I
Duvidar
de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C) é sempre necessário, ainda que seja, para mais
tarde, concordar com ele. Essa frase ouvi em 1994 do professor Massaud Moisés
(1928-2018), quando, ao lhe fazer um relatório verbal de minhas pesquisas nos
arquivos de Portugal sobre a vida e a obra de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810),
mostrei-lhe a fotocópia de um documento que consta do Arquivo Histórico
Ultramarino, de Lisboa, que provava que o lisboeta Alexandre Roberto
Mascarenhas morrera em 1793, no mesmo ano do casamento de sua filha com o poeta.
Portanto,
ao casar com Juliana de Sousa Mascarenhas, uma jovem analfabeta de 19 anos de
idade, Gonzaga não teria tido a oportunidade de ajudar o sogro a aumentar sua
fortuna, como afiançara o professor e filólogo português M. Rodrigues Lapa
(1897-1989), para quem o poeta casara “com a herdeira da casa mais opulenta de
Moçambique em negócios de escravatura” e ainda consagrara “as horas vagas ao
comércio de escravos”.
Morto
aos 42 anos de idade, Mascarenhas, que era escrivão do juízo na provedoria-mor
da fazenda de defuntos e ausentes e subordinado do promotor Gonzaga, nunca se envolveria
no comércio negreiro. Era proprietário de uma casa à Rua do Largo da Saúde, na
ilha de Moçambique, onde Gonzaga passou a morar com a mulher, e de uma machamba
(plantação de mandioca) na Cabaceira Grande, no continente fronteiro à ilha,
que obtivera pelo casamento com Ana Maria de Sousa.
O
pequeno número de escravos que tinha seria para o trabalho no luane (casa senhorial e seus anexos),
mas não para o tráfico, pois os grandes traficantes sempre aparecem na
documentação da época como proprietários de centenas. Ou seja, o casamento pode
ter representado um desafogo nas finanças do degredado, mas não foi suficiente
para torná-lo um potentado.
Mas,
claro, colocar em xeque o que o doutor Rodrigues Lapa, professor catedrático da
Universidade de Lisboa, deixara escrito era uma responsabilidade muito grande.
E o apoio do professor doutor Massaud foi decisivo para que o meu trabalho de
doutoramento em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de
São Paulo (USP) alcançasse êxito. Lembro isto porque, há pouco tempo, dia 11 de
abril, deu-se o falecimento do meu antigo orientador, vítima de acidente
vascular cerebral (AVC), dois dias depois de completar 90 anos de idade.
II
A
minha atividade acadêmica sob a orientação segura, mas desta vez informal, do
professor Massaud Moisés continuou, quando, em 1998, decidi pedir à Fundação de
Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp) uma bolsa de pós-doutoramento
para pesquisar a vida e a obra do poeta Manuel Maria de Barbosa du Bocage
(1765-1805), de que resultaria a biografia Bocage:
o Perfil Perdido, publicada em 2003 pela Editorial Caminho, de Lisboa.
À
época, seu bom senso e equilíbrio foram fundamentais para a concessão da bolsa,
pois, contrariado com uma colocação despropositada de um parecerista, redigi
uma resposta contundente que, fatalmente, o teria levado a recomendar que meu
pedido fosse denegado. Por sugestão do
professor Massaud, optei por uma resposta polida e contemporizadora. Mais: por
indicação dele, contei em Portugal com a supervisão do professor Fernando
Cristóvão, professor catedrático de Filologia Românica da Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, que me faria boas indicações e sugestões de leitura
e pesquisa, além de, mais tarde, escrever o prefácio do livro.
III
Um
dos mais eminentes professores e pesquisadores nas áreas de teoria literária,
de literatura portuguesa e de literatura brasileira, igualmente reconhecido em
Portugal e demais países de língua portuguesa, Massaud Moisés teve uma existência
quase exclusivamente consagrada às Letras. A rigor, sua vida acadêmica teve
início em março de 1952, quando começou sua atividade docente nas Faculdades de
Filosofia, Ciências e Letras da USP e da Universidade Mackenzie. A par de sua
atividade em sala de aula, foi autor de ensaios didáticos fundamentais para
quem pretende se aprofundar no estudo das letras lusófonas.
É
de se lembrar que os estudos de Literatura Portuguesa foram introduzidos na USP
a partir do final da década de 1930 pelas mãos do professor português Fidelino
de Figueiredo (1888-1967), que foi sucedido pelo professor Antônio Soares Amora
(1917-1999), que havia sido seu discípulo. O trabalho de pesquisa de ambos, de
certo modo, seria continuado por Massaud Moisés, discípulo de Figueiredo e
Amora.
Desde
então, o professor levantou com seus numerosos alunos as questões mais
candentes da problemática literária e passou suas reflexões para mais de 20
livros, quase todos na área didática. Num país caracterizado por seus altos
índices de analfabetismo funcional, foi um autor bafejado por sucessivas
edições. Só A Literatura Portuguesa
Através dos Textos, lançado em 1968 pela Editora Cultrix, de São Paulo, já
havia chegado a sua 33ª edição em 2012, adotado, praticamente de maneira
unânime, por todos os professores de Literatura Portuguesa do ensino médio e
universitário, muitos deles ex-alunos do mestre. Nas mesmas pegadas, A Literatura Brasileira Através dos Textos,
de 1971, da mesma editora, alcançou a sua 29ª edição em 2012.
