O
que mais me prendeu no filme – e quero aqui salientar – é a expressão explícita
e dolorosamente real da crueldade que a sociedade actual dirige à velhice
1. O último filme de António
Pedro Vasconcelos parece não ter agradado a alguns críticos. Percebe-se.
O filme - reconheça-se -
fala de assuntos e sentimentos intelectualmente pouco elaborados. Exibe a
banal, mas revoltante, miséria de uma sociedade marginal - na verdade,
discriminada - e da juventude urbana que ela gerou: uma juventude sem passado,
sem presente e, provavelmente, sem futuro.
Mostra, por outro lado, a
atitude confiante de uma mulher mais velha, ainda militante de ideias antigas,
mas hoje acintosamente incómodas: uma mulher de uma geração capaz de actos de
uma generosidade transformadora e não apenas conformada e conivente com a
injustiça reinante.
Transmite-nos, de choque,
uma certa linguagem juvenil, que rebenta directa na nossa cara - e não só por
causa do magnífico som do filme - mas que só espanta quem, porventura, não usa
transportes públicos.
Conta-nos, na verdade, uma
estória com princípio, meio e fim que, em vez de nos deixar desesperados e sem
rumo, contém em si mesma o fermento da esperança na humanidade.
É, portanto, um grande
filme!
2. Não é, todavia, minha
intenção converter-me, agora, em crítico de cinema. Gosto muito de cinema, mas,
em rigor, nada sei sobre a sua arte.
O que mais me prendeu no
filme - e quero aqui salientar - é a expressão explícita e dolorosamente real
da crueldade que a sociedade actual dirige à velhice.
Não falo já da situação
económica da velhice mais desprotegida, que nele apenas aparece retratada em
personagens laterais. Falo da velhice enquanto circunstância de vida de muita
gente de todas as condições sociais.
O que o filme denuncia é a
atomização e a desumanidade da vida das pessoas engendrada por uma sociedade
frenética, desequilibrada, doente e doentia, e muitas vezes amoral, que dificulta
a comunicação dos mais velhos com os mais novos, dos filhos com os pais, enfim,
das pessoas, umas com as outras.
A "coisificação"
das pessoas, a tentativa de as tornar descartáveis - desprovidas de alma e
sentimentos - não é, sabemos, um fenómeno inteiramente recente ou original.
Em todo o caso, apesar de
todas as vicissitudes, a humanidade tinha vindo, nos últimos séculos, a
conseguir amaciar um pouco as esquinas mais afiadas da sua maneira de viver
junta, da sua convivialidade.
Ora, o que hoje nos querem
fazer crer é, precisamente, que esse caminho de humanização das relações
sociais deve ser interrompido - e pode mesmo ter de regredir - em nome de um
almejado, mas sempre distante, progresso económico.
Só que, por fim, ninguém tem
a amabilidade de nos dizer quem beneficiará com ele: serão os velhos, os novos,
a maioria, ou apenas uma cada vez mais pequena minoria?
O que constatamos é que o
tal progresso económico não tende já a tornar menos agreste a vida dos muitos -
designadamente a dos mais velhos - e aí reside o paradoxo atroz desse discurso.
E, todavia, têm sido esses
velhos que, com as suas pequenas reformas, com o pouco que lhes resta da sua
estabilidade material e emocional, têm conseguido acudir aos sobressaltos diários
dos mais novos, garantindo uma réstia de humanidade à vida social.
Só que esses velhos têm
alma, têm vida, têm aspirações e esperanças próprias e não podem ser tratados
apenas como caixa de previdência dos mais novos, e só enquanto como tal puderem
funcionar.
A humanização da vida pode,
se todos quisermos, continuar a ser um sonho e também uma realidade que
construímos diariamente.
Não lhe criem falsos
obstáculos.
Os gatos podem não ter
vertigens: os homens sim, mas com coragem, podem vencê-las. António Cluny – Portugal in "Jornal I"
António
Cluny – Jurista e presidente da MEDEL
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