Novo livro de Adelto Gonçalves revela
subterrâneos da capitania de São Paulo no governo Lorena
Um escândalo: o caso das arcas que ao
serem abertas diante do rei continham chumbo no lugar de ouro. Um
profano: o frei capuchino que usava o dinheiro das esmolas para levar
confortável vida de senhor de escravos. Uma caçada: a perseguição aos irmãos
Leme, aos quais o governo atribuía uma lista de crimes em Cuiabá e Itu. Uma
amante: Lorena era filho dos Távora ou fruto de um envolvimento adúltero do
rei?
Fascinantes histórias de conflitos,
perseguições e falcatruas percorrem os subterrâneos, mas vem à tona em cada
capítulo de O Reino, a Colônia e o Poder – O governo de Lorena na capitania
de São Paulo 1788-1797 (Imprensa Oficial do Governo do Estado de São Paulo
(Imesp), 2019) graças à astúcia investigativa de quem já frequentou as
principais redações de jornais de São Paulo, como o escritor Adelto Gonçalves.
O aguçado faro de repórter se completa
por meio do texto leve e elucidativo, e assim Adelto Gonçalves consegue romper
com os padrões e clichês adotados por outros historiadores ao montar um curioso
painel sobre as relações de poder e suas influências – oficiais, extraoficiais
e clandestinas – de um período do colonialismo que representou a consolidação
de São Paulo como cidade e de Cuiabá como vila.
A construção da Calçada do Lorena,
estrada que ligava São Paulo a Santos por um trecho da Serra do Mar, é a marca
principal do governo de dom Bernardo José Maria da Silveira e Lorena. Mas o
livro vai muito além das edificações e estratégias para permitir que São Paulo
ficasse mais próxima da Coroa, driblando a interferência econômica e política
do Rio de Janeiro – ao reunir episódios do recorte de nove anos do governo
Lorena em São Paulo.
Lorena foi o mais jovem capitão-general
a governar a capitania de São Paulo: tinha 32 anos ao desembarcar e tomar posse
em julho de 1788. Seria filho de Nuno Gaspar de Távora, irmão do marquês de
Távora, e de sua segunda mulher e cunhada, dona Maria Inácia da Silveira. É o
que diz seu assento de batismo, lavrado em Lisboa, segundo o autor. Faria parte
da primeira nobreza portuguesa com ascendentes em uma das mais distintas
famílias da França, os Lorena. Pelo menos era essa a informação oficial porque
sempre correram rumores de que seria filho adulterino do rei dom José I com sua
amante, a marquesa Teresa de Távora e Lorena, esposa do jovem marquês dom Luís
Bernardo de Távora.
Pesquisa profunda
Baseado em primorosa documentação
histórica, o autor desvela as raízes da corrupção e malversação do dinheiro
público no Brasil em uma situação análoga aos tempos atuais de um País que
parece condenado a viver preso ao passado tortuoso da Colônia e à cultura da propina,
do suborno e da barganha.
Nesse aspecto, há o risco de vermos a
corrupção como fruto exclusivo da política, conforme alerta o sociólogo Jessé
de Souza em A elite do atraso (2017). “A população (...) foi convencida
de que existe corrupção apenas na política – essa é a corrupção dos tolos – e
não enxerga a corrupção real, a corrupção no mercado, o problema central, que é
a manutenção de uma sociedade desigual”, afirma.
A capitania passou nas mãos de
antecessores pouco confiáveis antes da chegada de Lorena. Um deles foi Antônio
da Silva Caldeira Pimentel, um dos raros governadores coloniais que se
transferiram para o Brasil com a família, conforme revela o autor. Pimentel
chegou em 1727 e um ano depois já estourava o escândalo que apressaria sua
queda. “Em Lisboa, quando as autoridades metropolitanas, à frente de dom João
V, abriram arcas recém-chegadas do Brasil com 7 arrobas de ouro dos quintos
reais, descobriram, estupefatas, que ali só havia chumbo”. Obra de Pimentel e
seus protegidos, entre eles Sebastião Fernandes do Rego, definido pelo
historiador Afonso de Taunay como “aventureiro da pior espécie”.
