Ao Afonso Fernandes,
grande amigo e amante
do Zeca
O diretor do PGL, o
companheiro Ernesto Vázquez Sousa, pediu-me que escrevesse qualquer cousa, um
algo, sobre o Zeca Afonso e a Galiza. Ao começo pensei que não estava
capacitado e rejeitei amavelmente a proposta, a aludir um futuro artigo sobre a
eterna dialética otimismo / pessimismo em redor do País. Mas afinal
reconsiderei o assunto com o intuito de tentar atar doutro jeito os dous cabos
da corda, o Zeca e o nosso País. Achei que qualquer cousa boa poderia surdir do
simples fato de tentá-lo, mesmo se o resultado não fosse o esperado. Eu não
tenho muitos conhecimentos sobre a relação do Zeca com a Galiza, e pus-me então
a reviver as suas canções, muitas vezes escutadas, muitas vezes admiradas.
Queria encontrar uma música e uma letra que puxassem por mim pra escrever o
artigo. Mas nada chegava com a suficiente força. As canções eram magníficas,
mas não chegava o que tinha que chegar. Até que digitei no computador Traz outro amigo também.
Estou condenado a digitar porque os quatro LPs que tinha do cantor de Aveiro,
emprestados pelo Afonso Fernandes e gravados em cassete, desapareceram há
tempo, um dia que a fita, cansada de virar, saiu pra fora e ao querer eu
arranjar o problema, rachou ou estragou-se, sei lá. A fita já não queria virar
mais. Inda há pouco comprei Com as minhas tamanquinhas em CD,
felizmente recuperado.
Mas o que tinha que chegar
chegou. Após bastantes anos a voz única e profunda do Zeca, tremendo no ar,
voltou a emocionar-me, voando muito perto dalgo que procurava e não achava. Amigo. Maior que o pensamento. Por essa
estrada amigo vem. Não percas tempo que o vento é meu amigo também. Em terras.
Em todas as fronteiras. Seja bem-vindo quem vier por bem. Se alguém houver que
não queira, trá-lo contigo também. Aqueles, aqueles que ficaram. Em toda a
parte todo o mundo tem. Em sonhos me visitaram. Traz outro amigo também. E
chorei sem querer chorar. Sempre gostara muito daquela cantiga, mas agora
parecia-me diferente, grandiosa, aquela letra tão simples e tão perfeita,
aquela melodia tão intensa, uma cantiga sublime para falar da amizade
universal.
O Zeca repetia com frequência
em Portugal que a Galiza não era Espanha, e já estava farto de o fazer, lutando
contra os preconceitos lusitanos. É bem sabido que a primeira vez que cantou a Grândola foi
em Compostela, anos antes do 25 de Abril. A Galiza teve o privilégio de escutar
um dos mais grandes hinos à liberdade pela primeira vez. A guarida do Zeca foi
a Galiza, como ele próprio dizia, o seu refúgio, e o cantor na nossa terra
sentia-se à vontade. A garrafa vazia de Manuel Maria, dizia
numa das suas canções, mencionando o nosso poeta da Terra Chã e amigo seu. Maior que o pensamento. A amizade
torna-se qualquer cousa elevada e inexprimível. Perante o pessimismo que muitas
vezes nos afoga ao pensarmos na nossa realidade, perante a perda de identidade,
temos de pensar que se calhar a Galiza é maior que o pensamento, e se fazemos
confiança nela, ela há-de vir por essa estrada, tarde ou cedo.
Por essa estrada amigo vem. A
estrada está sempre pronta para ser percorrida. Não se pode viver sempre num
mundo artificial, alienante e inautêntico, tendo muito perto aquilo que é
autêntico e libertador. Por baixo do disfarce mais ou menos grosso do
colonialismo, mora ainda um galego capaz de sê-lo se quiser. Com efeito,
podemos escolher o pessimismo e pensar que a estrada vai ficar sempre baleira,
a esperarmos o amigo que nunca chegará. Mas também podemos escolher o otimismo
e confiar em nós próprios, apesar dos nossos grandes erros coletivos. Também
podemos confiar nos nossos devanceiros e nos nossos filhos, reafirmando a
identidade que ainda os une através da língua.
Vinho
velho vinho novo tudo a terra pode dar. Dêem as pipas ao povo. Só ele as sabe
guardar, escrevia o poeta cantor na bela canção Viva o poder popular.
Criemos um patriotismo popular e democrático, longe da falácia dos partidos
políticos. Um patriotismo popular para recuperarmos a identidade, o uso e a
qualidade da língua, para recuperarmos o autogoverno, para poder construir um
espaço próprio, um futuro neste mundo globalizado, insustentável e autómato,
onde no planeta inteiro nada é diferente e tudo é o mesmo. Se não chamamos pelo
amigo, o amigo nunca virá.
