As
águas do Tejo continuam a esconder segredos. Em Outubro deste ano, dois
mariscadores detectaram destroços de embarcações naufragadas à beira de Lisboa.
A carga e as circunstâncias inusitadas do achado sublinham a necessidade de
retomar o debate sobre o achador fortuito e a arqueologia
Na manhã do dia 20 de Outubro,
Pedro Patacas e Sandro Pinto, dois mariscadores profissionais, concentravam a
sua atenção nas águas próximas da Cova do Vapor. Sem encomendas específicas de
marisco para esse dia, dedicavam-se à tarefa de que mais gostam – a prospecção
de novas zonas de captura, potencialmente ricas em navalheira ou amêijoa.
Com mais de duas décadas de
trabalho no mar, os dois homens mergulham com facilidade e aguentam a carga
dura de quatro a seis horas diárias de batalha subaquática com as correntes, o
frio e os obstáculos da actividade. “Não nos queixamos”, sorri Pedro Patacas,
antigo fuzileiro e vice-campeão nacional de caça submarina. “É a vida que
escolhemos.”
De Sines ao Tejo, os dois
mariscadores conhecem bem as águas e os fundos e, ocasionalmente, tropeçam em
mais do que marisco. As descobertas fortuitas são comuns para quem opera no mar
e esta dupla já acumulara a experiência – não gratificante – de ter participado
na descoberta de um destroço no Sado, cujo anúncio à tutela coincidiu com a
rápida rapina de tudo o que havia para transportar do fundo do mar. “Não gostámos
desse processo”, resume o mergulhador. “Sentimo-nos usados.”
Nas águas da Cova do Vapor,
não pensavam seguramente em arqueologia quando o sonar topo de gama da sua
embarcação mostrou uma mancha compacta do que pareciam ser ruínas de pedra. “No
ecrã, eram pedras, pedras sobre pedras. Não era igual a nada que antes
tivéssemos presenciado”, acrescenta Sandro Pinto. Só havia uma maneira de
deslindar o mistério e teria de ser rápida.
A zona do destroço só é
acessível ao mergulho durante o estofo da maré, quando as águas enchem ou vazam
aquela área. “Quando a água começa a entrar, é quase impossível trabalhar ali,
mesmo à escassa profundidade a que estávamos”, diz Pedro Patacas. Naquela
manhã, o Tejo começava a vazar. Saltando para a água, os dois mariscadores
tiraram a limpo as manchas do sonar. A dez metros de profundidade, viram
barris. Centenas deles. Amontoados como se ainda estivessem arrumados no porão
de carga do navio que os transportou.
Fechados com aros de madeira,
com diferentes tipologias e dimensões, constituíam uma perspectiva inesperada
para o fundo. Continham os vestígios da última viagem de uma embarcação por
enquanto só identificada como Tejo B.
Por norma, na história trágica
dos naufrágios, os acidentes são violentos, produzindo naturalmente mais
estragos nas estruturas de madeira. No fundo arenoso, parcialmente assoreados
mas já colonizados por crustáceos e algas, os barris pareciam arrumados, como
se tivessem planado até ao fundo. “Não conheço mais nenhum caso igual no
mundo”, diz o arqueólogo Alexandre Monteiro, o investigador ao qual os dois
achadores fortuitos comunicaram de imediato a descoberta.
As surpresas ainda não tinham
terminado. Com a maré a vazar e sempre com o farol do Bugio como referência, os
dois mariscadores escolheram outro local de mergulho. Navegavam há alguns
minutos quando o sonar identificou a figura clássica de um navio – a forma de
charuto no monitor era inconfundível. Repetida a cena, de novo na água, Pedro
Patacas e Sandro Pinto completaram a saga de um dia especial, mergulhando no
destroço agora conhecido como Tejo A.
“Nunca nos tinha acontecido tal coisa”, lembram os mergulhadores. Avistaram de
imediato um canhão, um cepo, outras estruturas de madeira e até dois pratos de
estanho.
Regressados à margem após esta
montanha-russa de emoções em menos de 12 horas, comunicaram o achado à
Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), candidatando-se portanto ao
reconhecimento da autoria da descoberta e à eventual recompensa correspondente
ao valor que seja atribuído aos materiais depositados no fundo, caso a DGPC
confirme a excepcionalidade do achado e comprove que o mesmo nunca antes fora
identificado.
“Do ponto de vista histórico,
não surpreende nada”, diz o arqueólogo Jorge Freire, coordenador do projecto de
Carta Arqueológica Subaquática de Cascais e o investigador que tomou em mãos os
passos seguintes após a comunicação do achado à tutela. “No Tejo, navega-se há
muitos séculos e o estuário é exigente. Há dezenas de registos de naufrágios
nestas águas em todas as épocas, mas é muito prematuro apontar já datações ou
outros elementos de avaliação sem uma escavação científica rigorosa.”
Nos dias subsequentes à
informação, Alexandre Monteiro e outros investigadores produziram um parecer técnico-científico
sobre o Tejo A e o Tejo B, fazendo um rápido levantamento fotográfico e em
filme das suas observações. Para tal, foi importante a colaboração da Estrutura
de Missão de Extensão da Plataforma Continental e dos investigadores do ShipLab
da Universidade do Texas, que se prontificaram a realizar um modelo preliminar
do sítio arqueológico com base no filme captado por Flávio Biscaia, do
Instituto Politécnico de Tomar.
