I
O
professor Massaud Moisés (1928-2018), em Dicionário
de Termos Literários (São Paulo, Cultrix, 2004), diz que “a poesia
corresponderia à expressão do “eu” por intermédio de metáforas, ou vocábulos
polivalentes: o “eu” do poeta, matriz do seu comportamento como artista da
palavra, volta-se para si próprio, adota não só a categoria “sujeito” que lhe é
inerente, mas também a de “objeto; portanto, introverte-se, auto-analisa-se,
faz-se espetáculo e espectador ao mesmo tempo, como se perante um espelho”
(pag. 360).
Pena
que o professor, que foi orientador deste articulista em seu doutoramento em
Letras, tenha resolvido subir para o andar de cima, antes de ter tido acesso a
este Insónia Lúbrica - resposta a uma
noite inacabada (Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos, 2017), terceiro
livro de poesia da poeta portuguesa Ana Margarida Chora, em que a autora se
expressa não apenas através de um “eu” feminino, mas também de um “tu”
masculino. De fato, os poemas deste livro ajustam-se à medida ao que o crítico
afirma em sua defesa teórica do que significa a poesia, ao observar que o “eu”
vai ao encontro de si próprio ao buscar o “não-eu”, projetando-se para fora, fazendo
uma “projeção”, inclusive no sentido freudiano.
No
caso de Ana Margarida Chora, porém, como bem constatou a autora do prefácio, a professora
Natália Maria Lopes Nunes, o sujeito poético constitui “uma figura ancestral
que cruza todas as épocas, na busca de um interlocutor distante e, por vezes,
ausente”. Diz mais: “(...) através do imaginário do “eu”, reflete-se um “tu”, a
dualidade do ser, mulher/homem, feminino/masculino, procurando no amor uma
harmonia cósmica que nem sempre é atingida através da fusão e da intimidade,
criando, por vezes, uma certa ambiguidade de sentido”.
É
o que se pode verificar no poema “O sigilo” neste trecho: (...) Registo a tua imagem até a exaustação / extinguindo o que resta dela em ausência...
/ Mil vezes a tua boca beijei em pensamento / e vezes mil acariciei a tua pele de seda... / Sinto
teu corpo em uníssono nas minhas áreas desérticas / em cada
espasmo incontrolável de que a Lua se ocupa. / Preenches o meu corpo fendido entre dois tempos, / perfazes as metades incumpridas de ambos os
mundos. (...).
II
Se
ficássemos por aqui, só este mérito já seria importante para se destacar o
aparecimento deste livro de poemas. Mas não. Este é um livro incomum, pois
transborda também em erudição, sensualidade e conhecimento, não fosse a sua
autora uma estudiosa com vasto saber no campo da História, começando pela Idade
Média, passando pela Belle Époque,
até desaguar no Oriente, notadamente no se que refere às artes, em especial a
música e a dança, sem deixar de registrar ecos das artes visuais e do cinema.
Para
completar, traz ainda um exaustivo e percuciente prefácio escrito por Natália
Maria Lopes Nunes, que é fundamental para que a fruição do livro seja intensa.
Natália Nunes é doutora (2008) na área de Literatura Portuguesa Medieval pela
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) na Universidade Nova de Lisboa e
mestre (1999) na área de Literatura Comparada Portuguesa e Francesa da Época
Medieval pela mesma instituição, com pós-doutoramento realizado no âmbito de “A
Literatura Profana e Mística no Gharb
al-Andalus”,
Especialista
na literatura arturiana, Ana Margarida Chora utiliza figuras que constam desse conjunto
de textos, oriundos da área linguística francesa, que, a partir dos finais do
século XIII, apareceram na Península Ibérica, envolvendo o rei Artur e os
cavaleiros que se reuniam em torno da Távola Redonda. Artur, como se sabe, é um
lendário líder britânico que, de acordo com as histórias medievais e romances
de cavalaria, liderou a defesa da Grã-Bretanha contra os invasores saxões ao
final do século V e início do século VI.
Entre
essas figuras, estão Blonde Esmerée, uma fada moura personagem de Le Bel Inconnu, romance em versos do
século XIII em francês antigo, Ninianne, personagem de Ninianne e Merlin, bem como a fada de O cavaleiro e a fada, inspirado nos Lais da Bretanha. Eis um trecho de “Le Bel Inconnu”: (...) Blonde Esmerée era uma fada/ Em seu castelo aprisionada/ Que Guinglain ia
libertar/ Para a palavra a Artur honrar. / Rainha da Gasta Cidade, / Senhora de
grande beldade, / Transformada numa
serpente / Regressava em forma de
gente / A quem o feitiço quebrasse
/ E
por amor a encantasse (...).
