“A miscigenação não é outra coisa que a expressão suprema do Colonialismo”
No
âmbito dos 50 anos do 25 de Abril, a agência Lusa ouviu artistas, escritores,
académicos e pensadores que refletiram sobre a relação entre Portugal e as suas
ex-colónias e sobre a reconciliação com o passado colonial, confluindo para a
necessidade de inverter o esquecimento e o silêncio, a necessidade de “pôr o
dedo na ferida”.
“As
pessoas não pensam no nosso lado da História”, afirma a escritora e ‘rapper’ Telma Tvon. A especialista em
Estudos Africanos argumenta que essa realidade “passa muito pelo ‘nós não fomos
assim tão maus, nós até nos misturámos’.”
“A
questão da Lusofonia também é um engodo nesse sentido”, prossegue a escritora
luso-angolana. “Há pessoas que acham que por falarmos a mesma língua está tudo
bem, mas é uma questão que nos foi imposta, e foram-nos retiradas as nossas
[línguas]. Se hoje não sei falar kimbundu e umbundu, é porque essa identidade
me foi retirada, ninguém me perguntou nada, fui obrigada a falar português.”
O
investigador Nuno Crespo, diretor da Escola das Artes da Universidade Católica
do Porto (UCP), considera ser necessário resgatar perspectivas locais,
esquecidas, ignoradas, para contrariar a perspectiva dominante “muito
romantizada” da colonização portuguesa: é necessário “pensar a História, não de
uma maneira persecutória, mas de uma maneira crítica, entender que o projeto
colonial português foi um projeto de opressão, de submissão de populações,
tanto no continente africano e na América do Sul, como no Oriente, Índia e
Timor-Leste.”
Na
prática, trata-se de perceber como “a História do vencedor deve ser
complementada, criticamente, com a História dos vencidos”, não uma História
descrita “a partir do nosso ponto de vista europeu, branco, mas a partir do
ponto de vista das populações locais que sofreram com a nossa chegada – a
alteração de modos de vida, culturais – e, obviamente, com a escravatura, com o
tráfico de pessoas negras que fizemos entre África e o Brasil.”
Sobre
uma possível reconciliação com o passado colonial, a escritora Djaimilia Pereira de Almeida tem
escrito – e insiste na ideia – de que não é possível mudar o passado, mas
pode-se reescrever tendo em conta as realidades esquecidas: “No plano pessoal,
das nossas relações e da nossa vida artística, no meu caso, podemos trabalhar
no sentido de usar a arte para reescrever a História, para reverter o
sofrimento, ainda que tal requeira sofrimento, e um confronto com as feridas da
memória. A literatura fabrica o tempo e a tessitura do tempo. Reescrevemos a
vida.”
A
escritora guineense Gisela Casimiro, por seu lado, considera que “a
reconciliação não deveria acontecer nunca”, porque “as consequências e o
desconforto são para sempre” e “o que precisa acontecer é a reparação histórica
urgente.”
Gisela
Casimiro, autora dos livros
de poesia “Erosão” e “Giz”, também considera que não se pode falar apenas em
“sinais” de colonialismo, expressão para “coisas aparentemente ténues e
passíveis de serem facilmente ignoradas”, afirmando que o que experiencia, vê e
denuncia são “casos concretos e constantes de racismo e xenofobia,
consequências diretas da colonização.”
Telma
Tvon alerta: “Acho que se tentou vender [que o colonialismo português foi mais
brando do que o de outros países] para perpetuar o colonialismo. É o que se
tenta vender ainda agora. Se continuarmos a negar as evidências em relação à
violência do colonialismo, também não temos de fazer uma data de reparações,
não temos de fazer nenhum pedido de desculpas, podemos continuar a dizer as
barbaridades que vamos dizendo.”
A
autora de “Um Preto Muito Português” recorda muitas “famílias com histórias de
imensa violência”. E lembra: “A condição de indigenato e o ‘assimilato’ é uma
violência constante. Isso não tem nada de bonito e de mais brando.”
O
realizador luso-angolano Carlos Conceição dirigiu “Nação
Valente”, que recua à Guerra Colonial, para refletir sobre a atualidade, sobre
conservadorismos, preconceitos e racismo, como contou em entrevista à agência
Lusa, dias antes da estreia mundial do filme em Locarno, em 2022, onde foi
premiado.
“Gosto
de pensar que este filme não é tanto sobre a Guerra Colonial quanto é sobre
ideias velhas, esses muros que ainda não conseguimos transpor. Nós, as pessoas.
Eu considero que os transponho diariamente e acho que toda a gente deve fazer
esse esforço de transpor essas ideias antigas, essas ideias velhas e
ultrapassar os preconceitos e as limitações que certos conservadorismos
implicam.”
“Não
se pode nunca deixar de falar de racismo”, disse Carlos Conceição. “O trabalho
não está acabado. […]. É preciso mostrar, acusar, evidenciar, discutir,
dissecar e, provavelmente, se for através da repetição, que seja.”
Telma
Tvon defende que “o papel da música, da literatura, da Cultura em geral, é
colocar o dedo na ferida, é falar de tudo aquilo que supostamente as pessoas
não conseguem falar.”
Para
a escritora e ‘rapper’, é necessário “não pôr panos quentes”, é preciso “dizer
o que sentimos, e esperar retorno de quem ouve, de quem lê: ‘Podes não
concordar, mas tens de respeitar os meus sentimentos’.”