A Galiza está longe, como
longe estava Ítaca para o valente Ulisses. Mas essa viagem possível, herdança
do colonialismo, tem qualquer cousa positiva. A Galiza aparece como o ideal a
atingir, não um ideal perfeito, não uma falsa Arcádia, mas uma revolução
possível, uma realidade claramente melhor da que temos hoje, uma Pátria
imprescindível em redor da qual criar uma nova sociedade democrática e livre,
capaz de derrubar a tirania económica e política do Estado. A Galiza deve ser o
ideal que puxe por nós, a vontade inquebrantável de voltarmos ao lar, apesar de
todos os obstáculos.
Milho verde, milho verde (…) folha larga maçaroca, cantava o
Zeca. Há razões para o pessimismo, muitas. Eu mesmo tenho morado no pessimismo
no passado. Mas também há muitas razões para o otimismo. O nosso meio rural e a
nossa língua ainda estão vivos. Temos mais de mil aldeias abandonadas, mas por
enquanto a nossa grande dispersão geográfica ainda é uma realidade como traço
identitário. Outros povos não resistiram à maquinaria implacável do
Estado-nação e no século XXI acham-se com a identidade quase perdida,
nomeadamente no caso da língua própria: o povo bretão, o povo corso, o povo
escocês, irlandês ou galês. Na minha viagem à Bretanha tinha a formosa esperança
de escutar a língua dos Bretões, mas o único que pude fazer nas duas semanas
que lá estive foi comprar livros em bretão. Já não se escuta a antiga língua
céltica, quase o mesmo que acontece na Irlanda independente ou no País Basco,
onde só uma minoria usa o gaélico ou o euskara, apesar mesmo de serem línguas
oficiais. Somos, portanto um povo forte, de grande resistência.
O que faz falta é acordar a malta, dizia
o Zeca. Cumpre organizarmo-nos, criarmos consciência de País. Precisamos há muito
tempo de um movimento organizado e popular, que for capaz de acordar a malta. A
malta é o Povo Galego, espanholista ou não, galego-falante ou não. Mas é o Povo
Galego que deve ser acordado, transformado, mudado. A Espanha não é o principal
obstáculo. O principal obstáculo somos nós próprios, a Espanha que alimentamos
no nosso interior. Temos que ultrapassar a resistência pra chegarmos à ação. E
a ação começa sempre no interior, na mudança interior. Não nos podemos
resignar, eis o grande erro. A realidade é sempre dinâmica, transformável. Como
dizia Uxio Novoneyra num emocionante poema: sabemos
que o ser humano pode ser outra cousa, sabemos que a Galiza pode ser outra
cousa.
Vejam bem que não há só gaivotas em terra quando um homem se põe a pensar. E se
houver uma praça de gente madura e uma estátua de fevre a arder. Estes
grandes versos do Zeca Afonso estão a falar de nós. O sistema político atual
nega o pensamento, conquista o planeta com a criação de um ser não pensante em
mãos do Estado e da sua falsa democracia, em mãos de uma tecnologia alienante.
Mas quando um homem se põe a pensar, pode surdir a Galiza, um povo indomável
sem Estado próprio no Fim da Terra, que para ser livre só precisa de uma cousa:
a liberdade. E se calhar ainda lá espera uma praça de gente madura.
Em terras. Em todas as fronteiras. Seja bem-vindo quem vier por bem. Estes
sublimes e singelos versos de fraternidade universal devem ser aplicados na
Galiza. Seja bem-vindo quem vier por bem. Quem vier por bem deve ser sempre
bem-vindo. Esqueçamos os dogmatismos e as ideologias para permitirmos a união.
O amor pela Galiza há-de fazer o resto.
Amigo.
Maior que o pensamento.
Galiza.
Maior que o pensamento
Por
essa estrada amigo vem
Manuel
Meixide – Galiza
Manuel
Meixide Fernandes - Depois de nascer em Chantada e passar alguns
anos pela Península adiante, nomeadamente em Euskadi, onde chega a estudar a
metade do primeiro ano do antigo E.G.B., com sete anos volta definitivamente
para morar na Galiza, na sua comarca natal. Lá estudará o resto do ensino
primário e secundário, para finalmente obter em Compostela a Licenciatura em
Filosofia e Ciências da Educação. Um ano antes começa a estudar o curso de
Tradução e Interpretação na cidade de Vigo. Tem colaborado na década de noventa
na revista chantadina Além-Parte, publicando nela diversos contos. Foi
co-fundador da infelizmente dissolvida Associação Cultural Rodrigues Lapa,
nascida na vila do Asma no ano 2007. A partir do ano 2001 dá aulas de francês
no secundário, morando na vila da Estrada desde o ano 2011.
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