Outro
campeão de vendas, o livro A Criação
Literária, lançado em 1967 pela Editora Melhoramentos, de São Paulo, foi
depois dividido em dois volumes dedicados à prosa e um à poesia e chegou a 20ª
edição em 2006 pela Cultrix, tendo sido novamente unificado em 2012, quando
alcançou a segunda edição nesse formato. Já o Dicionário de Termos Literários, obra que este articulista consulta
sempre que tem a oportunidade de escrever recensão de algum livro de poesia,
publicada pela primeira vez em 1974 pela Cultrix, alcançou a sua 16ª edição em
2013.
Massaud
Moisés foi ainda autor de outros livros nas áreas de literatura portuguesa e
brasileira e de teoria literária, como A
Literatura Portuguesa (1960); Literatura: Mundo e Forma (1982); a monumental
História de Literatura Brasileira, em
cinco volumes, lançada entre 1983 e 1989 e reeditada em 2001, em que se
encontram capítulos sobre o Romantismo, o Realismo, o Simbolismo e o Modernismo;
o Guia Prático de Análise Literária
(1969), obra fundamental para quem pretende se lançar ao trabalho de análise de
um texto literário, que, a partir das quarta edição, passou a se chamar apenas Análise Literária; e o Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira
(1967), que chegou à 7ª edição em 2008, obra coletiva organizada ao lado do
poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta José Paulo Paes (1926-1998).
Sem
esquecer de O Conto Português (1975),
Fernando Pessoa: o Espelho e a Esfinge (1988),
O Guardador de Rebanhos e Outras Poemas
de Fernando Pessoa (1988), As
Estéticas Literárias em Portugal (1997-2000), em dois volumes, abrangendo
do século XIV ao XIX, e Machado de Assis:
Ficção e Utopia (2001), entre outros.
IV
A
carreira acadêmica de Massaud Moisés seguiu até 1995, quando ele se aposentou e
deixou de dar aulas na graduação no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Mas isso
não significou o fim de sua dedicação à atividade docente. Pelo contrário.
Continuou a oferecer seus conhecimentos aos alunos de pós-graduação e
aprofundou-se ainda mais em seus estudos literários, de que resultaram os
livros Estéticas Literárias em Portugal,
para o qual fez pesquisas na Biblioteca Nacional de Lisboa em 1999, e Machado de Assis: Ficção e Utopia. Foi ainda
professor-visitante nas universidades de Wisconsin, Indiana, Vanderbilt, Texas
e Califórnia, nos Estados Unidos, e Santigo de Compostela, na Espanha.
Suas
aulas eram também lições de Pedagogia, pois sabia como prender a atenção dos
alunos, a ponto de não se ouvir na classe nenhum som, exceto a sua voz, que se
tornava ainda mais canora quando recitava, por exemplo, os versos do poema
“Hora Absurda”, de Fernando Pessoa (1888-1935): O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas... / Brandas, as
brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso... / E o teu sorriso no teu silêncio é
as escadas e as andas / Com que me finjo
mais alto e ao pé de qualquer paraíso...
Era
igualmente um orador de méritos indiscutíveis, como mostrou aquando de minha
defesa de tese de doutoramento, em 1997, ao lado de outro orador
irrepreensível, o diplomata, poeta, ensaísta, memorialista e historiador
Alberto da Costa e Silva, presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL) em
2002-2003 e embaixador do Brasil em Portugal de 1989 a 1992, que fez parte da
banca juntamente com os professores Fábio Lucas, Francisco Maciel Silveira e
Lênia Márcia de Medeiros Mongelli. A tese de doutorado sairia em livro em 1999
pela Editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, com o título Gonzaga, um Poeta do Iluminismo,
sugestão do professor Massaud, prontamente aceita, e prefácio de Costa e Silva.
V
Nascido
em São Paulo, oriundo de uma família de imigrantes libaneses, Massaud (Massô, na pronúncia
francesa) dizia-se agnóstico, mas, embora não acreditasse na vida eterna,
carregava uma alma cristã, como sabem quantos com ele conviveram. Generoso,
quando percebeu que o fim de sua trajetória se aproximava, doou sua vasta
biblioteca para a Casa de Portugal, de São Paulo, que agora a disponibiliza ao
público. Antes, quando a biblioteca começou a conquistar espaços de sua casa,
adquiriu o apartamento acima do seu e lá instalou seus livros e seu escritório,
sem deixar de mandar colocar uma escada interna helicoidal para ligá-los.
Casado
em segundas núpcias com Antonieta, foi pai de Ana Cândida, Beatriz, Cláudia,
Maurício e Rodrigo, para os quais dedicou alguns de seus livros. Membro
da Academia Paulista de Letras (APL), nunca se empenhou em conseguir uma vaga
na ABL, que, por motivações políticas, já abriu suas portas para figuras bem
menos representativas. Obviamente, quem perdeu foi a ABL porque ninguém
reconstituiu a História da Literatura Brasileira com tamanha profundidade como Massaud
Moisés. O professor foi ainda coordenador literário no Brasil da revista Colóquio/Letras, de Lisboa. E, a 26 de
novembro de 1987, recebeu a comenda da Ordem do Infante D. Henrique do governo
de Portugal. Adelto Gonçalves - Brasil
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Adelto Gonçalves
é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
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