“Sinto
que estamos numa era muito complicada quando falamos nessas questões”, disse
Telma Tvon. Mas “não vamos evoluir se continuarmos a pôr na mesa que connosco
foi diferente do que foi com os outros.”
O
ensaísta Eduardo Lourenço não hesitou em desmascarar as teorias multirraciais
como disfarce do racismo, do colonialismo e dos seus crimes, expondo a
evidência entre opressor e oprimido. “Nem sequer se deram conta de que o ideal
da miscigenação (mais a mais invocado pelo colonizador) não é outra coisa que a
expressão suprema do Colonialismo, traduzida sob o plano do sexo”, escreveu em
“Do Colonialismo como nosso impensado”, obra recém-reeditada, que contraria os
argumentos dos “brandos costumes” do colonizador português.
Para
Eduardo Lourenço, Portugal não está sozinho: “Não foi o único país a deixar-se
esquecer desta maneira. No tempo das Grandes Descobertas a importância cósmica
desta aventura escondia aos olhos da Europa o colonialismo nascente. Mais
tarde, a mesma Europa teve também demasiado interesse em esconder, em conjunto,
este colonialismo.”
Opressão
Os
artistas Ângela Ferreira e Francisco Vidal, à semelhança dos outros ouvidos
pela agência Lusa, confluem para a necessidade de trazer à história dominante a
história dos oprimidos, mostrar que o colonialismo português foi tão violento
como qualquer outro, reparar os danos de séculos desde os livros de escola,
“reverter o sofrimento, ainda que tal requeira sofrer.”
Ângela Ferreira, nascida em Moçambique e a residir em Portugal desde os
anos 1990, considera que Portugal só conseguirá “descolonizar as mentes, a
cultura e a sociedade”, quando conseguir “ultrapassar as dificuldades” que tem
tido em refletir sobre o seu passado colonialista, incluindo o relato dos
Descobrimentos.
“O
cerne do problema é não termos trabalhado a descolonização das nossas mentes e
da nossa sociedade”, declarou à agência Lusa a propósito de um tema que nos
últimos anos tem tido cada vez mais atualidade, nomeadamente através de
devoluções de obras de arte e artefatos de nações colonizadas por países como
França, Reino Unido e Bélgica.
Na
mesma linha, o artista plástico e performer Francisco Vidal, nascido em Lisboa,
filho de pai angolano e mãe cabo-verdiana, disse estar convicto que as marcas
do passado colonial português “continuam vivas” em ideias, emoções e ações, e
defendeu que “descolonizar o pensamento contemporâneo português” continua a ser
importante. “Temos de fazer isto, passados 50 anos, porque ainda há marcas
vivas e ativas”, assegurou o artista plástico.
Sobre
a ideia de o colonialismo português ter sido mais brando do que os demais, a
escritora Djaimilia Pereira de Almeida rejeita-a por completo, afirmando que
“não há colonialismo sem violência” e que se trata apenas de “um mito, no qual
alguns insistem em acreditar.”
Ideia
semelhante tem a escritora, ativista e artista Gisela Casimiro, nascida na
Guiné-Bissau, para quem esse tema “não está aberto a discussão” e, se houvesse
uma hierarquia do colonialismo, “Portugal estaria em primeiro ou nos lugares
cimeiros”, facto amplamente documentado.
“Infelizmente
persiste uma ideia cristalizada, demasiada desinformação e romantização do
colonialismo. As pessoas recusam esse legado colonial ou encontram justificação
para o que não tem”, defende a autora de “Estendais”, considerando que a
“fantasia” e o “imaginário coloniais” partem da “superioridade própria e da
subjugação e infantilização do outro”, que não é real, mas “algo que as pessoas
aprenderam nos livros de História, que até hoje não foram atualizados com a
verdade.”
As
mentalidades também não, conta Telma Tvon: “Quando vou a Angola sinto que os
portugueses têm uma presença com uma mentalidade muito colonizadora. Têm uma
postura ‘eu vim mostrar-vos como se faz’, ‘eu mando nisto’. ‘Nós, portugueses,
é que vos vamos ensinar a viver e a estar, dentro da vossa proporia terra’.”
“Também
vejo isso aqui em Portugal, no dia-a-dia”, prossegue a ‘rapper’. “Eu vivo aqui,
posso dizer se vejo algo mal, a primeira coisa que me dizem é que eu não sou
daqui. [Mas] estou aqui porque abriram o caminho. Estão tão felizes pelos
Descobrimentos – entre aspas -, essa glória, mas esquecem-se que Diogo Cão e
todas essas pessoas é que abriram caminho para eu estar aqui.”
O
investigador Nuno Crespo defende que, passados 50 anos sobre o 25 de Abril, “há
ainda um enorme trabalho a fazer, não só na abordagem ao processo de
colonização e ao de descolonização, mas também de integração das outras
comunidades na nossa própria comunidade atual.”
Nuno
Crespo, que falava à Lusa quando da abertura do ciclo “Não foi Cabral: revendo
silêncios e omissões”, concluído esta semana, assegura: “Temos muito pouca
consciência da maneira tão violenta como o projeto colonial português foi
desenvolvido.” In “Mundo Lusíada” – Brasil com “Lusa”
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