I
Mais
de uma vez se chamou a atenção do público-leitor para uma curiosa contradição
que parece ter-se instalado de maneira sólida e obstinada no universo literário
brasileiro, a qual não nos custa repetir: enquanto a recente produção literária
nacional revela-se impressionantemente criativa, ela recebe, em contrapartida,
um tratamento incompatível com sua qualidade estética, principalmente nos meios
de comunicação e nos canais de divulgação artística, isto quando não são
relegadas ao completo ostracismo, resultado de um silêncio ao mesmo tempo
pérfido e cruel. Tal constatação procura, antes de mais nada, colocar por terra
a propalada tese de que a literatura nacional estaria vivendo uma grave e
crônica crise criativa, opinião assentada antes sobre um imponderado exercício
de impressionismo crítico, do que sobre uma análise imparcial da atual
realidade estética de nosso país.
Exemplo
claro, entre outros, de uma literatura em muitos aspectos reveladora – e,
sintomaticamente, pouco lembrada pela crítica – é a obra literária do
jornalista e escritor Adelto Gonçalves, que com o seu premiado romance Os Vira-latas da Madrugada (1981) está
por merecer um lugar de destaque dentro da mais recente produção literária
nacional. Natural da litorânea cidade de Santos e tendo dedicado grande parte
de sua atividade profissional ao jornalismo, Adelto Gonçalves é um típico
exemplo do descaso que a crítica literária contemporânea tem devotado aos mais
novos escritores.
Tal
descaso, contudo, revela-se de todo injustificado: manipulando basicamente duas
categorias universais distintas – o homem e o meio –, Adelto Gonçalves procura,
em seu romance, retratar o embate travado entre ser e espaço, entre o físico e
o humano, embate este marcado por uma forte carga emotiva e realista. Neste
sentido, não nos parece demasiado exagero afirmar que o autor se coloca, embora
em menor grau, entre alguns dos continuadores da tradição literária que
reconhece no espaço um componente
privilegiado do romance, elemento no qual o ser alcançaria sua plena realização
ou a sua mais absoluta decadência.
Assim,
poder-se-ia inserir sua obra, feitas as devidas ressalvas, na categoria do que
a teoria literária convencionou chamar de “romance de espaço”1, em que talvez
pudéssemos introduzir nomes tão relevantes como os de José Eustasio Rivera (La Vorágine), Euclides da Cunha (Os Sertões) e Rómulo Gallegos (Doña Bárbara), para ficarmos apenas nos
latino-americanos. Logicamente, semelhante observação não busca dar ao romance
de Adelto Gonçalves o mesmo grau de importância desses que, indubitavelmente,
podem ser considerados verdadeiros clássicos da Literatura Latino-Americana,
mas apenas revelá-lo como mais um dos originais herdeiros de tão fecunda
tradição.
Deste
modo, se nas obras aqui citadas o que se verifica, acima de tudo e num primeiro
instante, é a disputa que acirradamente trava o homem e a floresta (Rivera), o
homem e o sertão (Cunha) e o homem e a planície (Gallegos), em Os Vira-latas da Madrugada o mesmo embate
pode ser percebido entre o homem e o cais do porto, um espaço, como todos os
demais aqui aludidos, marcado por características peculiares, por normas e leis
próprias, por uma realidade singular.
II
O
romance de Adelto Gonçalves desenvolve-se em Paquetá, bairro da zona portuária
de Santos, onde aliás o autor viveu a maior parte de sua vida. É um romance de
muitas personagens, embora com pouco destaque para elas, já que, como fora
aludido, é o componente espacial que ganha maior relevo no decorrer dos
acontecimentos; a existência trágica, o sofrimento cotidiano, a luta homérica
contra um meio físico subversivo parecem ser o elo inexorável que liga
figurantes e personagens a um destino comum. No rastro desses elementos, o
autor procura dar aos acontecimentos um caráter documental, seja por vários de
seus episódios estarem assentados em fatos do cotidiano, trazidos à tona por
meio das reminiscências do próprio autor (“eu
era muito pequeno, quando algumas destas histórias aconteceram”)2, seja
pela tentativa confessada do autor em colocar em seu romance personagens que um
dia existiram de fato. Não obstante o romance tender ao documental, Adelto
Gonçalves não hesita em rechaçar qualquer intenção em fazê-lo histórico (“não pretende este livro uma imagem de
histórico”, p.31).
