Houve um tempo, há 200
milhões de anos, em que toda a terra do mundo era uma só. Lentamente, como
todas as grandes mudanças geológicas que ocorrem no planeta, essa enorme massa
foi se dividindo. As imensas fraturas originaram a América do Sul, África, Austrália,
Antártica e Índia.
Passaram-se outros milhões
de anos, América e África se separaram e, entre elas, surgiu o Oceano
Atlântico. Esse mar, que ninguém sabia onde e se iria terminar, amedrontou e
seduziu civilizações. Até que destemidos navegadores, entre os séculos XV e
XVII, singraram essas águas. Depois de meses, viajando a bordo de precárias
embarcações, encontraram aquele pedaço de terra que, havia milênios, se
desprendera da África.
Era um continente, a
América. Na época, os países se envolveram em uma verdadeira corrida marítima
para alcançar o território rico em ouro, pedras preciosas, outros minerais e
recursos naturais.
Nas últimas décadas, uma
nova competição nos oceanos se desencadeia entre as nações. Dessa vez, pelas
riquezas de outra terra - aquela que está no fundo do mar. Nessa corrida, o
Brasil poderá, ainda neste ano, desfraldar sua primeira bandeira em águas
internacionais além do limite das 200 milhas náuticas (370 km).
A partir desta sexta-feira,
os integrantes da International Seabed Authority (ISA) - em português
denominada de Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (Isba) - se reúnem
em Kingston, na Jamaica, e dirão se aceitam o plano de trabalho para exploração
e pesquisa de uma área do Atlântico Sul conhecida como Elevação do Rio Grande.
Se a permissão for concedida,
o governo brasileiro ganha, por um período de 15 anos, o direito de pesquisar o
potencial do território. Ele está a 1,5 mil quilômetros de distância da costa e
recebeu o nome de elevação porque está a, aproximadamente, mil metros da
superfície, numa região onde o oceano alcança quatro mil metros de
profundidade.
Nele já foi constatada a
existência de cobalto, níquel, cobre e manganês e outros metais: zircônio,
tântalo, telúrio, tungstênio, nióbio, tório, bismuto, platina, cério, európio,
molibdênio e lítio essenciais para a indústria de alta tecnologia.
Cientificamente, eles são chamados de nódulos polimetálicos.
Em outra etapa, o país
poderá explorar e até extrair esse minério. "Além do caráter estratégico,
a iniciativa brasileira permitirá o desenvolvimento de recursos humanos e
desenvolvimento tecnológico", explica o diretor de Geologia e Recursos
Minerais da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), um órgão
governamental.
O plano de trabalho na
Elevação, entregue à ISA no último dia de dezembro de 2013, foi movido pelo
interesse econômico, mas principalmente estratégico. Se o Brasil não se
capacitar e explorar essa riqueza, outros países o farão. Há também um item
importante incluído na permissão: o país que detém o controle da região
pesquisada pode usar suas Forças Armadas para protegê-la. "As nações
descobriram o mar, desenvolveram pesquisas e tecnologia para uso em grandes
profundidades e perceberam que ali há tanta riqueza ou mais do que existe no
continente", diz o almirante Marcos Silva Rodrigues, secretário da
Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (Secirm), um colegiado com a
participação de 16 ministérios.
A Isba é uma organização
internacional autônoma pertencente ao sistema das Nações Unidas. Por intermédio
dela, 166 Estados partes organizam e controlam as atividades no mar,
particularmente com vista à gestão de seus recursos minerais. Ela surgiu para
aplicar as determinações da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar,
criada em dezembro de 1982 e em vigor desde julho de 1994.
A lei maior da organização,
como se fosse a sua Constituição, afirma que o leito marinho, além das
jurisdições nacionais, passa a ser considerado a "Área". Todos os
recursos que ali estiverem, inclusive os minerais, são patrimônio da
humanidade. É como se houvesse uma linha na água demarcando o que é de cada um
e o que pertence a todos. Procurada pelo Valor, a Divisão do Mar, da Antártida
e do Espaço do Ministério das Relações Exteriores preferiu não se pronunciar
sobre o tema antes da reunião em Kingston.
