Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Canadá - Um clique chamado Amália

Cheguei a Toronto numa quarta-feira do mês de outubro de 1998. Dois dias depois, o ritual iniciático da minha entrada no coração da comunidade portuguesa – bica numa pastelaria portuguesa. Presente está ainda o cheiro da tinta dos jornais comunitários que folheei naquela manhã de outono. A pessoa que me acompanhava na peregrinação pelas romarias da saudade preveniu-me:

- Não valem nada, estão cheios de erros!

Não dei importância ao comentário. Sempre gostei de ser eu a desbravar caminho para tirar as minhas conclusões. Por isso, peguei num exemplar de cada título e levei-os para casa. Um até me foi extremamente útil, já que acabei por lá descobrir o anúncio da casa para onde fui viver: muito bem localizada, e com cujos senhorios mantenho estreitos laços de amizade.

Voltando à imprensa comunitária. Ao folheá-la, tenho de reconhecer que, numa primeira fase, fui obrigada a valer-me da ajuda de uma amiga para poder descodificar anúncios que eu, virgem na linguagem das diásporas, não conseguia perceber. Algumas profissões, como a de “briqueleiro” - só para dar um exemplo – eram-me totalmente desconhecidas. A forma como se descreviam as casas também me escapava ao entendimento que eu tinha da matéria. Retenho algum desse léxico que me recorda a candura com que tantos vivem a aventura da integração. A título de exemplo, um “basement desenterrado” que um dia vi para alugar numa transversal à Bathurst, o que só abona a favor da imaginação com que cada um se adapta à plasticidade de uma língua reinventada ao sabor das necessidades e do improviso.

Quanto aos erros, é verdade que encontrei alguns, semeados aqui e ali por entre linhas de prosa nem sempre bem alinhavadas. É também verdade que cheguei mesmo a brincar com os autores de alguns, numa saudável convivência de companheiros das mesmas estradas. Mas, à medida que fui ficando, e eu própria me deixei contaminar por algumas interferências. Comecei a mudar de opinião e aprendi a fazer leituras muito mais tolerantes do problema. Acabei mesmo por ter um enorme apreço e uma profunda admiração por todos aqueles que, longe da sua terra, teimam em continuar a usar a língua materna como veículo de comunicação, e a mantê-la viva nos periódicos que gratuita e semanalmente são distribuídos.

Sou agora parte desta família há vinte anos, tantos quantos os que se passaram sobre a morte de Amália Rodrigues. Convidada por Frank Alvarez para ser colaboradora de um jornal, que pretendia assinalar a passagem do milénio, precisava apenas de um clique que me fizesse tomar a decisão, sem nunca imaginar que fosse a diva a acioná-lo.

Toda a baixa portuguesa de Toronto calava o silêncio do luto carregado: nas fotografias exibidas nas montras da Dundas e College, nos jornais expostos nas bancas das papelarias, nos livros repescados das prateleiras, nas músicas que ecoavam do interior das casas especializadas em discos, CD e cassettes pirata. Repentinamente, até o S. José de azulejos se rendia à dor dos dois braços abertos àquela morte inesperada.

Nessa hora longe da Pátria, observei a comunidade rendida a uma mulher que, povo como nós, a todos representava na melopeia dos fados que chorosamente a celebravam. O país galgou as fronteiras da geografia e veio quedar-se ali para que, juntos, nos entregássemos à dor daquela partida. Fui para casa ouvir Amália, e dei por mim a escrever um texto para lhe prestar a minha homenagem. Nasceu assim a minha primeira crónica, aquela com que, desde então, passei a prestar a minha colaboração semanal no Milénio.

Se o caminho se faz caminhando, o da escrita não foge à regra. Dei por mim a passar do gatinhar para a passada segura, determinada a seguir em frente. Já não me imagino sem este pequeno exercício de reflexão sobre os pequenos nada do quotidiano. É a minha higiene mental, o pedaço de intimidade que reservo entre mim e o papel branco, na sua nudez natural, onde dou corpo e alma a mais um instantâneo da vida. Aida Batista – Canadá In “Milénio Stadium”

Sem comentários:

Enviar um comentário