Foi inaugurada a exposição “Piratas nos Mares de Macau”,
que estará no Arquivo de Macau até 31 de Janeiro de 2021. Ali, através de mais
de 100 documentos e fotografias, conta-se a história de Macau através das
histórias dos piratas que navegavam as águas do Delta do Rio das Pérolas entre
1854 e 1935
“Nas
primeiras horas da noite de 31 do mês findo, um bando de uns 12 a 15 piratas
assaltaram a casa de penhores Man-Li na avenida marginal (Almirante Sérgio),
mas, sendo descobertos pela polícia de investigação criminal, foram por esta
atacados e pelo guarda mouro n.º 6”. A notícia é de 6 de Novembro de 1924 e foi
publicada pelo jornal de língua portuguesa, “O Combate”. Estes piratas eram
soldados chineses desertores que, à presença da polícia de Macau, ofereceram
“séria resistência”, provocando um tiroteio. O grupo de meliantes conseguiu,
depois, fugir para a Ilha da Lapa, actualmente Wanzai. Segundo a notícia, na
troca de tiros, acabaram por morrer quatro piratas e outros seis ficaram
feridos. A notícia do “O Combate” termina: “Não lhes aproveitará a boa lição
que lhes foi dada, certamente, e em tal caso, que a nossa polícia tenha sempre
as pistolas-mestras prontas”.
Este
é um dos mais de 100 documentos que estão, a partir de ontem, disponíveis para
serem vistos na exposição “Piratas nos Mares de Macau (1854-1935)”. A exposição
organizada pelo Instituto Cultural (IC) no Arquivo de Macau está disponível até
ao 31 de Janeiro de 2021. Está disponível uma selecção de mais de uma centena
de documentos, mapas e fotografias do acervo do Arquivo de Macau, abordando o
tema da pirataria na região do Delta do Rio das Pérolas na segunda metade do
século XIX e nas primeiras décadas do século XX.
Uma exposição para mostrar as “diferentes dimensões que o
fenómeno da pirataria assume”
O
IC indica que esta exposição tem como objectivo divulgar a “diversidade e
amplitude temática daquela documentação, dando conta das diferentes dimensões
que o fenómeno da pirataria assume, enquanto prática social integrada num
sistema geopolítico, económico, social e cultural mais vasto”. Nos arquivos,
foram encontrados 62 processos com duas mil páginas sobre o tema da pirataria
no Delta do Rio das Pérolas.
A
exposição deveria ter sido inaugurada na manhã de ontem, mas as portas
abriram-se apenas da parte da tarde, devido à passagem do tufão Higos por
Macau. À entrada, do lado esquerdo, está o primeiro processo, que data de 25 de
Janeiro 1854, um ofício da Repartição Central dos Serviços de Administração
Civil que dá conta da captura de piratas que “enfrentavam os mares da China”.
Logo
depois, está o último processo, também um ofício da Repartição Central dos
Serviços de Administração Civil, desta vez um pedido feito pela Capitania dos
Portos para a intervenção do Governo de Cantão para pôr cobro a “certos actos
de pirataria praticados em águas chinesas que prejudicam o comércio de Macau”.
À direita vê-se o testemunho do dono de um junco de pesca, chamado Chau-Chiang,
prestado na Capitania do Porto de Macau, referente ao assalto de que tinha sido
vítima cometido por piratas, a 16 de Dezembro de 1908.
Macau
e as suas ilhas, Taipa e Coloane, serviam de porto de abrigo aos piratas. A
localização geográfica de Macau, no Delta do Rio das Pérolas, e rodeada de um
grande número de ilhas de litoral recortado e com vários braços fluviais era um
convite à pirataria. Ali, os piratas podiam procurar abrigo no caso de serem
perseguidos pelas autoridades. A península de Macau, a ilha da Taipa e a ilha
de Coloane eram alvos preferenciais dos piratas, que aproveitavam para pilhar
aldeias ou lojas na cidade, ou para extorquir dinheiro e ópio às vítimas.
“Lamento informar que há alguns dias eu fui raptado”
A
exposição mostra uma carta escrita por piratas endereçada à família de um homem
raptado, e escrita em seu nome: “Família de Leung Fook U, lamento informar que
há alguns dias eu fui raptado pelo grupo ‘Chung Wo Tong’. Eu, pessoalmente,
concordei em pagar 500$. – Notas estrangeiras e cinco tael [unidade de medida
equivalente a cerca de 50 gramas] de ópio”. A missiva termina: “Assim, escrevo
para casa pedindo encarecidamente que preparem o dinheiro e que o tragam em mão
dentro de sete dias, ou eles matam-me”.
É
apresentada também uma carta do Governador de Macau, José Carlos da Maia, de
1916, endereçada ao Cônsul Geral de Inglaterra, encarregado dos interesses
portugueses em Cantão, J. W. Jamieson, solicitando a colaboração das
autoridades chinesas para a captura de um grupo de piratas envolvido no assalto
a um junco chinês, que fez um morto. Neste episódio, os piratas levaram ainda
20 passageiros e dez membros da tripulação como reféns. “Imploro que, gentilmente,
solicite às autoridades chinesas a captura dos piratas, que encontrem o junco e
resgatem os homens levados como prisioneiros”, lê-se no documento.