No século XXI cresceu o
interesse no mundo pela exploração mineral dos oceanos na chamada Área. A China
já realizou prospecções na região e, não faz muito tempo, a China Ocean Mineral
Resources Research and Development Association, estatal chinesa, anunciou a
descoberta de depósitos hidrotermais (sinal da existência de minérios) no
Atlântico Sul.
Os chineses já mapearam os
locais onde eles estão e vêm manifestando interesse em associar-se, em joint
ventures, e cooperar com outros países com o objetivo de conseguir concessões
da Autoridade.
A Elevação do Rio Grande tem
sido visitada pela Alemanha e pela Rússia. O Instituto de Pesquisa Alemão
IFM-Geomar anunciou que ainda neste ano fará uma expedição oceanográfica no
Atlântico Sul para ampliar o conhecimento sobre possíveis minerais
identificados por britânicos e chineses.
A Rússia, que já faz
pesquisas no Oceano Pacífico e no Atlântico Norte, quer marcar sua presença
também no Atlântico Sul. "Se não investirmos, corremos o risco de ter um
país estrangeiro extraindo riquezas ao lado das nossas fronteiras
marítimas", diz Roberto Ventura, diretor do CPRM.
O valor dessas riquezas, por
enquanto, é incomensurável. Mas os produtos que dependem desses minérios para
existir são mais do que conhecidos. O cobalto é indispensável na produção de
ligas metálicas na indústria de aviação; nos elétrodos das baterias elétricas
dos chamados "carros verdes", movidos a eletricidade; e nos
equipamentos que usam a radiação gama para os tratamentos de câncer.
Os depósitos de fosforite,
que estão sendo mapeados nas bacias de Santos e Pelotas (RS), poderão fornecer
esse mineral, imprescindível à indústria de fertilizantes. O Brasil é o quarto
maior consumidor de fertilizantes, mas responde por apenas 2% da produção
mundial. O uso desses produtos aumentou de 3,1 milhões de toneladas em 1990
para 12,2 milhões de toneladas em 2012. Até 2017, acredita-se que o incremento
será de 3,8% ao ano.
As principais culturas que
dependem dos fertilizantes são: soja (34%), milho (18%), cana-de-açúcar (15%),
café (7%), algodão (6%) e arroz (2%). "Considerando o volume de recursos
que a mineração gera ao país e as perspectivas que se abrem com a exploração no
mar, o governo precisa tratar desse assunto mais seriamente e aumentar essa
discussão no Marco Regulatório da Mineração que tramita no Congresso",
reclama o geólogo Agamenon Dantas, da consultoria Oceanis Mineral
International.
A empresa trabalha com 40
profissionais da área que fazem diagnósticos e traçam perspectivas do setor
para a iniciativa privada e governos. Um desses consultores é o geólogo Kaiser
Gonçalves de Souza. Formado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Souza é
mestre e doutor pela Université de Paris VI em geologia marinha.
Nascido no interior do
Maranhão, registrado em Pernambuco - o pai pernambucano queria que o filho
tivesse a mesma origem que ele -, Souza foi criado em Porto Alegre. Cedo se
apaixonou pelo mar. Trabalhou na Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos e
como diretor do Serviço Geológico do Brasil (CPRM - sigla advinda da razão
social Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais).
Na década passada, com sua
equipe, realizou aquele que é considerado o primeiro mapeamento da região
submersa, agora requerido pelo governo brasileiro. O pedido informa a área
pleiteada, cerca de 3 mil km2 no Atlântico Sul, e os investimentos, previstos
em US$ 11 milhões nos primeiros cinco anos de contrato. "Não é muito, mas,
nesse tipo de trabalho, o maior custo é com o aluguel de navios de outros
países, porque não temos embarcações apropriadas para essa finalidade, e com as
análises dos matérias coletados", explica Souza, que acredita no sinal
verde da Autoridade para o pedido.