O ouvidor-geral da comarca de São
Paulo, desembargador Francisco Galvão da Fonseca, abriu a devassa para apurar
os nomes dos responsáveis pelo descaminho. Logo as suspeitas pairaram sobre
homens de confiança do governador Pimentel, conforme descreve o escritor. “Mas
a corrupção era praga tão disseminada por todo o corpo do Estado que o primeiro
a cair foi o próprio ouvidor-geral Fonseca, suspenso de suas funções e preso
por ordem do juiz do Fisco do Rio de Janeiro. Era acusado de numerosas
falcatruas”, conta Adelto Gonçalves.
O juiz de fora da vila de Santos,
Bernardo do Vale, assumiu as investigações e concluiu que o autor do delito
havia sido Sebastião Fernandes do Rego, provedor da Casa de Fundição no governo
Caldeira Pimentel e provedor dos quintos (impostos) no tempo do governador
Rodrigo César de Meneses. Surgiram denúncias de que Rego sempre levava duas
oitavas de ouro de quem pagava os quintos, “dizendo que era pelo seu trabalho”.
Vale concluiria ainda que o governador
Pimentel protegia o provedor da Casa de Fundição. Rego foi acusado de fazer
grandes negócios com sonegadores e de marcar e fundir ouro fora da Casa de
Fundição. Na tentativa de denunciar o governador, João Leite Ortiz viajou para
Portugal, mas no navio teria sido envenenado por um padre, “verdadeiro bandido,
coberto de crimes praticados em Mato Grosso”, conforme relatou o historiador
Taunay.
No livro, Adelto Gonçalves refuta o conceito
da historiografia tradicional de que a capitania de São Paulo estava isolada em
relação às demais regiões da América portuguesa e despovoada naquela época, em
torno de 1748. Hoje esse conceito está sendo revisto, segundo o autor. São
Paulo não dispunha de uma economia pautada na grande lavoura e na monocultura
escravista, tampouco na extração mineral, mas teve participação decisiva em
direção ao Oeste e à descoberta das minas de ouro ao final do século XVII, além
de ocupar uma estratégica posição no entroncamento de importantes circuitos
regionais, terrestres e fluviais, o que pesou decisivamente no desenvolvimento
da capitania.
Sobre o autor
Adelto Gonçalves, 68 anos, é jornalista
desde 1972, com passagens pelos jornais Cidade de Santos, do grupo
Folhas, A Tribuna, de Santos, O Estado de S. Paulo (Estadão) e Folha
da Tarde, além das editoras Abril e Globo.
Doutor em Letras na área de Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Língua Espanhola e
Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela USP, é autor de Gonzaga, um Poeta
do Iluminismo (Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999), Bocage, o Perfil
Perdido (Lisboa, Editora Caminho, 2003), Mariela Morta, contos
(Ourinhos-SP, Complemento, 1977), Os Vira-latas da Madrugada, romance
(Rio de Janeiro, José Olympio, 1981; Taubaté-SP, Editora Letra Selvagem, 2015),
Barcelona Brasileira, romance (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2003), Fernando Pessoa: a Voz de Deus, artigos e
ensaios (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Tomás Antônio Gonzaga,
estudo biográfico-crítico (Rio de Janeiro/São Paulo, ABL/Imesp, 2012); e Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial – 1709-1822, ensaio
histórico (São Paulo, Imesp, 2015).
Ganhou os prêmios Assis Chateaubriand
de 1987 e Aníbal Freire de 1994 da Academia Brasileira de Letras. Em 2013-14,
com bolsa da Universidade Paulista (Unip), desenvolveu o projeto que resultou
no livro O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São
Paulo - 1788-1797. Nelson Urt - Brasil
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O
Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo –
1788-1797, de Adelto Gonçalves, com prefácio de
Kenneth Maxwell, apresentação de Carlos Guilherme Mota e fotos de Luiz
Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 408 páginas, R$
70,00, 2019. Site: www.imprensaoficial.com.br
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Nelson Urt
é jornalista e historiador, mestre em Estudos Fronteiriços pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), autor do blog Nave Pantanal e
editor de livros cartoneros. E-mail: nelsonurt@gmail.com
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