Em
trinta anos, a investigação com o mais esquivo mamífero marinho do território
português avançou extraordinariamente. As focas-monge são agora um tesouro bem
mais conhecido
Navegando nas águas
envolventes de uma ilha paradisiacamente florestada, a tripulação da caravela
que se encontrava sob comando de João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e
Bartolomeu Perestrelo, os melhores navegadores e cartógrafos portugueses do início
do século XV, mostrou-se perplexa. O som intenso e assustador semelhante a
uivos de lobos que provinha daquelas margens rochosas despertava um misto de
emoções. Repletos de medo, mas movidos pela curiosidade, estes marinheiros
foram ao encontro do que seria o primeiro contacto do povo lusitano com uma
população de lobos-marinhos.
Pouco tempo foi necessário
para perceberem que estes seres estranhos, monstruosos e assustadores, tinham
afinal de contas características bastante dóceis. Com a descoberta de um novo
recurso de fácil exploração, iniciou-se um massacre que levou uma comunidade
com cerca de dois mil animais à beira da extinção. Procurado pela sua pele que
fornecia um excelente couro e pela gordura, usada nos sistemas de iluminação e
cosmética, o lobo-marinho foi um dos primeiros produtos obtido e comercializado
do Novo Atlântico para a Europa.
A foca-monge do Mediterrâneo (Monachus monachus), aqui também
conhecida como lobo-marinho, é a foca mais rara à face da Terra. No ano de
1996, foi classificada pela União Internacional para a Conservação da Natureza
como espécie ameaçada em Perigo Crítico e, desde 2015, passou a Ameaçada. É
protegida por diversas convenções internacionais, por legislação nacional e
regional.
Outrora abundante e dispersa
por toda a bacia do Mediterrâneo, mar Negro, costa atlântica africana,
arquipélagos das Canárias, Açores e Madeira, a espécie terá actualmente cerca
de quinhentos indivíduos confinados em escassas regiões, como alguns países do
Mediterrâneo, a Mauritânia e o arquipélago da Madeira. Lamentavelmente, hoje
restam apenas alguns sobreviventes nas Desertas e mesmo na Madeira.
Este mamífero marinho de porte
imponente, um dos maiores da família dos focídeos, pode atingir três metros de
comprimento e pesar trezentos quilogramas. Uma constituição física assim requer
alimento em abundância e se há aspecto com que os lobos-marinhos não brincam
são as suas refeições. Apneístas exímios, mergulham por mais de quinze minutos
em fundos rochosos e baixios próximos da costa, de forma a garantir peixe
variado, cefalópodes e alguns crustáceos no seu cardápio. Quando esgotados das
suas caçadas, estes seres admiráveis podem desfrutar de longas sestas no fundo
marinho, retomando pontualmente o fôlego à superfície, sem acordar.
Vivem 20 a 25 anos solitários,
o limite da sua longevidade, mas tornam-se mais gregários na época de criação.
Durante esta fase, procuram praias abrigadas no interior de grutas ou mesmo
praias abertas para acompanharem as suas crias durante quatro meses.
À semelhança dos humanos, o
período de gestação é de nove meses. A fecundação ocorre quando os machos,
sorrateiramente, tentam a sua sorte na fase mais receptiva das fêmeas. Ou seja,
durante as brincadeiras e ensinamentos das progenitoras com os seus
descendentes no mundo subaquático.
As gotas de humidade formadas
pela condensação caíam no chão, marcando o compasso daquilo que parecia ser um
filme de suspense. Passo a passo, Rosa Pires, bióloga do Instituto das
Florestas e Conservação da Natureza, IP-RAM e coordenadora do projecto LIFE
para esta espécie, e o vigilante da natureza Sérgio Pereira, mergulhados na
escuridão de um covil, avançavam cautelosamente para não acordarem o seu
morador de garras e dentes afiados. Sem que ninguém desse conta, de cada vez
que a bióloga pousava na rocha uma caixa estanque com equipamento, gerava-se
ruído. “Pára tudo, olha!”, sussurrou Sérgio, enquanto deu uma cotovelada à
bióloga. Naquele instante, o corpo da investigadora foi dominado por
arrependimento dos pés à cabeça.
As intempéries constantes que
se fizeram sentir na Primavera do ano 2018 levaram a uma quebra de protocolo
necessária em prol do estudo dos animais mais emblemáticos da região. Sem
lanternas e sabendo da existência de um lobo-marinho no interior daquela gruta,
os dois conservacionistas decidiram prosseguir com a operação, acreditando que
não iriam perturbar o animal. Não podiam estar mais enganados!
O coração da bióloga palpitava
com mais força à medida que o volume de calor apresentado pelo monitor do sensor
térmico que segurava na mão aumentava e se deslocava na sua direcção.
“Ficámos completamente
paralisados, quando a escassos centímetros de nós, sentimos um respirar pesado,
com hálito semelhante ao odor de uma tonelada de peixe podre”, contou. Felizmente,
a única intenção desta foca incomodada pelo barulho, foi a de abandonar o
local. Sem mais demoras, Sérgio Pereira e Rosa Pires apressaram-se a concluir a
instalação de um sistema pioneiro para monitorizar esta espécie.
No ano crítico de 1988, quando
restavam apenas oito focas-monge no território português, foi criado um
Programa de Conservação pelo Serviço do Parque Natural da Madeira, com o
objectivo de proteger esta espécie e o seu habitat. Ao longo das últimas três
décadas, superando todas as expectativas, os trabalhos de monitorização e
acções de educação e sensibilização ambiental tornaram a recuperação desta
população uma verdadeira história de sucesso internacionais. “São seres
extremamente resilientes que têm vindo a concretizar os nossos desejos mais
ambiciosos”, explicou a bióloga, sorridente e orgulhosa.