Analisando
o cenário em que os episódios se desenrolam, percebe-se que, com uma habilidade
inquestionável, Adelto Gonçalves desloca a narrativa de cenário tradicional,
caracterizada pela dicotomia cidade/campo, para uma realidade totalmente nova e
diferente – o cais do porto. Sem ser campo, mas também sem chegar a ser
completamente cidade, o cais do porto parece situar-se numa zona limítrofe, num
indefinível meio-termo, universo norteado por uma espécie curiosa de natural
dicotomia: contém, ao mesmo tempo – e numa mistura que apenas um espaço com
características tão originais poderia conter –, particularidades tanto do campo
quanto da cidade, o que nos permite reformular nossa afirmação anterior: para
além de ser uma região dicotômica, o cais do porto é, sobretudo, um espaço híbrido.
Por
ser híbrido, ele também agrupa em si o arcaico e o moderno, trazendo consigo
todas as infinitas contradições que esta mistura pode acarretar: excessos,
desvios e, principalmente, injustiças. Caberia, a esta altura, perguntar em que
o meio físico do cais, stricto sensu,
se difere dos demais. Em que, realmente, ele é peculiar? Uma simples análise da
descrição que o autor faz do local parece-nos suficiente para que estas
peculiaridades aflorem em definitivo:
“mais adiante, viu novamente
os armazéns das docas, uma locomotiva passando rápida, solitária, os guindastes
que se sobressaíam além do teto dos armazéns. De vez em quando, um caminhão
passava, em meio aos buracos, espirrando lama das poças fétidas – um cheiro de
mistério como o de todos os portos do mundo. E perdeu-se na zona do Golfo: à
esquerda, um sem-fim de armazéns amarelos, sujos, descaiados – cargas em
fileiras nas ruas, cobertas por encerados, um policial adiante –, à direita,
uma longa fila de botequins – mulheres desenxabidas sentadas às portas, olhando
a chuva batendo nas pedras das ruas, nas latas vazias”
(p. 21).
III
Guindastes
e botequins, lama e prostitutas, música e locomotiva: tudo parece contribuir de
maneira inusitada para a composição de um cenário francamente grotesco; a
conformar sua paisagem, há ainda a presença sugestiva de morcegos e ratos, da
densa lama a se espalhar continuadamente por todo o cais, da atmosfera
decadente do local, além de sua aparentemente natural subversão.3
No
limite, contudo, é o elemento humano que faz do cais o que ele realmente é,
fisicamente ou não: um mundo à parte, marcado pela violência e pela injustiça,
pela extrema individualidade e absurda inconsequência, pela trágica fatalidade
a se refletir nos olhos dos homens e pela contundente tristeza a dissimular-se
no sorriso acanhado das mulheres:
“mas igual a este beira-cais,
como dizem os velhos marinheiros, não existe lugar em outra parte do mundo.
Aqui é onde as mulheres das ruas já não brigam mais por causa da traição do
amante, mas porque a outra lhe roubou o freguês; onde os moleques, vira-latas
da madrugada, percorrem a noite inteira em busca de um otário, roubam os
bêbados caídos nas calçados, dormem com os pederastas e vivem de pequenos
furtos (...); onde os pretos esfarrapados se deitam nos vãos de porta e dormem
com o cuspe grosso de cachaça escorrendo no canto da boca e sonham com a
família que não tiveram e com a moça loira que anuncia Coca-cola (...); onde as
pessoas têm a cor do rosto amarelada, pálida, os olhos fundos, o cabelo
ensebado, a pele macilenta como a dos jogadores de sinuca” (p.
33).
E
assim chegamos ao outro pólo do embate que – ao lado do espaço romanesco – a
obra de Adelto Gonçalves procura retratar: o humano. Em Os Vira-latas da Madrugada, as cenas como que se desprendem das
páginas do livro para preencher um espaço na mente do leitor: não são cenas
simples, comuns, mas antes passagens dotadas de uma intensa complexidade
existencial, que se esconde por detrás de cada ato realizado ou de cada palavra
proferida.
Uma
questão social se impõe logo de início: Os
Vira-latas da Madrugada são um romance dos marginalizados. Em suas páginas,
prolifera-se todo um universo por meio do qual o autor procura revelar a crua e
violenta realidade do cais, onde bêbados e prostitutas disputam um espaço nos
botequins, onde meninos de rua partem em busca de algum dinheiro fácil, onde
trabalhadores tristes e solitários – embrutecidos pelo ofício duro e
desvalorizado – pervagam sem destino pelas ruas enlameadas. Assim, temos um
quadro de relações sociais completamente subvertidas nesse mundo em que reinam
a malandragem, o poder perverso e a exploração.
