I
Apontado pela crítica
portuguesa como o segundo melhor lançamento de 2005, o livro K O escuro da semente, do poeta
brasileiro Vicente Franz Cecim (1944), sai agora no Brasil pela editora Letra
Selvagem, de Taubaté, em versão transcriada que deixa um pouco desatualizada a
edição portuguesa. Na época, o seu autor foi saudado por Eduardo Prado Coelho
(1944-2007) no jornal Público, de
Lisboa, como “uma revelação extraordinária”. Quem conheceu Prado Coelho sabe
que era preciso muito para arrancar daquele professor, crítico e ensaísta um
elogio tão desmedido.
Talvez por isso Cecim seja
hoje mais conhecido em Portugal do que no Brasil. Assim, este lançamento da
Letra Selvagem, de certo modo, vem corrigir essa injustiça, já que, por um
desses paradoxos brasileiros, o poeta ainda é quase um desconhecido, embora
seja vasta a sua fortuna crítica e grande o número de resenhas de seus livros publicadas
em jornais e revistas.
Aliás, em artigo publicado no
Jornal da Tarde, de São Paulo, em
31/1/1981, o grande crítico Leo Gilson Ribeiro (1929-2007), ao resenhar os dois
primeiros livros do jovem Cecim – A asa
da serpente e Os animais da terra
–, publicados em Belém, em edições de autor, já o colocava como um importante
escritor da geração pós-1964, ao lado Raduan Nassar, João Gilberto Noll, Mora
Fuentes (1951-2009) e Carlos Emílio Correa Lima. Ribeiro destacava que em A asa da serpente Cecim abordava um tema
caro a Jorge Luis Borges (1899-1986), o de um homem que consegue o direito a
uma segunda morte, já que a primeira havia sido a de um covarde.
Refinado e sofisticadíssimo,
aprovado por outros críticos como Benedito Nunes (1929-2011), Moacir Amâncio,
Oscar D´Ambrosio, Nelly Novaes Coelho e Carlos Menezes, no Brasil, e Manuel de
Freitas e António Cabrita, em Portugal, Cecim constrói há quatro décadas uma obra multifacetada e
marcada pela presença da natureza, com a Amazônia transfigurada na região
metafísica de Andara, um Éden amazônico e suas alegorias.
II
K
O escuro da semente
é mais um daqueles livros que o autor chama de “visíveis” e reúne na obra
imaginária Viagem a Andara oOlivro invisível,
que não escreve e só existe na alusão de um título. É o que o poeta denomina de
“literatura-fantasma”, em que foge a uma classificação formal, pois não se sabe
se se trata de um romance escrito em prosa poética ou de um longo poema em
prosa, mas sim de um gênero híbrido, que absorve todos, constituindo um diálogo
entre Pai e Filho ou entre irmãos, como Iziel e Azael e Oniro e Orino. É também
o seu primeiro livro em iconescritura, pois une imagens e palavras.
De difícil leitura e
definição, ao menos para aqueles leitores pouco afeitos à poesia menos
convencional, o estilo de Cecim lembra a inquietação existencial de Samuel
Beckett (1906-1989), Thomas Stearns Eliot (1888-1965), Ezra Pound (1885-1972) e
Franz Kafka (1883-1924), passando ainda por Lautréamont (1846-1870),
especialmente o de Os Cantos de Maldoror,
e Zaratustra (660-583 a.C). Não é pouco.
É o que se pode constatar no capítulo (?) “Da voz de
Areia Lenta” (pag. 67-68):
Eis: a história:/ – E cada um possui a todos dentro de si e vê
em outro a todos, e tudo é tudo e cada um é tudo/ e cada um é tudo/ e o Fulgor é imenso, / pois
cada um deles é grande,/ pois também o pequeno é grande/ Lá o sol é todos os
sóis/ E cada sol é sol e todos os sóis/ Tendo nos dito isso, e o Fulgor é
imenso,/ Plotino, pois fosse sua aquela Voz em chamas. / – É? Nos perguntamos.
E cada um possui a todos dentro de si. / Mas de onde vem então esse vento, em
Andara, que diz:/ – Um animal é uma
falta de tudo para sempre./Vem de páginas passadas em Andara, virando páginas
passadas de Andara./ É sempre em Andara que esses ventos vêm soprar, e esse
quis soprar aqui de novo./ Ei-lo. Dizendo, esse vento/ O que um dia já foi dito
por Iziel a Azael nessas páginas passadas/ Está lá, no livro que um dia se
chamou Silencioso como o Paraíso após a expulsão das criaturas humanas, essa
página passada./ Que diz, seu eco ainda nos chegando/ Vem lá do Paraíso (....).
