A
vida dos dodós está a deixar de ser uma grande incógnita para a ciência. Parece
que esta ave não só mudava mesmo de penas, como crescia a duas velocidades –
primeiro mais depressa, depois mais lentamente. Ossos do dodó revelam como
crescia esta ave extinta há mais de três séculos
Já não podemos dizer que os
ossos são “o pouco” que resta dos dodós porque, graças a eles, passámos a
conhecer o seu ciclo de vida. Da ovulação à mudança das penas, a primeira análise
histológica dos ossos dos dodós traz novidades sobre esta ave endémica da ilha
Maurícia, extinta há mais de 350 anos.
Os ossos são oriundos de
vários pontos daquela ilha do oceano Índico (a Leste de Madagáscar) e
maioritariamente de aves juvenis, tendo os resultados deste estudo sido
publicados na última edição da revista Scientific Reports (do grupo da Nature).
A época de reprodução dos dodós começava em Agosto, com a ovulação das fêmeas
e, depois de os ovos serem chocados, as crias cresciam rapidamente – a tempo de
terem um porte suficiente para sobreviverem às chuvas e ventos fortes de
Novembro a Março. A partir de finais de Março, começavam a crescer penas novas
para que, no fim de Julho, a ave estivesse pronta para a época de reprodução
seguinte.
Mas, antes de mais, por que se
extinguiu esta ave? O dodó foi caçado, o seu habitat destruído e os ovos
devorados por mamíferos invasores como ratos, macacos, porcos, cabras ou veados
levados por colonizadores (portugueses, holandeses, franceses e ingleses) para
a ilha Maurícia. Resultado: em cem anos, o Raphus cucullatus desapareceu.
Porém, não foi esquecido e agora pode mesmo ser lembrado por mais motivos.
Apesar de não ter sido a única
ave da ilha Maurícia a desaparecer, Alan Cooper (biólogo neozelandês da
Universidade de Oxford, no Reino Unido, e que não fez parte deste estudo)
salientou que o fascínio pelo dodó se deve à mensagem ecológica que difunde:
foi dos primeiros casos conhecidos de uma extinção que presenciámos e até para
qual contribuímos. “Foi a primeira vez que os europeus viram alguma coisa a
extinguir-se em tempo real”, dizia Alan Cooper em tempos ao jornal The New York
Times.
Mas o que sabemos hoje desta
ave não voadora que, como diz a bióloga e historiadora de ciência portuguesa
Clara Pinto Correia, parecia um peru estranho com cara de pombo-guerreiro?
Ainda que haja muitos mistérios, vai-se sabendo cada vez mais.
Os ossos de 22 dodós que
tinham sido descobertos na ilha Maurícia encontravam-se no pântano Mare aux
Songes e em grutas. Cinco fémures, 14 tíbio-tarsos, dois tarso-metatarsos e um
úmero foram agora facilmente identificados graças às descrições anatómicas
rigorosas de Hugh Edwin Strickland e Alexander Melville (1848) – um dos
trabalhos seminais da Universidade de Oxford acerca do comportamento desta ave
e cujo objectivo era distinguir o mítico do real. Mas, desta vez, foram
investigadores do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade da Cidade
do Cabo (África do Sul) e do Museu de História Natural de Londres que
arregaçaram as mangas.
A equipa de Julian Hume – do
Museu de História Natural londrino e um grande especialista em dodós que tem
procurado cruzar as diferentes peças deste puzzle (desde as ciências naturais e
sociais até às artes) – analisou 22 pedacinhos de ossos removidos dos 22
animais. As amostras foram banhadas em etanol e acetona para lhes remover todo
e qualquer vestígio orgânico antes da observação microscópica.
A observação das amostras pela
lente de um microscópio petrográfico permitiu identificar assim diferentes
fases de crescimento e de maturidade dos exemplares em causa – desde o juvenil
até ao adulto maduro. Por exemplo, um tarso-metatarso bastante desenvolvido pode
denunciar as adaptações que foram necessárias para garantir a locomoção desta
ave que não voava e arrastava a sua barriga pelo chão quando andava. Machos e
fêmeas não eram muito diferentes, de maneira que instrumentos ópticos como o
microscópio tornam-se excelentes aliados para determinar o sexo dos dodós.
Um
animal a duas velocidades
Estudar dodós implica sempre
revisitar memórias de quem o viu ao vivo. Ora no século XVII, como diz Clara
Pinto Correia, os bons escritores eram os marinheiros. Em Dodologia – Um Voo
Planado sobre a Modernidade (editado em 2001 pela Relógio d’Água), a bióloga
portuguesa diz que “as narrativas de viagem eram os grandes best-sellers deste
período”.
Naquela altura, as referências
de testemunhas oculares eram muitas e variadas – “três ou quatro penas pretas”
(no lugar das asas) e uma cauda com “quatro ou cinco plumas onduladas e de cor
cinzenta” são apenas alguns exemplos referidos no artigo científico na
Scientific Reports.
