I
Considerada
arte menor ou apenas decorativa, a azulejaria ganha agora foro de expressão
artística com o estudo Desenhadores &
Azulejeiros – Ensino e Aprendizagem, Arquitetura e História (Rio de
Janeiro, Synergia Editora, 2018), de Clara Emília Sanches Monteiro de Barros
Malhano e Hamilton Botelho Malhano (1947-2017), que resgata a história de vida
de dois artistas portugueses – José Colaço (1868-1942) e Manuel Félix Igrejas
(1928) –, além de analisar o ensino das Belas Artes no Brasil, o que inclui a
azulejaria, e a sua relação com a arquitetura neocolonial e modernista. Para
tanto, o trabalho, segundo definição dos autores, procura entender as “técnicas
artesanais, manufatureiras e industriais da produção cerâmica azulejeira
luso-brasileira em relação a outras produções de azulejos enquanto arte de
caráter internacional”.
Nascido
no Tânger, Marrocos, Colaço, de origem aristocrata, com formação acadêmica,
pensou em emigrar para o Brasil e chegou a adquirir bilhete de viagem, mas
deixou de fazê-lo porque a morte o alcançou antes, já na idade madura. Deixou
atrás de si uma série de trabalhos, dos quais os mais famosos são os painéis de
azulejos que decoram o grande átrio da Estação de São Bento, no Porto, desde
1915, e até hoje encantam os passageiros que por lá passam pela primeira vez ou
não, e a parede de uma sala na Casa do Alentejo, próxima aos Restauradores, em
Lisboa, de 1918. No Brasil, porém, é
mais conhecido pelos painéis da fachada principal do Estádio de São Januário,
do Clube de Regatas Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, que produziu na década de
1930.
Caricaturista
e pintor de fama à época, Colaço esteve no Brasil em 1908 para participar da
Exposição Nacional Comemorativa do 1º Centenário da Abertura dos Portos do Brasil às Nações
Amigas de Portugal e Algarves, onde se encontrou com o arquiteto português
Ricardo Severo (1869-1940), seu amigo, ligado ao famoso escritório Ramos de
Azevedo, de Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1940), de São Paulo,
responsável pela construção de muitas casas e edifícios, que haveria de indicá-lo
para vários trabalhos. Estabelecido temporariamente no Brasil, Colaço haveria
de realizar a azulejaria do edifício-sede da Granja Guarany, em Teresópolis, da
casa César Rabelo, em Petrópolis, da varanda do palacete Ortigão, no Cosme
Velho, no Rio de Janeiro, e de algumas residências em Belo Horizonte e São
Paulo, algumas projetadas por Ricardo Severo e Ramos de Azevedo. A casa de
Ricardo Severo, a chamada “casa lusa”, na rua Tanguá, na capital paulista, também
receberia painéis do artista, bem como a sua casa de praia no Guarujá.
De
volta a Portugal, haveria trabalhar na Fábrica de Cerâmica Lusitânia, em
Lisboa, fazendo painéis para várias residências particulares, como a do
historiador de arte e etnógrafo açoriano Luís Bernardo Leite de Ataíde
(1883-1955), atual Convento de Nossa Senhora de Belém, em Ponta Delgada, na
Ilha de São Miguel, nos Açores. O prédio do Aquário Vasco da Gama, no Dafundo,
no município de Oeiras, próximo a Lisboa, embora tenha sido inaugurado em 1898,
só em 1931 receberia no frontão um painel de Colaço, em que se vê Netuno em
carro puxado por cavalos marinhos em meio ao mar.
Em
1934, Colaço haveria de ir a Pangim, em Goa, trabalhar o tema “Os Lusíadas”
para a entrada do Instituto Vasco da Gama, atual Instituto Luís de Meneses
Bragança. De acordo com os autores, Colaço seria também o primeiro pintor de
azulejos a utilizar a técnica de serigrafia ou silk screen na decoração azulejar de um conjunto de painéis
executados para uma vila no Alentejo. Seus painéis iriam também decorar
residências e edifícios em Angola e Moçambique. Em 1937, o conde António Dias
Garcia (1859-1940) haveria de encomendar três imensos painéis a Colaço sobre a
Escola de Sagres e o infante D. Henrique (1394-1460) a fim de ofertá-los ao
Liceu Literário Português, do Rio de Janeiro.
II
Já
Manuel Félix Igrejas, autodidata, nascido na vila de Melgaço, no Alto do Minho,
Norte de Portugal, próximo à fronteira com a Galiza, província da Espanha,
emigrou em 1952 para o Brasil, passando
a morar no Rio de Janeiro, onde deixou uma extensa folha de serviços prestados
com vários de seus trabalhos expostos nas paredes de instituições
luso-brasileiras, inclusive também na antessala da diretoria do Vasco da Gama no
Estádio de São Januário e no Liceu Literário Português.
Depois
de comandar a direção cultural da Casa do Minho, no Rio de Janeiro, por largos
anos, Igrejas mudou-se em 2015 para a cidade de Campinas, ao lado da esposa,
para ficar mais próximo da filha mais velha. Infelizmente, muitas das obras
azulejares de Igrejas, bem como as de Colaço, no Brasil foram destruídas não só
pela incúria do tempo como pela estupidez e ganância humanas e, especialmente,
por dirigentes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan), que, segundo os autores, haveriam de promover uma “caça predatória aos
exemplares de arquitetura neocolonial”.
