Daniel dos Santos |
“Amílcar Cabral - Um Outro Olhar” é um ensaio sério, honesto, que
tem na figura de Amílcar Cabral um eixo condutor. O título sugere, uma certa
biografia. Mas não uma biografia do género "Longa Marcha para a
Liberdade" de Nelson Mandela nem “A Face Oculta de Kennedy” de Seymour
Hersch. Cito estes dois grandes estadistas e estas duas extraordinárias
biografias porque estão uma nos antípodas da outra. A primeira é epopeica e panegírica
descrevendo um percurso honroso e dignificante enquanto a segunda é escabrosa e
indecorosa narrando os subterrâneos da vida de um político e do seu clã –
vergonhosa, imoral e pouco digna.
A obra de Daniel Santos não
é uma coisa e também não é outra. Não glorifica nem denigre. Não é isento – não
gosto desta palavra porque ela, a palavra, é desprovida de conteúdo, não tem
substância, nem é real. Despiria o autor do seu saber, da sua formação, do seu
pensar, do seu cunho pessoal. É objectiva, seria a expressão certa para a
classificar.
Mas diria mais! Diria que “Amílcar Cabral – Um outro Olhar” é
denso, é substantivo, é real, por isso potencialmente polémico. É também
equilibrado, porque rigoroso e profusamente documentado.
Escrito numa linguagem simples
sem ser simplista, escorreita, desprovida de qualquer gongorismo ou sociolecto,
Daniel dos Santos convida o leitor despretensiosamente a uma permanente
reflexão. Na verdade faz uma TAC (Tomografia Axial Computadorizada)
centralizada na figura de Amílcar Cabral (AC) em que escalpeliza um homem, um
partido e um tempo. Fundamenta-se na vida multifacetada de uma das maiores
figuras de África do seu tempo – Amílcar Cabral – para descrever o homem, o
político, o diplomata, o chefe militar, bem como social, cultural e
historicamente esse tempo – o das independências das colónias portuguesas de
África.
O autor divide a sua obra em
três partes. O nome que dá a cada uma e as razões que estão na base desta sua
organização são explicadas e descritas nas 1ª páginas. Em contrapartida separa
a vida do “biografado” em cinco fases cronologicamente estabelecidas, a saber: Conformista; Contestatário; Revoltado;
Nacionalista e Revolucionário desfazendo desta forma a ideia de que Cabral
“nascera” político, ao mesmo tempo que deixa intuir que ele se tornara político
por efeito das circunstâncias e da sua sensibilidade porque na verdade o que
ele sonhava, era ser um poeta de mérito e um reconhecido engenheiro, segundo
confessaria.
Para descrever estas fases,
o autor percorre a vida de Amílcar Cabral desde o nascimento em Bafatá,
Guiné-Bissau em 1924 passando pelo seu assassínio em Conacry em 1973, indo para
além da sua morte com a proclamação da independência da Guiné-Bissau e até
quando, diz ele, um grupo declarando-se herdeiro do seu legado político e
reivindicando a legitimidade histórica da sua luta, instala em Cabo Verde,
(cito-o): “… um modelo de Estado da mesma igualha que o de Oliveira Salazar.” E
explica (continuo a citar): “As semelhanças são enormes: ambos se baseavam no
partido único, no chefe, na polícia política, na estatização da economia, na
ideologia, no monopólio das forças armadas e dos meios de comunicação social.”
(Fim de citação).
Nada escapou ao olhar atento
do investigador político e do antigo jornalista. Do país ele aborda com clareza
e com rigor científico o seu achamento, o seu povoamento, a sua colonização, o
seu “colonialismo”, cruzando e confrontando inteligente e assertivamente
teorias, doutrinas e conceitos − jurídicos, sociológicos, históricos, culturais
− concluindo convergentemente com Cabral de que Cabo Verde era uma colónia sui
generis porque “tecnicamente sem colonização e sem colonialismo”. Cabral diria
para culminar uma intervenção a este propósito: ”Os tugas adoptaram outra
política: [Em Cabo Verde] todos são cidadãos.” Isto tudo para enquadrar e
distinguir, diferenciar, as razões da luta em Cabo Verde e na Guiné.