Não
se pode deixar também de citar a influência que a autora passa de sua
investigação na área do Orientalismo, com referências explícitas à cultura
árabe, levando o leitor a uma viagem sem sair do lugar, apenas tocado pelas
imagens. Veja-se, por exemplo, estes versos que fazem parte do poema
“Oriente-Ocidente”, em que há referência a Hathor, deusa da religião do Egito
Antigo que personifica os princípios do amor, beleza, música, maternidade e
alegria, e ao Abu Simbel, dois grandes templos escavados na rocha e que foram
construídos a mando do faraó Ramsés II:
(...) A minha vida
dividiu-se num hotel de Copenhaga / antes de perder os brincos de cobre num
fiorde da Noruega... / Pelo caminho tornei-me Hathor em Abu Simbel, / fiz
amizades no Pêre Lachaise, onde há mais histórias do que em Richelieu-Louvois,
/ e aventurei-me na montanha de Whistler. / Quis rever os momentos e as
fotografias tinham ficado num táxi em Praga.../ Esperava-me o Ocidente de
Walter Scott, / os cavaleiros, os mitos da Gália e das Bretanhas... Na minha fé
reside o deserto da Ilha Sagrada / aonde os Evangelhos me conduziram. (...).
III
Ana
Margarida Chora sabe como usar as palavras e seus versos trazem sinestesias e
metáforas de muita beleza, obrigando o leitor a refletir para perceber
observações carregadas de intertextualidade e metalinguagem, o que exige
leitores de apurado gosto e refinado conhecimento para entender a sua linguagem
erudita. É o que se vê na última frase do poema “5-HTP”: Leio Dostoievski. Talvez as noites se tornem menos brancas.
Sabendo
disso, a própria autora escreveu um texto de apresentação (“Em modo preambular:
as expressões poéticas da significação”) em que afirma que não há palavras para
fazer poesia. “A poesia faz-se com a magia que se põe em cada palavra. Fazer
poesia não é ter propósito nos termos certos. É encontrar a certeza nos termos
despropositados”, acrescenta.
A
autora conta ainda que os 40 poemas de Insónia
Lúbrica foram escritos durante 40 dias e 40 noites, numa procura incessante
de depuração de imagens sob a forma
verbal. “Há um registo metafórico e, dentro deste, um registo ficcional,
sustentáculo do complexo conceptual dos poemas, que atravessa o conjunto e o
instala no plano da efabulação descritiva”, observa. E acrescenta: “Contam-se
histórias. Narram-se factos e afectos dentro das fronteiras da linguagem que,
por seu turno, cria uma insinuação ilusória no discurso expresso”. Como se vê,
este não é só um livro de uma poeta, mas de uma refinada crítica de poesia.
IV
Ana
Margarida Chora nasceu e vive em Setúbal. É docente, investigadora, escritora e
artista plástica. Licenciada em Estudos Portugueses, mestre e doutora em
Literaturas Românicas, é investigadora do
grupo de Estudos Interdisciplinares sobre o Imaginário (Eisi)/Instituto de
Estudos de Literatura e Tradição (Ielt) da Universidade Nova de Lisboa), do Grupo de Investigación - Cultura, Literatura
y Traducción Iber-Artúrica - Universidad de Valladolid (Clytiar) e do Centro
de Estudos Bocageanos (CEB), de Setúbal, dirigido pelo pesquisador Daniel Pires.
Como
investigadora, tem apresentado dezenas de trabalhos em congressos e encontros
científicos nacionais e internacionais e publicado diversos artigos científicos
sobre variados temas literários comparativos. Publicou os ensaios “Lancelot -
do mito feérico ao herói redentor” (2004) e “Bocage e o Oriente. Para uma visão
orientalista da poesia bocageana” (2016) e, em co-autoria com Daniel Pires, os
livros As Chinelas de Abu-Casem
(2016) e Bocage e o Sortilégio do Amor
(2016). Publicou as obras poéticas Janela
sobre o Tempo (2010) e Diadema
(2014). É igualmente uma artista plástica de grandes méritos, de que o desenho
da capa de Insónia Lúbrica, de sua autoria,
é um bom exemplo. Na parte artística, assina-se apenas como Ana Chora. Adelto Gonçalves - Brasil
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Insónia Lúbrica: resposta a uma noite inacabada, de Ana
Margarida Chora. Setúbal, Portugal: Centro de Estudos Bocageanos, 88 páginas, 10
euros, 2017. E-mail da editora: geral@cebocageanos.net
Site: https://centro-de-estudos-bocageanos7.webnode.pt
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Adelto Gonçalves
é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio
Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em Terras
d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015)
e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora,
1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015),
entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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