Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Macau - As histórias de piratas que contam a história da Região

Foi inaugurada a exposição “Piratas nos Mares de Macau”, que estará no Arquivo de Macau até 31 de Janeiro de 2021. Ali, através de mais de 100 documentos e fotografias, conta-se a história de Macau através das histórias dos piratas que navegavam as águas do Delta do Rio das Pérolas entre 1854 e 1935



“Nas primeiras horas da noite de 31 do mês findo, um bando de uns 12 a 15 piratas assaltaram a casa de penhores Man-Li na avenida marginal (Almirante Sérgio), mas, sendo descobertos pela polícia de investigação criminal, foram por esta atacados e pelo guarda mouro n.º 6”. A notícia é de 6 de Novembro de 1924 e foi publicada pelo jornal de língua portuguesa, “O Combate”. Estes piratas eram soldados chineses desertores que, à presença da polícia de Macau, ofereceram “séria resistência”, provocando um tiroteio. O grupo de meliantes conseguiu, depois, fugir para a Ilha da Lapa, actualmente Wanzai. Segundo a notícia, na troca de tiros, acabaram por morrer quatro piratas e outros seis ficaram feridos. A notícia do “O Combate” termina: “Não lhes aproveitará a boa lição que lhes foi dada, certamente, e em tal caso, que a nossa polícia tenha sempre as pistolas-mestras prontas”.

Este é um dos mais de 100 documentos que estão, a partir de ontem, disponíveis para serem vistos na exposição “Piratas nos Mares de Macau (1854-1935)”. A exposição organizada pelo Instituto Cultural (IC) no Arquivo de Macau está disponível até ao 31 de Janeiro de 2021. Está disponível uma selecção de mais de uma centena de documentos, mapas e fotografias do acervo do Arquivo de Macau, abordando o tema da pirataria na região do Delta do Rio das Pérolas na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX.



Uma exposição para mostrar as “diferentes dimensões que o fenómeno da pirataria assume”

O IC indica que esta exposição tem como objectivo divulgar a “diversidade e amplitude temática daquela documentação, dando conta das diferentes dimensões que o fenómeno da pirataria assume, enquanto prática social integrada num sistema geopolítico, económico, social e cultural mais vasto”. Nos arquivos, foram encontrados 62 processos com duas mil páginas sobre o tema da pirataria no Delta do Rio das Pérolas.

A exposição deveria ter sido inaugurada na manhã de ontem, mas as portas abriram-se apenas da parte da tarde, devido à passagem do tufão Higos por Macau. À entrada, do lado esquerdo, está o primeiro processo, que data de 25 de Janeiro 1854, um ofício da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil que dá conta da captura de piratas que “enfrentavam os mares da China”.

Logo depois, está o último processo, também um ofício da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, desta vez um pedido feito pela Capitania dos Portos para a intervenção do Governo de Cantão para pôr cobro a “certos actos de pirataria praticados em águas chinesas que prejudicam o comércio de Macau”. À direita vê-se o testemunho do dono de um junco de pesca, chamado Chau-Chiang, prestado na Capitania do Porto de Macau, referente ao assalto de que tinha sido vítima cometido por piratas, a 16 de Dezembro de 1908.



Macau e as suas ilhas, Taipa e Coloane, serviam de porto de abrigo aos piratas. A localização geográfica de Macau, no Delta do Rio das Pérolas, e rodeada de um grande número de ilhas de litoral recortado e com vários braços fluviais era um convite à pirataria. Ali, os piratas podiam procurar abrigo no caso de serem perseguidos pelas autoridades. A península de Macau, a ilha da Taipa e a ilha de Coloane eram alvos preferenciais dos piratas, que aproveitavam para pilhar aldeias ou lojas na cidade, ou para extorquir dinheiro e ópio às vítimas.

“Lamento informar que há alguns dias eu fui raptado”

A exposição mostra uma carta escrita por piratas endereçada à família de um homem raptado, e escrita em seu nome: “Família de Leung Fook U, lamento informar que há alguns dias eu fui raptado pelo grupo ‘Chung Wo Tong’. Eu, pessoalmente, concordei em pagar 500$. – Notas estrangeiras e cinco tael [unidade de medida equivalente a cerca de 50 gramas] de ópio”. A missiva termina: “Assim, escrevo para casa pedindo encarecidamente que preparem o dinheiro e que o tragam em mão dentro de sete dias, ou eles matam-me”.

É apresentada também uma carta do Governador de Macau, José Carlos da Maia, de 1916, endereçada ao Cônsul Geral de Inglaterra, encarregado dos interesses portugueses em Cantão, J. W. Jamieson, solicitando a colaboração das autoridades chinesas para a captura de um grupo de piratas envolvido no assalto a um junco chinês, que fez um morto. Neste episódio, os piratas levaram ainda 20 passageiros e dez membros da tripulação como reféns. “Imploro que, gentilmente, solicite às autoridades chinesas a captura dos piratas, que encontrem o junco e resgatem os homens levados como prisioneiros”, lê-se no documento.