Ao percorrer a vida de
Cabral, Santos não esquece, antes, realça o facto de AC não obstante ser filho
de um homem culto e professor só ter feito a 4ª classe aos 13 anos, na Escola
Central da Praia. Aqui abro um parêntese para um comentário pessoal,
extra-livro, e fazer o ingrato papel de advogado do diabo: Juvenal Cabral, pai
de Amílcar, teve cerca de 3 dezenas de filhos – 18 com as suas 3 principais
mulheres – o que seguramente não lhe dava tempo para cuidar deles todos. Isto
deve ter marcado profundamente o menino e depois jovem, e mesmo o homem,
Amílcar Cabral, o que o leva a manifestar (poesia e cartas) uma permanente protecção
e um exacerbado carinho pela mãe e a condenar com uma violência inaudita, até
com alguma deselegância e falta de tacto diplomático, a poligamia, quando diz:
“Que está de facto, profundamente convencido de que é indigno para a espécie
humana um homem ter várias mulheres.”
Ofendia desta forma, pela
linguagem que utilizou e não pela condenação da poligamia, o povo do País que o
acolheu, o mundo muçulmano e a cultura generalizada de África. Cabral viajava
com dois nomes falsos (ambos com passaportes de países muçulmanos, um de
Marrocos em nome de Mohamed Benali, outro da Guiné-Conacry em nome de Ousman
Keita). Não me vou alargar sobre este facto. Fecho o parêntese.
Pois bem, AC lá fez o Liceu
com distinção – 17 valores – no Gil Eanes de S. Vicente para onde se deslocara
com os seus três irmãos e a mãe que teve que trabalhar duramente – ganhava 50
centavos por hora na fábrica de conserva de peixe, quando havia peixe – para
manter a família monoparental uma vez que o pai durante todo o tempo – 7 anos –
absolutamente nada enviara.
Depois de um ano a trabalhar
na Praia, segue para cursar agronomia. Daniel dos Santos aproveita com muita
oportunidade o tempo em que Cabral se encontra em Lisboa para descrever com
suficiente minúcia o ambiente estudantil dos oriundos das então colónias bem
como a sua relação com a Casa dos Estudantes do Império – CEI – que dava os
seus primeiros passos.
Cabral chegou a Lisboa em
1945 – com 21 anos – pouco mais de um ano depois da criação da CEI. Também fim
da 2ª Grande Guerra, que, como se sabe, traria alterações significativas na
situação das colónias; ano da criação da ONU. E já agora, acrescente-se – e não
é despiciendo – auge da repressão salazarista.
E foi seguindo o seu
percurso, as suas relações com a “CEI” e com os principais protagonistas do
ambiente estudantil africano do qual Daniel faz uma bem articulada exposição da
evolução da “Casa” como espaço criado pelo Estado Novo (Ministro do Ultramar
Vieira Machado e Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa Prof. Marcello Caetano
– autor dos estatutos da CEI) para integrar e controlar os estudantes
ultramarinos – dispersos em inúmeras associações – evolução, dizíamos, primeiro
para um centro de consciencialização da cultura africana, isto é, como disse
Tomás Medeiros como um local de “busca da re-africanização da identidade e das
raízes” ou como avançou Frantz Fanon «quebrar a máscara branca» uma vez que o
antilhano considerava que o colonialismo é um processo de alienação que
inferioriza o colonizado porque faz dele cópia, em termos culturais, do
colonizador e, posteriormente, de politização das consciências.
Refere-se ao surgimento de
uma actividade político-jornalística intensa e muito abrangente, com a criação
de várias associações e organizações que lutam pela igualdade de negros,
mestiços e brancos, por uma “Uma África para os Africanos”, aproveitando-se do
pan-africanismo de Garvey e Du Bois e dos protagonistas dessas actividades em
Portugal e colónias, salientando o papel dos cabo-verdianos Augusto Vera Cruz e
dos irmãos Luis e Martinho Nobre de Mello.
A passagem de AC pela CEI
não foi relevante. Por um lado porque a princípio AC estava muito mais focado
nos seus estudos do que em qualquer outra coisa. E a sua aparição na Casa,
diz-nos Daniel dos Santos, só se dá em 1949, quase no fim do curso, pelas mãos
de Marcelino dos Santos e depois da chegada de Mário de Andrade (1948). A CEI,
nessa altura, segundo Mário de Andrade [apenas] se preocupava com problemas que
estivessem ligados à geografia, à linguística e à história da colonização. E
parafraseando o autor que cita Óscar Oramas: “Amílcar não tinha formação nem
preparação teórico-ideológica para rejeitar os valores e a cultura portuguesa”.
