Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 27 de março de 2019

Guiné-Bissau – Entrevista ao poeta e deputado Francisco Conduto de Pina

“O melhor que o colono nos deixou foi a língua”

Foi em Bubaque, uma das ilhas do arquipélago guineense dos Bijagós, que nasceu Francisco Conduto de Pina. Em entrevista ao PONTO FINAL, o deputado e poeta da Guiné-Bissau, que passou por Macau a propósito do Festival Literário Rota das Letras, conta que o interesse pela poesia surgiu quando, em criança, caiu da bicicleta e escreveu “O Chico Caiu da Bicicleta”. A obra de Francisco Conduto de Pina tem tido duas vertentes: o elogio ao seu país e a intervenção. “A poesia pode servir como uma arma de arremesso”, diz

Francisco Conduto de Pina, poeta e político. Nascido nos Bijagós, foi lá que teve o seu primeiro encontro com a poesia. Escreveu “O Chico Caiu da Bicicleta” ainda em criança, um poema que, como o título indica, contava o infortúnio do jovem Francisco ao cair da sua bicicleta. O seu professor fez com que o poema saísse no jornal e, a partir daí, ganhou-lhe o gosto e nunca mais deixou de escrever. Sai de Bubaque, vai estudar para Bissau e, mais tarde, para Lisboa, onde acompanhou o Verão Quente de 1975. Voltando à Guiné-Bissau, torna-se deputado pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). “A poesia pode servir como uma arma de arremesso, como uma arma de chamar a atenção, como uma arma de divulgar e promover”, é assim que Francisco Conduto de Pina diz usar o facto de ser poeta ao mesmo tempo que é político. A intervenção é uma das marcas dos poemas de Francisco Conduto de Pina e ainda hoje a luta faz sentido porque “a poesia fica mais bonita se houver mais democracia”, até porque “a liberdade é uma coisa que não é estática”, diz. Além disso, passou ainda por vários cargos no Governo da Guiné, chegando a ser ministro do Turismo e do Ordenamento do Território entre 2000 e 2008. Foi o primeiro autor a publicar poesia em crioulo da Guiné. Porquê? Porque é a língua que dá autonomia e comunicação ao povo da Guiné, explica. Publica também em português, língua à qual deixa o elogio: “O melhor que o colono nos deixou foi a língua, onde nós todos fomos beber a nossa identidade”. Por fim, a Guiné, uma “miúda bonita”. É sobretudo sobre a sua beleza que a poesia de Francisco Conduto de Pina se centra: “Nunca, enquanto for vivo, nunca deixarei de cantar, descobrir, divulgar a Guiné. A nossa Guiné é linda”.

Como foi crescer em Bubaque?

Nasci numa tabanca chamada Bijante, em Bubaque, onde fiz toda a minha juventude. Depois fui parar aos padres, à missão católica, e aí fiz a minha instrução primária. Depois, como ali não havia ciclo preparatório, passámos para Bissau. Estudei em Bissau e depois chegou a altura de estudar no exterior e fui para Portugal.

Como é que foi estudar para a missão católica?

Fui parar aos padres por causa dos padres italianos. O padre era bastante amigo dos meus pais, e eu e outros colegas fomos parar à missão católica, em internato, praticamente. Lá fizemos o possível.

Uma boa infância?

Foi uma infância sem essas mordomias que as crianças de hoje têm, fiz as minhas brincadeiras, na praia a subir paus, com as nossas criatividades próprias das crianças de África. Fiz tudo aquilo que uma criança em África faz. Uma criança que nasce numa tabanca, numa aldeia, não tem electricidade, não tem carrinhos, nós é que tínhamos de fazer os carrinhos, nós é que tínhamos de fazer tudo, inventávamos tudo o possível. Uma infância que eu considero feliz.

Como é que a poesia entra na sua vida? Quando é que se começa a interessar?

A poesia entra na minha vida por causa dessa vivência na missão católica. Com os padres italianos estudávamos, tínhamos o programa de saber cozinhar, saber servir, trabalhar para poder sobreviver no dia de amanhã, e tínhamos a leitura. E eu lembro-me de quando caí da bicicleta, machuquei-me todo e depois o padre viu-me a chorar e perguntou o que é que se passava e eu contei-lhe, e ele disse: “então, escreve isso, escreve isso”. Eu lembro-me que escrevi, rasurei, fiz umas coisas, depois ele rasurou, disse-me como fazer e, como ele era correspondente do jornal A Voz da Guiné, pegou naquilo e mandou para o jornal. Depois, quando o jornal saiu na semana seguinte, ele mostrou-me e eu adorei. Depois, lá fui fazendo e fui aprendendo com ele.

Ainda se lembra do poema?

Por acaso ainda tenho esse recorte de jornal em casa. “O Chico Caiu da Bicicleta”, era o título. Contava como é que eu tinha caído.

Foi a partir do momento em que viu o seu trabalho publicado no jornal que começou a interessar-se?