Em 1918, um comerciante chamado Kou-ho-neng, escrevia ao governador pedindo que fosse reforçada a presença policial na Rua do Almirante Sérgio, a fim de proteger o seu negócio. Dizia Kou-ho-neng que a sua loja, concessionária do jogo ‘fan-tan’, tinha sido assaltada por “sete ou oito malfeitores”, que lhe roubaram 260$. “Os empregados da casa apitaram por mais de meia hora, pedindo socorro, sem que tivesse aparecido polícia algum”, lê-se na carta do comerciante.

Os combates de 1910

Ainda em 1910, os combates realizados na ilha de Coloane e o desembarque simultâneo das tropas chinesas e portuguesas nas ilhas da Montanha e de D. João, em 1912, fizeram com que a questão da pirataria em Macau chegasse ao contexto internacional e alavancaram as negociações diplomáticas luso-chinesas em torno da definição dos limites de Macau.

Estes combates foram motivados pelo rapto de um grupo de crianças de uma escola. Os piratas, que exigiam o pagamento de 35 mil patacas pelo resgate, começaram por esconder-se na ilha da Taipa, transferindo-se depois para Coloane. A 12 de Julho de 1910, o governador de Macau, Eduardo Augusto Marques, enviou um telegrama ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar em Lisboa, Anselmo de Andrade, dando conta das operações: “Havendo queixa [de] estarem sequestrados [na] ilha de Coloane crianças roubadas [por] piratas, seguiu para ali esta madrugada força militar para proceder [à] busca e prender [os] criminosos”.



Os combates na Taipa e em Macau culminaram na vitória das autoridades portuguesas contra os piratas que ali se tinham instalado. Porém, Robert J. Antony, antigo professor da Universidade de Macau e investigador do fenómeno da pirataria em todo o mundo, disse, em entrevista ao Ponto Final em 2009, que há uma versão diferente: “Não há qualquer dúvida de que havia piratas na vila de Coloane, mas provavelmente um bom número de pessoas inocentes foram também mortas durante os combates. E não podemos ignorar que havia uma ligação muito forte entre os piratas e a comunidade local. Muitos dos piratas não eram mais do que pescadores que se envolviam em actos de pirataria em regime de part-time”.

Pirataria historicamente ligada a Macau

Robert J. Antony escreveu, no ano passado, um artigo intitulado “Os Piratas de Macau numa Perspectiva Histórica”. No documento, o especialista em assuntos de pirataria lembra que a história de Macau está intimamente ligada à pirataria e que é muitas vezes dito que a presença portuguesa na região é o resultado da ajuda dada às autoridades chinesas na supressão da pirataria no Delta do Rio das Pérolas. “Ainda assim, há fontes chinesas que dizem que, na verdade, os portugueses eram piratas e raptavam mulheres e crianças chinesas para as vender enquanto escravas”, ressalva.



Segundo o especialista, a reputação de Macau enquanto porto aberto era bem conhecida. Depois de os portugueses se estabeleceram em Macau, em 1557, a cidade cresceu rapidamente e serviu como uma importante base comercial para Portugal, China e Japão, especialmente no século XVII. Em 1640, a cidade tinha uma população estimada em 26 mil pessoas, das quais apenas 1.200 eram portugueses. Macau era uma cidade predominantemente chinesa, embora a administração política da cidade e a classe dominante continuassem portuguesas. Ainda assim, a sua população estava sujeita às leis chinesas. Esta mistura de jurisdições também tornou fácil para Macau tornar-se um refúgio para piratas e outros dissidentes, indicou Robert J. Antony.

Em “Os Piratas de Macau numa Perspectiva Histórica”, Robert J. Antony concorda que Macau tinha as condições perfeitas para a pirataria: “O ambiente geográfico e ecológico era, de facto, propício à pirataria na região. A própria península de Macau, Taipa, Coloane e as muitas outras ilhas que salpicavam o Delta do Rio das Pérolas serviram durante séculos como bases piratas. Esta área, especialmente dentro e à volta de Macau, era uma fronteira marítima verificável onde era fácil para actividades ilegais e clandestinas misturarem-se com actividades mais pacíficas e legítimas”.

“Embora a pirataria nas águas chinesas possa ser, em grande parte, uma coisa do passado, os piratas, no entanto, continuam vivos em lendas, no folclore, nos filmes e na imaginação popular”, refere o autor, concluindo: “A ironia, claro, é que uma sociedade que trabalhou tão diligentemente para eliminar a pirataria, no final, imortalizou os mesmos piratas condenados como heróis populares. Mesmo na morte, os piratas continuam a desafiar a autoridade”. André Vinagre – Macau in “Ponto Final”

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