Mas ainda que os testemunhos
dos marinheiros sejam uma fonte explícita do artigo, não eram poucas as vezes
em que a fantasia e realidade se confundiam, por isso um estudo bem
fundamentado teria de ir mais além. Aqui, o caminho trilhado foi o estudo dos
tecidos ósseos. Nas amostras analisadas detectaram-se grandes cavidades no seu
revestimento exterior e acredita-se que isso poderá estar relacionado com a
absorção do cálcio pelas novas penas. Isto porque o mesmo já se verificou em
aves como o pombo-doméstico ou os pinguins.
Assim, provada a mudança de
penas (de Março a Julho) que antecedia a época da reprodução, torna-se compreensível
a diversidade de cores da ave que surge nos relatos dos marinheiros. Se a cor
das penas ia mudando ao longo do ano, era normal que os dodós fossem descritos
e pintados de maneiras diferentes.
Acredita-se que os ossos mais
jovens eram de animais que, ainda assim, já tinham atingido a maturidade
sexual. Tinha um tipo de tecido incorporado no tecido ósseo compacto (tem esta
designação porque a parte exterior parece não ter poros ou canais) que sugere
um desenvolvimento inicial acelerado. Esta característica não é inédita, uma
vez que se encontra em outras aves modernas não voadoras, como a avestruz e a
ema.
Por isso, ao contrário das
grandes aves residentes em ilhas, os dodós eram “crianças” por pouco tempo. Os
autores do trabalho pensam que, uma vez que só com um bom porte físico, as aves
conseguiriam resistir à rigorosa época dos ciclones que se avizinhava. E o que
não deixa de ser curioso é que, a partir daqui, era como se a sua formação
óssea entrasse em câmara lenta.
E porquê essa lentidão?
Pensa-se que esse ritmo estava relacionado com “a falta de predadores” e as
dimensões reduzidas da ilha Maurícia – “onde até à chegada dos humanos, aves
adultas não tinham quaisquer predadores naturais”.
Embora reconstituir na
perfeição a ecologia dos dodós não seja possível, pode traçar-se um cenário do
clima da ilha. E foi o que os autores deste novo estudo procuraram fazer para
perceber melhor como o ecossistema condicionava o comportamento desta ave.
Com um bico espesso que
terminava em forma de gancho, comia frutos, sementes, raízes, folhas, marisco
e... pedras. Tal como fazem as galinhas, que ingerem areia e pequenas pedras
para facilitar a digestão dos alimentos, os dodós também o faziam. Estas pedras
(gastrólitos) ficam alojadas na cavidade gástrica. Mas o alimento poderia não
estar assegurado todo o ano. Com a possibilidade de ciclones no Verão, era
provável que a chuva e os ventos fortes condicionassem a disponibilidade de
recursos na ilha entre Novembro e Março.
A
descoberta da extinção
Clara Pinto Correia recorda
que os portugueses chamavam ao dodó “pássaro doudo”. “O dodó não tinha qualquer
noção de medo, comportando-se como se fosse ‘parvo’ ou ‘fraco da ideia’,
conforme vários marinheiros o descreveram”, escreveu a bióloga. “O dodó que
existe agora nas nossas vidas é uma invenção do século XX. (…) O que fizemos
com o que recuperámos do esquecimento e projectámos nas lógicas da vida
presente foi transformar uma ave morta numa vedeta mediática e numa metáfora
universal.”
Apesar de hoje não haver
dúvidas de que houve uma extinção e que a responsabilidade foi nossa, nem
sempre foi assim. No século XVII, o cristianismo não admitia que se falasse em
“extinção de espécies”. Deus era o criador de todos os animais e plantas e não
era concebível que os humanos fossem capazes de destruir o que Ele tinha criado.
No livro Lost Land of the Dodo (2008), Anthony Cheke e Julian Hume explicam
como é que a extinção do dodó atingiu a visão que se tinha do mundo naquela
época: “Do ponto de vista teológico, que era o dos líderes sociais ou mesmo de
todos os exploradores e naturalistas, a extinção não podia acontecer nem
aconteceu.”
O certo é que, desde cedo, as
ilhas despertaram o interesse dos naturalistas e a Maurícia não foi excepção.
“A Maurícia tornou-se a ilha não só onde a extinção ocorreu, mas onde ela foi,
por assim dizer, descoberta”, afirmavam ainda os dois cientistas autores do
livro.
O último dodó foi sido visto
em 1662, mas vamos depois “encontrá-lo” em 1865 em As Aventuras de Alice no
País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Já o poeta inglês Hilaire Belloc
dedicou-lhe um poema em 1896: “Calou-se a voz esganiçada/Por toda a eternidade/Mas,
no museu, bico e ossos/Estão pra posteridade.”
Apesar ter sido um endemismo
da ilha Maurícia, há vestígios do dodó por todo o mundo, em mais de duas
dezenas de museus. O Museu de História Natural de Londres, o Museu de Zoologia
da Universidade de Cambridge ou o Museu Americano de História Natural (Nova
Iorque) são alguns dos que têm esqueletos quase completos. Margarida Marques – Portugal in
"Público"
Sem comentários:
Enviar um comentário