Restituição
deve ser feita sem reservas e começar já no próximo ano, recomenda o estudo
feito a pedido do Presidente francês. Documento promete lançar o debate a nível
internacional
Foi em Março que o Presidente
Emmanuel Macron encomendou a Bénédicte Savoy e a Felwine Sarr um estudo sobre o
património de origem africana nas colecções públicas francesas. O relatório de
100 páginas que produziram será apresentado hoje, sexta-feira, mas as suas
linhas mestras são já conhecidas e levam a uma recomendação taxativa – França
deve restituir sem reservas todas as obras dos seus museus que foram retiradas
“sem consentimento” das antigas colónias francesas em África. Uma recomendação
que tem potencial para abrir um precedente ou, pelo menos, para lançar o debate
noutros países que tiveram domínios coloniais, incluindo Portugal.
A restituição plena aos museus
africanos, e não o empréstimo de longa duração, deve ser a prática generalizada
no que toca a objectos do período colonial, defendem a historiadora de arte
francesa e o economista e escritor senegalês, deixando de fora apenas aqueles
cuja presença em França resulte de uma comprovada aquisição “legítima”.
Pôr em prática as
recomendações expressas no relatório (editado pelas Éditions du Seuil num
volume de 230 páginas, incluindo anexos) será tudo menos fácil para o
Presidente francês, que também nesta matéria enfrenta forte oposição, a começar
pelos directores dos museus, que temem ver esvaziadas as suas colecções. No
topo das preocupações dos que questionam a exequibilidade de um eventual
programa de restituição está o Quai Branly, o Museu das Artes e Civilizações da
África, Ásia, Oceania e Américas, obra de regime do antigo chefe de Estado
Jacques Chirac, que tem 70 mil peças africanas no seu acervo.
Mesmo sujeito a pressões
várias, Emmanuel Macron não pode ignorar o compromisso político que assumiu em
Novembro do ano passado ao dizer, durante um périplo oficial por África, que a
devolução “permanente ou temporária” de património àquele continente era uma
“prioridade” do seu mandato. “O património africano (…) deve ser valorizado em
Paris, mas também em Dacar, Lagos e Cotonu”, sublinhou Macron, em visita ao
Burkina Faso. “Esta será uma das minhas prioridades. Daqui a cinco anos prevejo
que estejam reunidas as condições para o regresso do património africano a
África.”
Foi a primeira vez, escreveu-se
em vários jornais, que um Presidente abordou de forma tão directa a questão da
arte africana dos museus franceses depois da descolonização.
Lembra esta quarta-feira o
diário Le Monde que os pedidos de restituição por parte dos países africanos
são tão antigos quanto a descolonização e que, apesar da insistência de alguns,
a questão foi sendo sucessivamente adiada nos últimos 50 anos.
Entre os pedidos mais
mediáticos envolvendo museus franceses estão três estátuas de reis, esculturas
antropomórficas e outros artefactos espoliados do antigo Reino do Daomé em 1892
e que são, desde 2016, reclamados pelas autoridades do Benim. Mas a França está
longe de ser caso único.
Programa faseado
Entre as acções concretas
propostas pelo relatório numa primeira fase, que é sobretudo simbólica, está a
devolução, a partir do próximo ano, de 24 objectos ou grupos de objectos que
são despojos de guerra ou que resultaram de missões etnográficas, culturais e
religiosas, a países como o Mali, a Nigéria, o Senegal, o Benim e a Etiópia. De
acordo com a publicação especializada The Art Newspaper, os autores do
relatório previram uma segunda fase, com a duração de cinco anos, em que a
restituição será muito mais substancial e negociada entre estados, seguida de
um período “em aberto”, em que as devoluções podem e devem continuar. Como?
Em teoria, o procedimento
proposto é simples, o que não quer dizer que seja fácil chegar aos resultados
pretendidos. Constituem-se comissões bilaterais com representantes franceses e
de cada uma das ex-colónias. França compromete-se a dar a cada país africano um
inventário das peças originárias desse território que se encontram nos seus
museus, e o país em causa, por sua vez, diz que itens quer que lhe sejam
devolvidos. Se houver objecções à restituição, o museu tem de provar que a peça
chegou a França legitimamente. Mas esta prova deverá ser, em muitos casos,
complexa. É que, de acordo com as recomendações dos autores do relatório, mesmo
em caso de venda, não podem restar dúvidas de que houve uma “autorização total”
para a sua saída, ou seja, de que não houve qualquer pressão sobre os
proprietários dos objectos? por parte de militares, cientistas ou
administradores coloniais.
E quando houver dois países a
reclamar o mesmo objecto oriundo de um reino que já não existe e cujo
território deu origem a mais do que um Estado? Os governos que resolvam a
situação, diz o economista senegalês ao Art
Newspaper. “Estamos a lidar com um continente que já não tem praticamente
nada da sua história enquanto nós [na Europa] temos tudo. O objectivo não é
esvaziar os museus ocidentais para encher os africanos, mas criar uma nova
relação baseada na ética e na equidade.”
Segundo dados citados pelo Libération, entre 85 e 90% do património
africano está hoje fora do continente. “A juventude africana tem direito ao seu
património”, o mesmo património que “alimentou toda uma vanguarda europeia”, de
Picasso aos surrealistas, passando pelas gerações de hoje que o têm nos museus,
defendem os autores em entrevista ao mesmo diário, falando de um desequilíbrio
flagrante que é urgente começar a corrigir.
Se Emmanuel Macron acatar as
sugestões de Bénédicte Savoy e Felwine Sarr, a proveniência de cerca de 90 mil
peças africanas espalhadas por 50 museus franceses, na sua esmagadora maioria
incorporadas nas colecções antes de 1960, será alvo de análise.
Alterar
a lei
Para que a devolução possa
acontecer, há que vencer outro obstáculo – a lei do património terá de ser
alterada já que, asseguram os jornais franceses, estipula que as obras
pertencentes às colecções públicas são “inalienáveis”. Para o ultrapassar, os
autores propõem a criação de uma cláusula de excepção para a arte africana.
Entre os que se opõem à
restituição, um dos argumentos mais usados é o da falta de condições dos museus
dos países de origem para acolherem as peças, algo que a dupla Savoy-Sarr diz
ser produto da “condescendência” com que a Europa ainda olha para África.
Além da complexidade da
“prova” já evocada, outra das recomendações do relatório que está já a ser alvo
de críticas é a que diz respeito à devolução aos objectos, à sua chegada aos
países de origem, do uso doméstico ou ritual que perderam no contexto formal de
um museu europeu. “Será isto possível em países onde a aculturação e a
modernidade apagaram, no essencial, os modos de pensar anteriores?”,
interroga-se o jornal Le Monde.
Savoy e Sarr estão
conscientes dos problemas que a restituição pode levantar mas, garantiram ao Libération, não têm dúvidas de que
agiram “cientificamente: “Não abordámos o percurso dos objectos de um ponto de
vista moral, mas histórico (…). É preciso que a história da constituição das
colecções apareça nos museus ao mesmo tempo que as peças.” Lucinda Canelas – Portugal in "Público"
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