Em
1918, um comerciante chamado Kou-ho-neng, escrevia ao governador pedindo que
fosse reforçada a presença policial na Rua do Almirante Sérgio, a fim de
proteger o seu negócio. Dizia Kou-ho-neng que a sua loja, concessionária do
jogo ‘fan-tan’, tinha sido assaltada por “sete ou oito malfeitores”, que lhe
roubaram 260$. “Os empregados da casa apitaram por mais de meia hora, pedindo
socorro, sem que tivesse aparecido polícia algum”, lê-se na carta do
comerciante.
Os combates de 1910
Ainda
em 1910, os combates realizados na ilha de Coloane e o desembarque simultâneo
das tropas chinesas e portuguesas nas ilhas da Montanha e de D. João, em 1912,
fizeram com que a questão da pirataria em Macau chegasse ao contexto
internacional e alavancaram as negociações diplomáticas luso-chinesas em torno
da definição dos limites de Macau.
Estes
combates foram motivados pelo rapto de um grupo de crianças de uma escola. Os
piratas, que exigiam o pagamento de 35 mil patacas pelo resgate, começaram por
esconder-se na ilha da Taipa, transferindo-se depois para Coloane. A 12 de
Julho de 1910, o governador de Macau, Eduardo Augusto Marques, enviou um
telegrama ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar
em Lisboa, Anselmo de Andrade, dando conta das operações: “Havendo queixa [de]
estarem sequestrados [na] ilha de Coloane crianças roubadas [por] piratas,
seguiu para ali esta madrugada força militar para proceder [à] busca e prender
[os] criminosos”.
Os
combates na Taipa e em Macau culminaram na vitória das autoridades portuguesas
contra os piratas que ali se tinham instalado. Porém, Robert J. Antony, antigo
professor da Universidade de Macau e investigador do fenómeno da pirataria em
todo o mundo, disse, em entrevista ao Ponto Final em 2009, que há uma versão
diferente: “Não há qualquer dúvida de que havia piratas na vila de Coloane, mas
provavelmente um bom número de pessoas inocentes foram também mortas durante os
combates. E não podemos ignorar que havia uma ligação muito forte entre os
piratas e a comunidade local. Muitos dos piratas não eram mais do que
pescadores que se envolviam em actos de pirataria em regime de part-time”.
Pirataria historicamente ligada a Macau
Robert
J. Antony escreveu, no ano passado, um artigo intitulado “Os Piratas de Macau
numa Perspectiva Histórica”. No documento, o especialista em assuntos de
pirataria lembra que a história de Macau está intimamente ligada à pirataria e
que é muitas vezes dito que a presença portuguesa na região é o resultado da
ajuda dada às autoridades chinesas na supressão da pirataria no Delta do Rio
das Pérolas. “Ainda assim, há fontes chinesas que dizem que, na verdade, os
portugueses eram piratas e raptavam mulheres e crianças chinesas para as vender
enquanto escravas”, ressalva.
Segundo
o especialista, a reputação de Macau enquanto porto aberto era bem conhecida.
Depois de os portugueses se estabeleceram em Macau, em 1557, a cidade cresceu
rapidamente e serviu como uma importante base comercial para Portugal, China e
Japão, especialmente no século XVII. Em 1640, a cidade tinha uma população estimada
em 26 mil pessoas, das quais apenas 1.200 eram portugueses. Macau era uma
cidade predominantemente chinesa, embora a administração política da cidade e a
classe dominante continuassem portuguesas. Ainda assim, a sua população estava
sujeita às leis chinesas. Esta mistura de jurisdições também tornou fácil para
Macau tornar-se um refúgio para piratas e outros dissidentes, indicou Robert J.
Antony.
Em
“Os Piratas de Macau numa Perspectiva Histórica”, Robert J. Antony concorda que
Macau tinha as condições perfeitas para a pirataria: “O ambiente geográfico e
ecológico era, de facto, propício à pirataria na região. A própria península de
Macau, Taipa, Coloane e as muitas outras ilhas que salpicavam o Delta do Rio
das Pérolas serviram durante séculos como bases piratas. Esta área,
especialmente dentro e à volta de Macau, era uma fronteira marítima verificável
onde era fácil para actividades ilegais e clandestinas misturarem-se com
actividades mais pacíficas e legítimas”.
“Embora
a pirataria nas águas chinesas possa ser, em grande parte, uma coisa do
passado, os piratas, no entanto, continuam vivos em lendas, no folclore, nos
filmes e na imaginação popular”, refere o autor, concluindo: “A ironia, claro,
é que uma sociedade que trabalhou tão diligentemente para eliminar a pirataria,
no final, imortalizou os mesmos piratas condenados como heróis populares. Mesmo
na morte, os piratas continuam a desafiar a autoridade”. André Vinagre –
Macau in “Ponto Final”
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