É, gostei, senti-me orgulhoso.

Passando para outra fase da sua vida, como é que viveu a conquista da independência por parte da Guiné? Qual foi o seu papel?

Como deve imaginar, eu e todos os guineenses tínhamos um ardor nas veias, não podíamos não ficar satisfeitíssimos com a independência. A independência trouxe-nos o orgulho de sermos nós, orgulho de sermos guineenses, a nossa bandeira, o nosso hino. Os castigos, a tortura, a prisão, a PIDE, era uma forma de nos libertarmos do jugo colonial. Não só nós, como Cabo Verde, porque o PAIGC libertou não só a Guiné-Bissau, mas também Cabo Verde. Na altura, não podia ficar indiferente ao que estava a acontecer. Nós acompanhámos vivamente a entrada dos novos guerreiros e, por isso, cantámos, declamámos, escrevemos, não nos cansávamos de gabar o heróico povo da Guiné-Bissau. Eu estava em Bissau e ninguém ficou de fora porque era um sentimento ímpar. Nós, já crescidos, não podíamos ficar de fora, tínhamos o orgulho de termos conseguido a independência nessa altura, para não passarmos pelo massacre e vicissitudes que o colonialismo nos impunha.

Foi a partir do movimento de independência da Guiné que começou a ganhar interesse pela política, ou já vinha de trás?

Já vinha de uns anos para trás. Convivia com muitos colegas que, no decorrer dos anos, foram fugindo para a luta, para a mata. Cada vez mais, todas as pessoas ficavam atentas e os mais velhos fugiam sempre, quando chegava a uma certa altura, uma certa idade, iam para a luta. Não podíamos ficar indiferentes a isso. Ouvíamos a Rádio Libertação às escondidas, falávamos às escondidas. Toda a gente estava envolvida, directa ou indirectamente.

Tornou-se, mais tarde, deputado…

Tornei-me deputado em 1994, com a abertura da democracia.

Como é que o facto de ser poeta o influenciou enquanto deputado? O que é que um poeta pode dar à política?

A poesia pode servir como uma arma de arremesso, como uma arma de chamar a atenção, como uma arma de divulgar e promover. Uma promoção no sentido do amor, de solidariedade, de compreensão, de anunciar, de denunciar.

É nesse sentido que tenta usar a poesia na política?

Sim, sim.

E ao contrário, o que é que um político pode dar à poesia?

O político pode dar à poesia sempre que dê coisas boas dentro do país. Desde que seja compreensivo, trabalhe pela segurança social, trabalhe pelo bem-estar do povo, se for honesto, se servir. Aí, a poesia pode, em vez de ser de intervenção, passar a ser uma poesia de amor, de cantar o belo, cantar a natureza, cantar o povo e a cantar a alegria e o sorriso.

Mas há uma poesia antes de ser deputado e uma depois?

Não, não, não. Eu vou escrevendo. Eu escrevo em qualquer momento, eu escrevo de acordo com o espaço, o tempo, o lugar onde estou e com os sentimentos. Não há diferença. Não faço todos os dias poesia política.

Foi para Lisboa em 1975 e em 1981 foi estudar Artes Visuais e Belas-Artes. Isso afectou a sua poesia de alguma maneira?

Não. Com a ida para Lisboa eu fui conhecendo. Eu não sou um homem estático no espaço. Vou acompanhando o mundo e a minha ida para Lisboa ajudou-me a conhecer outras gentes, outras pessoas, conhecer outros costumes, conhecer a literatura portuguesa, conhecer outros poetas.

Esse período pós-25 de Abril também vincou a sua posição política?

Lógico. Marcou-me porque, nessa altura, era jovem e vivia-se em Portugal o chamado “Verão quente”, o período de transição entre o fascismo e o início da [Assembleia] Constituinte, da afirmação da democracia em Portugal. Isso foi mexendo comigo, foi-me dando uma experiência de vida. Eu, hoje, quando revejo o meu passado em Portugal, vejo os erros que foram cometidos nessa altura, eu procuro não os repetir na Guiné-Bissau.

Foi secretário de Estado, depois ministro do Turismo e Ordenamento do Território, entre 2000 e 2008, e foi também secretário de Estado da Juventude, Cultura e Desporto até 2016. A poesia da Guiné é mais uma forma de promover o turismo do país?

Tem ajudado. O próprio Amílcar Cabral, com a letra do hino nacional e não só, em vários temas, como o Vasco Cabral, o Hélder Proença, a Odete Semedo, a Domingas Samy, o Abdulai Silla, o Tony Tcheka, o Agnelo Regalla. Todos eles lutam, anunciam, denunciam, cantam os efeitos da nossa vivência democrática, condenam os actos repressivos, cantam a liberdade, cantam o fulgor da luta de libertação. Tudo isto dá consciência às pessoas. O Zé Carlos na música, o Aliu Bari… Tudo isso promove a Guiné. As mulheres cantadeiras de batuque também. Tudo isso faz com que a cultura guineense viva e chama a atenção.