Em
entrevista com o pintor de azulejos, a professora Clara Emília pôde
reconstituir com maiores detalhes a sua trajetória, desde a infância na vila de
Melgaço, onde o pequeno Manuel se punha a imitar o irmão António Eduardo, oito
anos mais velho, que já gostava de desenhar. Ambos se valiam de um espólio de
esboços, pinturas e desenhos deixado por um irmão, Ventura (1906-1928),
primogênito, que, aos 16 anos, deixara a pequena localidade por sentir que ali
não haveria muito futuro para si e sua arte. Seguiria para a África e, dois
anos mais tarde, iria para Belém do Pará, onde morreria ainda muito jovem.
Da
infância, Igrejas recorda de abrir com sofreguidão um suplemento de desenhos
coloridos intitulado Mickey, baseado
no personagem do criador norte-americano Walt Disney (1901-1966), que saía
encartado no diário O Primeiro de Janeiro,
do Porto, o que era possível porque um de seus tios fazia a assinatura do
jornal. Da adolescência, lembra de quando, aos 14 anos de idade, fez a sua
primeira exposição mostrando trabalhos executados a carvão e a pastel. Aos 19
anos, já fazia cartazes para o cinema da vila.
Sem
perspectivas, Igrejas, em meados de 1952, decidiu aceitar uma passagem sem
volta para o Rio de Janeiro oferecida por um tio. Chegaria ao Brasil no começo
de setembro e procuraria outro tio que era atacadista e tinha uma loja de casimiras
no centro da cidade e morava no Catumbi. Lá, o azulejista viveria até 1954,
quando haveria de se casar. Teve vários empregos até que conheceu um empresário
do ramo, para quem passou a trabalhar num atelier que produzia ornamentos em
louças e azulejos.
A
partir de então, a carreira de Igrejas como azulejista foi rápida e em ascensão.
Logo estaria fazendo painéis para o salão do Clube Carnavalesco Fenianos, na
Lapa. Na mesma época, faria quatro painéis de grande porte para um hotel em
Assunção, no Paraguai. Imagens de santos da Igreja Católica, da Sagrada Família
e dos meninos Cosme e Damião, entre outras, povoariam os seus azulejos, sem
contar os painéis votivos de maior monta, “além de figuras de baianas na
lavagem da escadaria do Senhor do Bonfim”. Segundo os autores, a sua pintura
reproduz efeitos de aquarelas, pastéis e óleos, “utilizando-se de todas as
técnicas acadêmicas”.
Enfim,
como observa o arquiteto e historiador Nireu Cavalcanti, doutor em História
pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), no prefácio que escreveu para este livro, a partir da
trajetória desses dois profissionais diferenciados, Clara Emilia e seu marido Hamilton
Malhano construíram uma obra de grande importância para a história da
arquitetura e da cidade do Rio de Janeiro. De fato, daqui para frente, esta
obra torna-se referência incontornável para quem quiser estudar a arte da
azulejaria em Portugal e no Brasil.
III
Clara
Emília Sanches Monteiro de Barros Malhano obteve título de doutora em História
Social pelo IFCS/UFRJ, assim como o de mestre em História e Antropologia da
Arte pela Escola de Belas Artes da mesma Universidade. Foi pesquisadora do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e do Arquivo Público do
Estado do Rio de Janeiro.
É
autora dos livros: Aldeamento de São
Fidélis; o sentido do espaço na iconografia (Ministério da Cultura-MinC/Iphan,
1995); e Da materialização à legitimação
do passado: a monumentalidade como metáfora do Estado - 1920-1945 (Lucerna/Faperj, 2002). Escreveu e organizou outros
livros em co-edição e publicou vários artigos em revistas especializadas. Em
2013, publicou o livro Sobragy dos
Baronetes e da Saudade, obra sobre a produção de café na Zona da Mata
Mineira no período de 1850 a 1950. Com Hamilton Botelho Malhano, escreveu
também São Januário-Arquitetura e História
(Mauad/Faperj, 2002).
Hamilton Botelho Malhano obteve os títulos de mestre em
História e Antropologia da Arte pela Escola de Belas Artes da UFRJ e de doutor
em História Social pelo IFCS/UFRJ. Etnólogo, atuou em áreas indígenas e
realizou estudos e pesquisas na área de museologia e museografia. Publicou o
projeto “Construção do espaço de morar entre os Karaja do Araguaia: aldeia,
casa, cemitério” no Boletim do Museu Nacional, nº 55, de 1986. Foi autor de
verbetes para a Encyclopedia of
Vernacular Architecture of the World, publicada pela Cambridge University
Press, em 1997. Com o falecimento de seu esposo, a professora Clara Emília
Malhano é responsável agora pela Encyclopedia
of Vernacular Architecture of the World, que está sendo reeditada e
atualizada pelo escritório VMSA (Victor Mestre e Sophia Aleixo), de Lisboa. A
nova edição será bilingue (português- inglês). Adelto Gonçalves - Brasil
Desenhadores
& Azulejeiros: Ensino e Aprendizagem, Arquitetura e História, de Clara
Emília Sanches Monteiro de Barros Malhano e Hamilton Botelho Malhano, com prefácio
de Nireu Cavalcanti. Rio de Janeiro: Synergia Editora, 1ª edição, 494 páginas,
R$ 80,00, 2018. E-mail: comercial@synergiaeditora.com.br Site:
www.synergiaeditora.com.br
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Adelto Gonçalves
é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
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