Entre
o patético e o selvagem, há a dura realidade – seja ela a realidade da
prostituição, seja ela a realidade do poder. Assim, aos olhos de Sula, a
realidade de uma existência prostituída – mais do que a de um corpo prostituído
– mistura-se melancolicamente com o seu passado ideal, agora, mais do que
nunca, distanciado do presente; e esta é apenas mais uma das muitas mulheres
que cumprem rigorosamente um destino marcado pela humilhação, pela violência e
pela tragédia pessoal. No que diz respeito à realidade do poder, também pode-se
perceber no romance todas as suas perversões, todos os seus desvios, quer se
trate do poder político constituído, do poder policial-repressor ou do poder da
coerção social.
O
que sobra de tudo isso é uma compreensão profundamente pessimista da realidade,
a qual é compartilhada por quase todas as personagens do romance, mas
particularmente por Marambaia.
Também
o leitor é tomado, de certa maneira, pelo clima pessimista que logo se impõe:
acompanhando de perto a narração dos acontecimentos no cais, ele passa,
involuntariamente, a sofrer com as personagens da história, compartilhando de
seus anseios e angústias, de suas tristezas e desgostos, de seus tormentos e
aflições.
As
últimas palavras do autor marcam o encerramento do romance, mas também atam as
duas pontas de um fio narrativo que vinha percorrendo toda a obra. Sua
conclusão revela-se particularmente constrangedora – como o próprio autor
faz-nos perceber, trata-se de uma autêntica confissão, onde se pode facilmente
distinguir a mescla de dor e revolta que a conforma:
“as vozes que me trouxeram até
aqui já não ouço mais. Estão mortas, estão assassinadas. Este irregular relato
é só uma homenagem a essas vozes que se calaram cansadas de testemunhar tanta
ignorância e violência em nome de valores morais que a ambição já desmoralizou
há muito tempo” (p. 163).
Suas
cruéis histórias, por isso, são tão mais cruéis quanto mais reais se tornam com
o tempo. Maurício Silva - Brasil
Notas
1 KAYSER,
Wolfgang. Análise e Interpretação da Obra
Literária. Introdução à Ciência da Literatura. Coimbra, Arménio Amado,
1976.
2 GONÇALVES,
Adelto. Os Vira-latas da Madrugada.
Rio de Janeiro, José Olympio, 1981. Todas as referências a esta obra serão
retiradas desta edição, doravante aparecendo apenas o número da(s) página(s) em
que se encontram.
3 Para uma
definição sucinta do grotesco, consultar: MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo, Cultrix, 1978, e
KAISER, Wolfgang. O Grotesco. São
Paulo, Perspectiva, 1976.
Publicado em Sentidos Secretos – Ensaios de Literatura Brasileira (São Paulo, Editora
Altana, 2005, págs. 137-144) e em Leopoldianum. Revista de Estudos e
Comunicações, Santos, vol. XX, nº 56: 144-149, abr. 1994.
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Os Vira-latas da Madrugada, de Adelto Gonçalves, 2ª edição, com prefácio de
Marcos Faerman, apresentação de Ademir Demarchi, posfácio de Maria Angélica
Guimarães Lopes e ilustrações e capa de Enio Squeff. Taubaté-SP: Associação
Cultural Letra Selvagem, 216 págs., 2015, R$
35,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br Site: www.letraselvagem.com.br
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Maurício Silva possui doutorado e
pós-doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas pela Universidade de São Paulo;
é professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação, na Universidade
Nove de Julho (São Paulo); atuou como pesquisador da Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro de 2012 a 2013 e, atualmente, é pesquisador residente da Biblioteca
Brasiliana Guita e José Mindlin, da Universidade de São Paulo; é autor de A Hélade e o Subúrbio. Confrontos Literários
na Belle Époque Carioca (São Paulo, Edusp, 2006), A Resignação dos Humildes. Estética e Combate na Ficção de Lima Barreto
(São Paulo, Annablume, 2011), e O Sorriso
da Sociedade. Literatura e Academicismo no Brasil da Virada do Século
(1890-1920) (São Paulo, Alameda, 2012), entre outros.
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