Arqueólogos
chegaram primeiro que os caçadores de tesouros a um navio do século XVI, que
será um dos mais importantes achados a nível mundial, pelas condições em que se
encontra
Uma equipa de investigadores
descobriu na costa de Esposende a localização exacta de um navio, provavelmente
ibérico, do século XVI, que, desde 2014, vem fascinando a comunidade científica
internacional. O estudo das centenas de peças encontradas na praia de Belinho
ao longo destes anos, e que incluem objectos da carga e madeiras da embarcação,
já deixava antever que se estava perante um achado muito importante para a
arqueologia naval, mas a equipa envolvida acabou por ser surpreendida com muito
mais do que isso. No fundo do mar, não muito longe da língua da maré, jaz um
navio “praticamente intocado” de cerca de 30 metros de comprimento, protegido
por uma camada de sedimentos.
Os banhistas que, por estes
dias, se deleitam ao sol e arriscam um mergulho nas águas frias da praia de
Belinho não imaginam que, há cerca de 500 anos, o mar atraiçoou um navio,
afundando-o a poucos metros deles. Desconhece-se de onde vinha ou para onde ia,
sabe-se algo, mas ainda pouco, sobre a carga que transportava e nada sobre o que
aconteceu à sua tripulação, mas sabem os arqueólogos que, junto às rochas, na
zona de rebentação das ondas, jaz o que resta desse naufrágio, situado, para
já, num período entre 1520 e 1580, e do qual foram já recolhidas centenas de
peças.
E o que ali está, visto, com
os seus próprios olhos, pelo arqueólogo Alexandre Monteiro a 24 de Abril deste
ano, num curto mergulho de uma hora e um quarto, e de novo esta semana que
passou, não é pouco. “Estamos perante o primeiro naufrágio quinhentista em
águas portuguesas a ser encontrado praticamente intocado desde a sua perda”,
assinala, num artigo na revista Al-Madan de Julho, o quarteto que vem liderando
a investigação, e que inclui Ana Almeida, arqueóloga da Câmara de Esposende,
Ivone Magalhães, historiadora, da mesma instituição, e o arqueólogo Filipe
Castro, que lidera o ShipLab da Universidade do Texas A&M. “A ser ibérico,
tratar-se-á de um dos mais completos sítios desta tipologia e cronologia a ser
encontrado a nível mundial”, alertam.
No mês passado, durante a
cerimónia que assinalou o centenário do afundamento, na I Grande Guerra, do
Roberto Ivens — um navio da armada portuguesa cuja localização descobriu, com
Paulo Costa —, Alexandre Monteiro bem dizia ao primeiro-ministro que "o
grande museu dos Descobrimentos portugueses e da Expansão — e que ainda não
está feito — está todo no fundo do mar". Envolvido em vários projectos de
arqueologia subaquática, este investigador do Instituto de Arqueologia e
Paleociências da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa identificou parte do costado deste navio em quatro conjuntos de
madeiras ainda articuladas entre si, viu quatro canhões, em ferro e em bronze,
uma âncora, fragmentos de placas de chumbo que serviriam para protecção do
casco e mais pratos em estanho semelhantes aos que vêm sendo recolhidos, na
praia, desde 2014.
Esta semana, Alexandre
Monteiro e Filipe Castro voltaram ao local, na companhia de John Sexton, um
experiente instrutor de mergulho e fotógrafo subaquático a viver há alguns anos
em Portugal, que voltou a captar imagens do sítio, bastante mais coberto, desta
vez, por areia. Monteiro não tem dúvidas de que o que testemunhou em Abril,
altura em que parte do madeirame estava bem à vista, foi uma excepção, o que
explica, na sua perspectiva, a preservação deste navio naufragado a salvo da
pilhagem mais ou menos organizada. “Se não estivesse habitualmente coberto, o
sítio já teria sido saqueado”, afirma. Em todo o caso, com boa visibilidade,
puderam fazer algumas medições e perceber que a operação de levantamento dos
canhões vai ser complexa.
O grupo de investigadores, que
envolve ainda uma equipa com submarinos autónomos do Laboratório de Sistemas e
Tecnologia Subaquática (LSTS) da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto,
chegou a programar para estes dias uma operação para retirar aquelas peças, mas
o mar, que tem ditado o ritmo das descobertas em Belinho, fez-se difícil.
