação entre humanos
anatomicamente modernos do Plistocénico e neandertais, essa polémica gerou a
adopção de um olhar novo sobre outros esqueletos de época semelhante”, frisa.
“Depois destes anos todos, a genética – não a genética directa na criança –
confirmou que a hipótese da miscigenação estava correcta. Portanto, o esqueleto
da criança do Lapedo é um ‘documento vivo’ dessa miscigenação e, assim, tem de
ser preservado.”
A sua classificação como
tesouro nacional, além de garantir essa preservação, assegurará que o esqueleto
não sairá para qualquer lado, controlando-se os seus movimentos. “Esses
movimentos ficarão registados no Conselho Nacional de Cultura e trabalhos sobre
a criança têm de ser alvo de parecer deste órgão consultivo”, explica Cidália
Duarte, explicando que qualquer cidadão pode pedir a classificação de um bem cultural
de interesse nacional. “Na minha opinião, justifica-se que o esqueleto fique
como tesouro nacional incorporado no acervo do Museu Nacional de Arqueologia
(MNA).”
Uma opinião partilhada pelo
director do MNA, António Carvalho, que considera estes restos osteológicos
especiais e relevantes para o museu: “Qualquer exposição permanente que trate
da ocupação humana em território português não pode prescindir deste bem.”
António Carvalho não vê motivos para não seja classificado como tesouro
nacional: “Há uma grande unanimidade sobre o valor deste bem.” Avançar para já
qual será o desfecho do pedido de classificação é “prematuro”, explica a
assessora de imprensa da Direcção- Geral do Património Cultural, Céu Novais,
uma vez que ele deu entrada agora e ainda terá de ser analisado.
Foi para viajar para a
Alemanha em 2006 que a caixa de um contraplacado à prova de destruição, com
rodinhas, foi construída. É à prova de fogo e de submersão. “É uma caixa que
flutua. Foi feita quando o esqueleto foi pela primeira e única vez exposto em
público, na exposição comemorativa dos 150 anos da descoberta do Neandertal, em
Bona”, conta Cidália Duarte. Teresa
Firmino – Portugal in "Público"
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