Em 2011, foi fretado o navio
de pesquisa Marion Dufresne, do Instituto Polar Francês. O CPRM contratou o
navio com recursos financeiros do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) do
Ministério de Minas e Energia - aproximadamente R$ 60 milhões.
No ano passado, uma parceria
científica entre o Brasil e o Japão permitiu coletar amostras - a 4.200 metros
de profundidade - das rochas na Elevação do Rio Grande. Isso foi feito com o
minissubmarino Sinkai - um dos poucos no mundo capaz de enfrentar as condições
de profundidade até 6.500 metros -, equipado com braços mecânicos e câmaras de
altíssima resolução.
Essas expedições também
serviram para corroborar outra tese dos cientistas brasileiros em defesa da propriedade
da Elevação. Ela faria parte de uma das montanhas da cadeia que ficou submersa
em todo o Atlântico Sul, com alturas que chegam a 3.200 metros a partir do
leito do oceano.
Ainda que localizada em
águas internacionais, as rochas que foram encontradas demonstram que a região
seria uma extensão das terras brasileiras inundadas pelo oceano, separando a
margem continental brasileira das grandes profundidades oceânicas. "É como
se um enorme pedaço de nosso continente tivesse sido coberto pela água. E, de
fato, foi", afirma Ventura.
A busca por essa nova
fronteira e seus recursos deu origem a mais do que um projeto: Levantamento da
Plataforma Continental (Leplac), iniciado há duas décadas por cientistas; o
Remplac, que avalia a potencialidade mineral da Plataforma Continental Jurídica
Brasileira; e o Proarea (Programa de Prospecção e Exploração de Recursos
Minerais do Atlântico Sul e Equatorial), onde está a pesquisa da Elevação do
Rio Grande. "Eles são idênticos no objetivo, mas diferentes na área em que
atuam.
Um está na jurisdição
brasileira e outro na zona internacional dos oceanos. Na Plataforma - uma
extensão geológica, como se fosse um minicontinente - encontram-se as mesmas
rochas que na terra", explica Kaiser Souza.
"Se comprovarmos que o
continente submerso é parte do Brasil, isso pode mudar toda a dimensão atual de
nosso mar territorial", acrescenta Lauro Calliari, professor e doutor em
oceanografia geológica do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do
Rio Grande (Furg), um dos mais importantes centros de estudos brasileiros sobre
o assunto.
O Levantamento da Plataforma
foi entregue à ONU em 2004 e é uma das vertentes da Amazônia Azul. A expressão
foi criada pelo ex-comandante da Marinha Roberto de Guimarães Carvalho com o
objetivo de mostrar à população que o mar brasileiro era tão importante quanto
a Amazônia. "A Marinha nunca teve a intenção de promover uma disputa para
medir a importância de uma ou outra área. Ambas são estratégicas para nosso
país", diz o almirante José Roberto Bueno Júnior, diretor do Centro de
Comunicação Social da Marinha.
O Brasil tem cerca de 8,5
mil km de costa e uma área oceânica que totaliza quase 4,5 milhões de km2 sob
sua jurisdição, divididos da seguinte forma: nas primeiras 12 milhas náuticas
(22,2 km), o país tem a soberania total sobre a área, como se ela fosse uma
extensão do continente; depois disso, nas outras 12 milhas subsequentes está a
chamada Zona Contígua (de 12 a 24 milhas), onde as autoridades brasileiras têm
a prerrogativa de fazer cumprir as legislações aduaneira, fiscal, sanitária ou
imigratória.