Enquanto decorre a avaliação
do mérito do auto de achado entretanto recebido, que se junta a cerca de uma
dezena de processos idênticos remetidos em 2017 para a tutela, Jorge Freire,
explorador emergente da National Geographic Society, reflecte sobre as tarefas
que se seguem. Apesar do enigma dos barris do Tejo B, é o destroço a norte do
Bugio que exige mais cuidado: o rio é quase como um ser vivo, com dinamismo e
humores próprios e o destroço do Tejo A está maltratado. “Talvez seja
necessário reenterrá-lo ou realizar uma intervenção directa profunda a breve
prazo que permita salvaguardar a integridade da estrutura, pois ela está
fragilizada”, diz. Por coincidência, o projecto de investigação do arqueólogo
cobre precisamente a faixa entre Almada e Cascais, num levantamento cuidadoso
do património cultural ali submerso.
“Não é segredo que Portugal
viola neste momento a Convenção da UNESCO de salvaguarda do património cultural
submerso”, explica Jorge Freire. “Não existem meios para produzir investigação
continuada nesta área, nem para garantir a protecção dos sítios conhecidos. Por
isso, de facto, o país viola a convenção que subscreveu.” Desse ponto de vista,
a informação nova que tem chegado à tutela e que tem vindo a preencher a carta
arqueológica submarina do país tem sido produzida com contributos de achadores
fortuitos que, de norte a sul, vão comunicando o que encontram. “São eles que
estão no mar todo o ano. Boa parte dos achados que conhecemos, mesmo em Cascais
(de longe, o município com mais trabalho nesta área), resulta de informação dos
achadores.” O que vale por dizer que a maneira como este e outros dossiers
forem geridos afectará as comunicações futuras.
Como um antepassado longínquo
e já extinto, o fecho da golada do Tejo tem vindo a ser esquecido, à excepção
de algumas comunicações especializadas e da memória oral das populações
piscatórias de Almada e da Trafaria. No entanto, quando se analisa o plano
hidrográfico que o engenheiro Francisco Pereira da Silva realizou em 1879,
representando a barra do porto de Lisboa, verifica-se que a configuração do rio
não coincide com a que hoje conhecemos. Entre a Trafaria e o farol do Bugio,
está assinalada nas cartas de época uma língua de areia consolidada, que faria
a ponte terrestre, com variações semanais de percurso, entre o farol e a costa.
“Os pescadores de Almada lembram até que se rezava missa no farol do Bugio e as
pessoas iam a pé”, adianta o arqueólogo Francisco Silva, do Centro de
Arqueologia de Almada.
Na década de 1940,
removeram-se grandes quantidades de areia deste ponto para realizar os aterros
de Belém e Algés, na outra margem.
A dinâmica do rio – e o ponto onde se localiza
um dos destroços agora identificados – foi modificada para sempre. “O Tejo é
traiçoeiro”, diz Jorge Freire. “Tem baixios, correntes fortes e súbitas.” O rio
cobrou a sua quota de acidentes, interrompendo abruptamente viagens sempre que
um descuido de navegação desrespeitou a sua sensibilidade. Estas línguas de
areia em mutação sugerem igualmente uma explicação para o desconhecimento de
destroços tão próximos da capital – a exposição pode ser recente, dependente de
dinâmicas súbitas. Como lembra Pedro Patacas, “entre o primeiro mergulho e a
segunda viagem que fizemos ao Tejo B já com os arqueólogos, notámos diferenças.
Parecia que a areia tinha coberto novamente alguns barris”.
Entre os investigadores que
participaram no primeiro relatório técnico estava um corpo invulgar num
projecto arqueológico – o biólogo Gonçalo Calado mergulhou igualmente e esteve
atento a outras facetas dos destroços. Uma estrutura submersa de madeira ou de
ferro constitui um refúgio inesperado para organismos aquáticos – providencia
refúgio e áreas susceptíveis de colonização. Ao mesmo tempo, “as comunidades
instaladas – vivas ou já mortas – podem dar pistas sobre se o destroço fica ou
ficou fora do sedimento durante algum tempo”, explica o investigador. “Não
creio que possamos ajudar na datação do navio”, mas, através da comparação
entre marcas de povoamento, é possível perceber quais estiveram soterradas pela
areia e quais sustentam comunidades bem instaladas de substratos fixos.
Noutras ocasiões, o próprio
naufrágio provoca condições de propágulo para novas espécies.
O caso clássico ocorreu em
1868 quando um navio carregado de ostras portuguesas naufragou na costa
francesa, “dando origem a uma população selvagem desta espécie na baía de
Arcachon, que ainda hoje persiste. Neste caso, seria muita sorte termos este
tipo de pistas, mas pode ser que algum dia, em algum destroço, as possamos
encontrar.”
No dia 19 de Julho deste ano,
cem anos depois do afundamento do caça-minas Roberto Ivens nas proximidades do
Bugio durante a Grande Guerra [ver edição de Abril de 2016], realizou-se uma
cerimónia de homenagem aos mortos em combate nesse naufrágio trágico. A bordo,
entre familiares das vítimas e altos dignitários, o primeiro-ministro António
Costa saudou os esforços da equipa de investigação que localizara os destroços
do caça-minas e anunciou o caminho “a percorrer na salvaguarda do património
histórico que jaz no fundo do mar”.
Sem suspeitar que se
encontrava poucos metros acima de um novo destroço, com barris enigmáticos no
fundo, António Costa acrescentou: “Ao Estado, cabe agora a responsabilidade de
agir e encontrar os mecanismos de cooperação e as parcerias indispensáveis para
satisfazer este desiderato. Desde logo, mapear com exactidão os vestígios
arqueológicos de que há conhecimento.” Os destroços do Tejo A e do Tejo B serão,
de alguma maneira, a prova de fogo dessa vontade. Gonçalo Rosa – Portugal in "National Geographic"
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