Durante os primeiros anos, a
equipa do projeto, consciente da árdua missão que tinha pela frente, dizia com
frequência, em tom de brincadeira, que um dia avistariam lobos-marinhos em
terra firme ou que estes haveriam de regressar das Desertas à Madeira. Afinal,
essa presença chegou a ser numerosa. O próprio topónimo de Câmara de Lobos
remete para uma época em que estas focas se banhavam nas praias da Madeira.
Por vezes, os sonhos tornam-se
realidade. Aquilo que um dia não passava de ilusão, hoje sucede apesar de a
espécie continuar a lutar pela sobrevivência. A interacção de lobos-marinhos
com actividades piscatórias da região provocou a sua mortalidade acidental e
intencional. Mais recentemente, a pesca ilegal é o maior factor de ameaça.
Longos foram os dias a
percorrer a reserva marinha “Costa de las Focas”, na península de Cabo Branco,
enquanto acompanhavam os trabalhos de campo da Fundação CBD-Habitat. Rosa Pires
e a sua equipa estavam absolutamente maravilhados com os métodos inovadores que
esta organização não-governamental desenvolvera para a proteção da foca-monge
na Mauritânia. Perceberam de imediato que era imprescindível replicar tais
operações na população madeirense. Após discutido o assunto, foi ali, em terras
áridas do Noroeste africano que nasceu a ideia do que viria a tornar-se em
2014, o projeto LIFE Madeira Lobo-marinho, cofinanciado pelo instrumento
financeiro do programa LIFE da União Europeia: uma parceria entre o IFCN, IP-RAM
e a Fundação CBD-Habitat.
Na génese, o Projecto Life
pretendia apurar de forma eficaz o estado de conservação da espécie M. monachus. Os conservacionistas,
porém, estavam longe de imaginar as descobertas incríveis que este estudo viria
a revelar ao mundo. Tratando-se de uma espécie com um efeito populacional
reduzido devido à acção humana, os novos sistemas de monitorização não
invasivos implicam a utilização de câmaras fotográficas automáticas e um
sistema de rastreamento por GPS via satélite.
No primeiro caso, os aparelhos
foram instalados nos abrigos mais frequentados por estes animais: quatro grutas
e uma praia nas Desertas e duas grutas na ilha da Madeira. Uma vez que as
grutas se encontram em escuridão total (o ambiente escolhido pelos lobos-marinhos),
são disparados flashes infravermelhos
de forma a captar imagens sem incomodar quem ali descansa. Para eliminar os
resíduos de sal que se vão acumulando nas lentes, é utilizado um sistema de
limpeza composto por tanques de água e um programador de rega. Com uma
autonomia de largos meses, estes dispositivos são visitados apenas pontualmente
para a recolha de imagens e possível manutenção.
Outro método implica a
colocação de uma pulseira para recolha de informação sobre os movimentos dos
animais no mar. Na verdade, é um jogo de paciência. Pela calada e com mestria
de arte ninja, biólogos e vigilantes da natureza colocam pulseiras de cabedal
num dos membros posteriores dos animais. Fixados a estas pulseiras,
encontram-se dispositivos de GPS e TDR que registam dados de localização, tempo
e profundidade. Quando chega a altura certa, as pulseiras são recolhidas da
mesma forma que foram instaladas.
Deliciados com os resultados
apurados, os investigadores tentavam controlar as suas emoções para não transformarem
o escritório num salão de festas. Todas as conjecturas, baseadas nos trabalhos
com métodos mais simples como a monitorização através da observação directa
destes animais, ao longo de três décadas, estavam agora confirmadas
cientificamente. “Valeram a pena todos os segundos das incontáveis horas,
sentada naquele rochedo e de binóculo a olhar o mar”, conta Rosa Pires, com
alguma nostalgia. Não existe espaço para dúvidas. Uma população que quase
desapareceu do nosso planeta, hoje, embora ainda muito frágil, conta com
exactamente 25 indivíduos.
À medida que os computadores
descodificavam informação, a equipa surpreendia-se mais. “Foi pura magia ver
pela primeira vez aquelas crias com apenas algumas horas de vida, no interior
das grutas”, confessou a investigadora. Através da utilização destas câmaras, é
agora possível acompanhar o número de nascimentos de forma mais precisa.
Sabia-se que as focas-monge
tinham regressado recentemente à Madeira, após décadas de isolamento nas
Desertas. Contudo, através do sistema GPS, foi possível constatar que estes
animais batem recordes de maratonas aquáticas. No espaço de apenas um mês, são
capazes de realizar dezenas de viagens entre as ilhas.
A cereja no topo do bolo deste
projecto foi a revelação de comportamentos de mergulho que se encontravam
guardados como segredos de deuses. Até aqui, acreditava-se que não passariam de
120 metros de profundidade. Agora, sabe-se que nadam com regularidade pelos
fundos, a 200 e a 300 metros, atingindo a incrível profundidade máxima de 394
metros, o maior registo apurado para esta espécie.
O lobo-marinho é um predador
que está no topo da cadeia alimentar. A sua presença indica que estamos perante
um habitat bem preservado. Com o tempo, a luta pela sua conservação tem vindo a
mudar mentalidades e os madeirenses hoje reconhecem-se nesta história de
sucesso, motivo de orgulho para a ciência local e um verdadeiro ícone do
território.
Numa época em que o turismo de
natureza é visto como uma estratégia eficaz para o desenvolvimento económico, a
protecção de pérolas do património natural português, como as focas que uivam
como lobos, é fundamental. João
Rodrigues – Portugal in “Sapo” com "National Geographic"
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