Essas duas áreas estão
dentro da Zona Econômica Exclusiva. Ela é definida como o espaço marítimo onde
o país é soberano para fins de exploração, conservação e gestão dos recursos
ali existentes, como, por exemplo, os do pré-sal. Atualmente, 91% do petróleo brasileiro
vem do mar e grandes depósitos de de gás natural foram encontrados na bacia de
Santos e no litoral do Espírito Santo.
A Amazônia Azul - 4,5
milhões de quilômetros quadrados, que equivalem a 52% do território continental
do país - engloba projetos e ações nas áreas econômica, ambiental, científica e
de soberania. No mar, as fronteiras não existem fisicamente. Portanto, é a
existência de formas de dissuasão que permitem a um país mostrar aos outros seu
domínio sobre a região. "Temos uma tradição de olhar o mar de maneira
lúdica que precisa mudar. É necessário pensar no mar estrategicamente. Só para
citar um exemplo, podemos lembrar que mais de 95% das exportações brasileiras
são transportadas pelo mar", observa Bueno.
Se tantas riquezas circulam
e estão nessas águas, resguardar a soberania sobre elas é uma das grandes
preocupações das autoridades. "Somos, sim, um país com muitas carências.
Sabemos também que nossas Forças Armadas não podem ser maiores do que a
capacidade do Brasil de mantê-las.
Tudo isso, no entanto, não
nos exime da obrigação de proteger a nação", afirma o secretário da
Secirm, almirante Rodrigues. A Marinha desenvolve diversos projetos nesse
sentido, como o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub), que prevê a
construção do submarino a propulsão nuclear e um sistema de vigilância e de
monitoramento semelhante ao Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia).
Nem todos os desafios para
iniciar a conquista do território marítimo além das atuais fronteiras estão
encaminhados. Um deles é o de convencer a iniciativa privada a investir e a
participar dos trabalhos na Elevação do Rio Grande, ainda que em etapas
futuras. "Qualquer atividade no mar sempre será muito cara. A ciência fez
já uma parte, identificando os minerais que ali estão. Agora a indústria
brasileira, os grandes conglomerados de mineração, têm que participar
também", afirma o professor Kaiser Souza.
Outro obstáculo a ser
superado é o da proteção ambiental, que preocupa a comunidade científica.
"Por mais que se trabalhe com projetos que busquem a sustentabilidade,
sempre haverá algum impacto no ambiente marinho. Não é tão simples. Não é só ir
até o fundo e tirar o minério", alerta o professor Calliari.
Edmo Campos, professor do
Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo, um dos assessores da
comissão do Ministério da Ciência e Tecnologia que organiza a criação do
Instituto Nacional de Pesquisas Oceanográficas e Hidrovias, concorda com a
posição de Calliari.
Ele é especialista em
oceanografia física e coordena a participação brasileira, financiada pela
Fapesp, na análise da circulação de calor no Atlântico Sul, o Samoc (South
Atlantic Meridional Overtuning Circulation). "Já foi comprovado que essa
região não é completamente destituída de vida. Sabe-se que há muitos organismos
vivos ali que nem sequer foram classificados. Machuca os ouvidos dos cientistas
a possibilidade de que eles desapareçam sem ter sido conhecidos", afirma
Campos.
Atividades de mineração em
águas profundas, observa Campos, são passíveis de acidentes cujos danos podem
até atingir a costa. "O Brasil deve fazer as pesquisas. Mas não pode levar
isso adiante sem um estudo criterioso do impacto. Há uma série de perguntas
sobre esses trabalhos que não foram respondidas ainda", adverte.
Responder a todas as
perguntas sobre o que existe nas profundezas do mar, considerada a última
fronteira do mundo, é tarefa para muitas gerações. Até que o homem chegue lá,
as descobertas científicas deverão diminuir, aos poucos, o sem-fim dessas
questões. Mas certamente não conseguirão impedir que os segredos ocultos no
fundo das águas, por muito tempo ainda, atemorizem e estimulem a imaginação
daqueles que tentam decifrá-los. In “DefesaNet” - Brasil
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