A belle
époque na coleção de cardápios de Bilac
I
Atribui-se a Lucien Febvre (1878-1956), fundador da Escola dos Annales, a ideia segundo a qual a
História poderia ser contada a partir da escolha de novos objetos de estudos, o
que constituiu uma revolução na historiografia, tal foi o número de trabalhos
que se seguiram a partir da década de 1950 com recortes específicos. Deixou-se
de lado a concepção tradicional que marcaram os livros de História até então,
baseados nos feitos dos grandes nomes – reis, presidentes, primeiros-ministros,
governadores etc. Hoje, um livro que siga esse modelo é visto como quinquilharia
de museu, a tal ponto que um autor chegou a ser acusado pejorativamente na
universidade de candidato a membro de algum instituto histórico.
É claro que a História vista em mínimos detalhes é sempre mais
interessante do que aquela que se baseia nos feitos dos “grandes”. O problema é
encontrar nos arquivos resquícios do que pensaram ou disseram aqueles que eram
iletrados e, portanto, não deixaram registros de suas vivências, queixas,
emoções ou anseios. Quer se queira ou não, a História sempre será escrita a
partir da visão dos letrados, daqueles que deixaram registro do que viram e viveram,
refletindo obrigatoriamente a visão de mundo da classe dominante.
Mas a que vêm estas reflexões? Vêm a propósito do livro Para uma história da belle époque: a coleção de cardápios de Olavo Bilac,
de Lúcia Garcia, com prefácio do poeta e ensaísta Alberto da Costa e Silva,
ex-presidente da Academia Brasileira de Letras e ex-embaixador do Brasil em
Portugal, Nigéria, Benim, Colômbia e Paraguai.
A partir da ideia de Febvre, Lúcia Garcia escolheu a coleção de
cardápios do poeta Olavo Bilac (1865-1918), que faz parte do acervo da Academia
Brasileira de Letras, como seu objeto de estudo em busca de reflexos da vida
cotidiana que se espraiava pelos lugares frequentados pela elite carioca às
vésperas do fim do Segundo Reinado e nos anos iniciais da República. Aliás,
como observa Lúcia Garcia, Bilac, certamente, colecionava menus dos almoços, jantares e banquetes festivos de que participava
no Brasil e no mundo.
É de assinalar que, como explica a autora, a palavra cardápio é um
neologismo criado pelo filólogo Antônio de Castro Lopes (1827-1901) na década
de 1890 para substituir a palavra francesa menu
que, a rigor, significa miúdo e não tem em português equivalente, pelo menos no
sentido de almoço, jantar ou ceia.
II
Diz a pesquisadora ainda que Bilac “preservava os cardápios para
revisitar os momentos vividos, em benefício da memória, como antídoto ao
esquecimento”. Entre os cardápios reproduzidos estão alguns de banquetes em
homenagem ao próprio poeta, homem célebre ao seu tempo, e outros que celebravam
o IV Centenário do Descobrimento do Brasil, a visita ao Rio de Janeiro da
famosa atriz italiana Tina Di Lorenzo (1872-1930) e acontecimentos diversos.
Nos menus, acrescenta a
pesquisadora, estão presentes as confeitarias Pascoal e Colombo, entre outros estabelecimentos
comerciais conhecidos e frequentados pela classe dominante no Rio de Janeiro no
início do século XX. Como diz Lúcia Garcia, a extensa coleção doada à ABL por
Bilac, ou por seus familiares, revela a rede de sociabilidade do escritor, quer
pela indicação do anfitrião, quer pela assinatura dos comensais. A essa época,
é de ressaltar que havia uma “febre” entre as pessoas bem-postas na vida de
colecionar autógrafos e cartões postais.
III
Como diz Alberto da Costa e Silva no prefácio, esta coleção revela como
novos padrões se iam popularizando no País e, como pela lista de pratos,
afrancesavam-se cada vez mais as elites. A partir daí, Costa e Silva imagina o
que se conversava à época os vizinhos de mesa, já que ecos dessas tertúlias não
ficaram, a não ser esparsamente em crônicas, como as que Machado de Assis
(1839-1908) e mesmo Bilac assinavam nos grandes jornais.
Diz: “É provável que, num almoço, se discutisse a abertura da Avenida
Central pelo prefeito Pereira Passos ou a campanha sanitária de Oswaldo Cruz”.
E acrescenta mais adiante: “Pois ainda havia quem não tivesse saído do assombro
ou se acostumado, de alma rendida, à aspirina, à lâmpada elétrica, ao
telégrafo, ao cabo submarino, do rádio, ao telefone, ao navio a vapor com
hélice e casco de ferro, ao motor de combustão interna, ao automóvel com pneu
de câmara de ar, às máquinas voadoras, aos raios-X, ao cinematógrafo e à
partilha da África e de parte da Ásia entre as potências europeias”.
Da coleção constam ainda fotografias de um almoço – do qual não restou o
cardápio – na década de 1910 na fazenda em Louveira, no interior do Estado de
São Paulo, de Júlio Mesquita (1862-1927), fundador e proprietário do jornal O Estado de S. Paulo, do qual Bilac
também era colaborador. De notar, como assinala a pesquisadora, é que Bilac nas
fotografias sempre fazia questão de aparecer de perfil. É essa também uma rara
foto em que aparece alguém das classes menos favorecidas, o cozinheiro da
fazenda de Mesquita, sentado meio a contragosto e sem jeito no primeiro degrau
de uma escada à frente dos demais.
IV
Lúcia Garcia (1979) é doutora e mestre em História Política pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Participou de vários projetos de
pesquisa histórica documental e iconográfica nos últimos anos, tendo colaborado
como consultora na Comissão para as
comemorações do bicentenário da chegada de D. João ao Rio de Janeiro
(Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, 2008).
É autora de Euclides da Cunha:
escritor por acidente e repórter do sertão (São Paulo, Companhia das
Letras, 2009), A transferência da família
real para o Brasil 1808-2008, com outros autores (Lisboa: Tribuna da
História, 2007), Rio e Lisboa:
construções de um Império (Lisboa: Câmara Municipal, 2007) e Documentos oitocentistas da Biblioteca
Nacional, coautoria de Lilia Schwarcz (Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional,
2006). É coautora de Impresso no Brasil:
Destaques da História Gráfica, organizado por Rafael Cardoso (Rio de
Janeiro: Verso Brasil, 2009). Adelto
Gonçalves - Brasil
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PARA UMA HISTÍORIA DA BELLE ÉPOQUE: A COLEÇÃO DE CARDÁPIOS DE OLAVO
BILAC, de Lúcia Garcia, com prefácio de Alberto da Costa e
Silva. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 288 págs., 2011, R$ 130,00.
E-mails: livros@imprensaoficial.com.br
academia@academia.org.br
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Adelto Gonçalves,
mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispanoamericana e doutor
em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999), Barcelona
Brasileira (Lisboa: Nova Arrancada, 1999; São Paulo: Publisher Brasil,
2002), Bocage – o Perfil Perdido
(Lisboa: Editorial Caminho, 2003) e Tomás
Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
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