Na apresentação que escreveu para este livro, António
Cabrita, romancista e ensaísta português que vive em Moçambique desde 2005, diz
que Cecim escreve sempre o mesmo livro sob um novo ângulo, “numa busca do que é
mais conforme à fonte”. E acrescenta: “as figuras, os topoi, as metáforas que se apresentam neste longo poema já estão
presentes nos anteriores”. Por isso, diz, “K
O escuro da semente ergue-se então como um novo andamento na sinfonia”. Não
é preciso dizer mais. Só resta, então, ao leitor buscar este livro. E tentar
decifrar o enigma.
III
Vicente Franz Cecim,
jornalista e publicitário, nasceu em Belém do Pará, onde vive até hoje. Seus
avós paternos eram libaneses e italianos que imigraram para a Amazônia no
início do século XX. Da mãe brasileira, paraense nascida em Santarém, a
escritora Yara Cecim (1916-2009), o escritor herdou o gosto pelo mundo natural.
Em 1979, com A asa e a serpente, teve início a sua
obra imaginária Viagem a Andara oOlivro
invisível, transfiguração da Amazônia em região-metáfora da vida em que
natural e sobrenatural convivem de maneira harmoniosa e mútua epifania. Em
1980, recebeu o prêmio Revelação de Autor da Associação Paulista de Críticos de
Arte (Apca), por sua segunda obra, Os
animais da terra. Em 1981, A noite do
Curau, primeira versão do terceiro livro de Andara, Os jardins e a noite, recebeu menção especial do Prêmio Plural, no
México. Em 1983, durante o Congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência (SBPC), em Belém, o escritor fez um apelo à insurreição da Amazônia
em seu “Manifesto Curau”.
Ao longo dos sete primeiros
livros do ciclo de Andara, prosseguiu abolindo as fronteiras entre prosa e
poesia. Publicados inicialmente pela Editora Iluminuras, de São Paulo, no
volume Viagem a Andara, os livros receberam,
em 1988, o Grande Prêmio da Crítica da Apca, que, década de 1980 seria somente
atribuído também a Hilda Hilst (1930-2004), Cora Coralina (1889-1985) e Mário
Quintana (1906-1994) e, na seguinte, a Manoel de Barros (1916-2014).
Em 1995, publicou Silencioso como o Paraíso (São Paulo,
Iluminuras), reunindo mais quatro “livros visíveis” de Andara. Em 2001, quando a
invenção Andara completava 22 anos, publicou O Serdespanto, pela Íman Edições, de Almada, com dois novos livros
de Andara, apontado pela crítica portuguesa como o segundo melhor lançamento do
ano. Livro duplo, em que a palavra cada vez mais aprofunda o seu diálogo com o
silêncio, foi reeditado em 2006 pela Bertrand Brasil.
Em 2004, relançou as versões
finais, transcriadas, os sete primeiros livros de Andara reunidos nos volumes A asa da serpente e a Terra da sombra e do
não (Belém, Cejup). Em 2005, publicou o seu primeiro livro em Portugal, K O escuro da semente (Maia, Ver o
Verso), então inédito no Brasil.
Em 2008, lançou pela
Tessitura, de Belo Horizonte: oÓ:
Desnutrir a pedra. Nesta obra, aprofunda sua demanda de uma nova escritura,
mesclando palavra, silêncio da página em branco e imagem. Segundo ele, durante
esses anos todos, Andara lhe desvelou que “o natural é sobrenatural, o
sobrenatural é natural.”
Em 2009, a invenção de Andara
atingiu 30 anos de criação. Nesse ano, saiu encartado no volume Do abismo às montanhas (Seminários
Internacionais Vale) seu livro de cantos/poemas de Andara, Fonte dos que dormem. Em 2014, lançou Breve é a febre da terra (Belém, IAP, Prêmio Haroldo Maranhão de
Romance). Atualmente, escreve Oniá um
lugar cintilante, “um novo livro visível”. Adelto Gonçalves - Brasil
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K O escuro da semente, de Vicente
Franz Cecim, com apresentação de António Cabrita. Taubaté: Editora Letra
Selvagem, 1ª edição, 384 págs., R$ 50,00, 2016. Site: www.letraselvagem@letraselvagem.com.br
E-mail: letraselvagem.com.br
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Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), e Direito e Justiça em
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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