Foi o primeiro a publicar, em nome próprio, poesia em crioulo da Guiné…

É verdade, fui o primeiro guineense pós-independência a publicar sozinho, em nome próprio.

E porque é que decidiu fazê-lo? Foi uma maneira de preservar a língua?

O crioulo é a nossa língua nacional, é a nossa língua de comunicação. Como sabe, vivemos num país onde temos muitas etnias. O melhor que o colono nos deixou foi a língua, onde nós todos fomos beber a nossa identidade. Ainda que a língua oficial seja o português, temos também o guineense, que nos dá a autonomia de estarmos em comunicação permanente entre os povos existentes na Guiné-Bissau.



Porque é que antes de o Francisco o ter feito, não havia poesia publicada em crioulo da Guiné?

Penso que por causa da censura, talvez. Mas as pessoas escreviam, podia não estar publicado, mas, quando digo que sou o primeiro guineense a publicar em crioulo é pós-independência. Há muitas pessoas antes de mim, o [Pascoal] D’Artagnan, que escrevia em português e, de vez em quando, punha uma palavra ou outra em crioulo.

O crioulo é a língua mais falada da Guiné…

É o mais falado. É a comunicação que nós temos para nos compreendermos, para divulgar, informar, consciencializar, formar as pessoas também.

Hoje já se escreve mais poesia em crioulo da Guiné?

Claro, a juventude de agora está a crescer, está rebelde no bom sentido, no sentido da escrita. A poesia, o conto, mesmo na rádio dá-se o noticiário em crioulo.

O Francisco teve algum mérito nisso?

Não, não, não. Antes de mim já se falava crioulo. É história. Se hoje é reconhecido que eu fui o primeiro, eu agradeço e fica para a história.

Qual o ponto de situação actual da poesia na Guiné? Há muita gente a fazer poesia?

Está a crescer, a nova geração está a fazer, está a escrever. Tem o campo livre para o fazer e isso é bom, que haja todos os dias a publicação. Só que temos um problema de editoras, se houvesse mais editoras ou mais incentivos por parte da cultura, se houvesse meios, haveria mais livros. É difícil serem publicados na Guiné e fora. Na Guiné temos duas ou três editoras, mas é preciso ter condições económicas.
O acesso à educação influencia o interesse pela poesia, por exemplo?

Afecta o desenvolvimento. Se afecta o desenvolvimento, afecta a poesia, afecta a literatura. Quanto menos pessoas souberem ler, dificulta toda uma caminhada. O português [António] Aleixo não sabia ler, mas era poeta, o Bocage, entre tantos outros. Nós também temos poetas que não sabem ler. Afecta o interesse dos jovens, ficam mais fechados.

A sua poesia é, muitas vezes, de índole política, de luta, de liberdade. Continua a fazer sentido fazer poesia a partir desses conceitos, hoje em dia?

Sim, a liberdade tem de ser gira, temos de lutar pela liberdade sempre, ontem, hoje e amanhã. A liberdade é uma coisa que não é estática, quanto mais houver o reforço da democracia, mais liberdade temos e o campo de acção da liberdade não pode parar, tem de ser sempre alargado. E a poesia acompanha, a poesia agradece, a poesia fica mais bonita se houver mais democracia, mais liberdade e a intervenção deixa de ser um tabu, uma coisa rígida. O povo norueguês, é o primeiro no desenvolvimento, tem poetas que pode não ser de intervenção, mas de crítica social deve haver.

Mas continua a ser necessário fazer poesia de intervenção na Guiné?

É importante fazer a poesia de intervenção no sentido de chamar a atenção, nos comportamentos dos políticos, comportamento social, comportamento entre os velhos, menos velhos, jovens, crianças.

E a mensagem passa?

Tem passado. Não é na leitura, na literatura, no papel, mas na música tem passado. Os jovens cantam rap que critica a sociedade, as miúdas e os rapazes criticam o mal e falam do bem.

Nos seus textos fala também da natureza e da beleza da Guiné…

Ah, a Guiné-Bissau é bonita, é uma miúda bonita, uma mulher. A Guiné, com a sua configuração entre o continente e a parte insular, tem coisas a que você não pode ficar estranho, tem de acompanhar a vista, o cheiro, o aroma, o tacto.

Isso passa através da poesia?

Passa. Então não? A Guiné é bonita. Nunca, enquanto for vivo, nunca deixarei de cantar, descobrir, divulgar a Guiné. A nossa Guiné é linda.

A poesia de intervenção e a poesia da natureza complementam-se?

Lógico, a intervenção, quando é divulgada, deixa de ser nossa, passa a ser das pessoas. Intervenção é de intervir, não de luta, mas de intervir, de mostrar os sentimentos e a vivência que tem sido feita. André Vinagre – Macau in “Ponto Final”

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