Filipe Castro regressou assim aos EUA sem ver, fora de água, as colubrinas que,
acredita, podem conter inscrições que ajudem a determinar o fabricante e o
momento de fabrico, e a encurtar, dessa forma, a datação possível para este
naufrágio do qual, para já, não encontraram registos.
“Este navio saiu de algum
porto, e não chegou ao destino. Tem de haver, algures, um registo dessa
viagem”, nota Ana Almeida. Alexandre Monteiro corrobora. Afinal, na
investigação ao naufrágio do navio Nuestra Señora del Rosario (Tróia, Grândola,
1598) encontrou 600 páginas de documentação, oficial e até pessoal, em arquivos
portugueses e espanhóis. E ninguém acredita que a perda de um navio que, pelas
dimensões de algum do seu madeirame, teria cerca de 30 metros de eslora, da
proa à popa, passasse despercebida.
Dentro deste período há o
registo do afundamento do Nossa Senhora da Rosa, perdido em 1577 “através de
Esposende”, quando carregava vinho e breu das Canárias para o porto de Vila do
Conde, situado poucas milhas a sul, mas os investigadores que se debruçam sobre
o naufrágio de Belinho consideram que não será essa a embarcação que
encontraram, pois este “tem um porte bem maior do que a maioria dos navios que
percorriam as rotas das Canárias, Madeira e Açores no século XVI”.
A equipa espera que, sob a
camada de sedimentos, que Filipe Castro gostaria de limpar, com recurso a uma
bomba de sucção, se houvesse recursos para isso, o navio de Belinho tenha muito
mais a contar. Ao contrário do que acontecia em naufrágios perto da praia e de
povoações, em que nem as madeiras resistiam aos actos de pilhagem — o que
explica o uso de partes dos cascos nas casas mais antigas de Angra do Heroísmo,
assinala Alexandre Monteiro —, esta embarcação parece ter resistido à cupidez
dos seus, e dos nossos, contemporâneos. Que, podendo, nunca deixariam no mar
colubrinas em bronze semelhantes à que foi encontrada no navio português Bom
Jesus, descoberto em Oranjemund, na costa da Namíbia, e que têm mercado no
sector das antiguidades.
“Se encontrássemos objectos
pessoais, seria muito importante” para a investigação, assume o director do
ShipLab, que desde 2015, através do projecto europeu ForSeaDiscovery, do qual
faz parte com Alexandre Monteiro, participa no estudo dos achados arrojados à
praia. O material encontrado já lhes dá água pela barba e abriu portas a vários
projectos de investigação, como o de Adolfo Martins, que está a fazer
doutoramento na Universidade de Gales Trinity Saint David sobre a morfologia
das 80 peças de madeira recolhidas. Os seus anéis, analisados com recurso à
dendrocronologia, permitiram excluir a hipótese de provirem de árvores do Norte
da Europa, e as técnicas de construção naval são semelhantes às usadas por cá
naquele período, mas é preciso mais informação para se poder confirmar a origem
deste navio.
Sobre este naufrágio há
imensas perguntas ainda sem resposta — e muitas perguntas por fazer —, mas,
neste momento, uma das dificuldades é garantir uma equipa baseada no Norte do
país, que consiga continuar, de perto e com maior regularidade, este projecto
de investigação arqueológica que seria impossível sem o empenho da autarquia.
Para lá dos elementos do município, e dos achadores, que vivem em Esposende,
todos os que, até agora, participaram na recolha e estudo destes achados estão
envolvidos em múltiplos projectos, em várias partes do mundo, e não é fácil
mobilizá-los para Belinho, para situações de emergência ou, por exemplo, para
uma campanha de mergulho, caso o mar o permita.
O mar tem sido o marca-passo
desta investigação. Foi ele que denunciou o naufrágio, atirando despojos para a
praia em 2014, mas esta semana não deixou que lhe levassem os canhões que
guarda ciosamente, há cinco séculos. Aliás, uma tentativa de mergulho de
Alexandre Monteiro ia correndo muito mal, no domingo passado. “O naufrágio de
Belinho esteve quase a fazer a sua última vítima” dizia, já meio a brincar,
passado este episódio em que se viu atirado contra as pedras, e se teve de
livrar do cinto de lastro e das botijas de ar, antes de ser salvo por João Sá.
O escultor que alertara, em 2014, as autoridades para a importância destes
achados, que encontrara, com familiares, na praia, voltou a ser fulcral para
esta história. Ou não fosse ela um exemplo de cooperação entre cidadãos e a
comunidade científica. Abel Coentrão –
Portugal in "Público"
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