(Fim de citação).
O surgimento (na
clandestinidade) em 1951, do Centro dos
Estudos Africanos (CEA), na Rua Actor Vale, 37, em Lisboa, veio dar
seguimento ao trabalho cultural iniciado na “Casa” e que não podia continuar
porque ela era dominada pelos filhos dos ricos colonos, sobretudo angolanos,
que, obviamente, não deixavam espaço para essas actividades. O CEA era dominado
pelo santomense Francisco José Tenreiro que era de entre todos, de longe o mais
bem preparado, com obras já publicadas. É este o período em que Daniel dos
Santos classifica AC de “contestatário”.
E para terminar esta fase da
vida de Amílcar que o autor descreve e analisa de forma exaustiva, não posso
deixar de referir, muito rapidamente, como começou, segundo Daniel Santos:
Amílcar considerou-se sempre GUINEENSE durante toda a guerra para a
independência. E os senhores perguntar-me-ão: E não era guineense? Claro que
era! Mas só foi estudar porque o reitor do Liceu de Gil Eanes, Dr. Luis Terry, lhe concedeu
(discricionariamente) uma pequena bolsa de 350$00 mensais que era
manifestamente pouco. Chegado a Lisboa, a CEI que tinha na sua direcção Humberto Duarte Fonseca, um
cabo-verdiano e a chefiar a sua Secção de Cabo Verde, obviamente, outro
cabo-verdiano, Aguinaldo Veiga abriu
concurso para uma bolsa para os naturais
de Cabo Verde a que Amílcar Cabral concorreu e ficou em primeiro lugar. Era
uma bolsa de 450$00 que iria acumular com a de 350$00 do Liceu. Humberto
Fonseca ainda faria várias diligências junto do Instituto Superior da Agronomia
e do Ministério da Educação para que lhe fosse concedida isenção de propinas
que não era compatível com a condição de bolseiro, conta-nos Daniel dos Santos.
E foi, graças ao empurrão destes dois
cabo-verdianos, e ao seu fechar de olhos à sua naturalidade que ele ganhou
condições para fazer o curso tendo depois escolhido a Guiné para começar a
trabalhar. Aliás, ele nunca trabalhou em Cabo Verde depois de formado.
Antes de partir, ainda no
ano em que se formou, 1952, com 15 valores, publicaria o “Apontamentos Sobre a Poesia Cabo-verdiana” no Cabo Verde – Boletim
de Propaganda e Informação onde estabelece um paralelo entre os Claridosos e os
predecessores. Dizia que o advento dos Claridosos tinha tirado a poesia
cabo-verdiana dos céus e tinha-a colocado na terra: “Cabo Verde já não era o
Jardim Hesperitano mas um país real, de gente com problemas” e, continuo a
citar: «onde as árvores morrem de sede, os homens de fome, a esperança nunca
morre» … «e o mar a estrada da libertação e da saudade». (Fim de citação)
É ainda nesse ano de 1952
que Mário de Andrade e Francisco Tenreiro publicam “Os Cadernos da poesia Negra de Expressão Portuguesa” que para
alguns constitui um marco na afirmação da personalidade africana em terras
portuguesas. Foi altura, diz-nos Santos, em que Cabral descobre o
Pan-Africanismo de Du Bois e Washington e o Movimento Negritude de Senghor,
Césaire, Anta-Diop e outros.
Na Guiné, Cabral desenvolve
um extraordinário trabalho técnico merecendo a apreciação do Governo da Guiné
do qual teve sempre boas referências. Mesmo depois de tentar fundar uma
Associação, espante-se (!) em que exclui cabo-verdianos e europeus. Longe devia estar a ideia da unidade!...
É claro que os estatutos não
passaram apesar da simpatia que o Governador Mello e Alvim, um homem de ideias
liberais, tinha por ele. Mais: Mello e Alvim tê-lo-ia repreendido e dado
conselhos de que Cabral mais tarde agradeceria e dos quais nunca mais se
esqueceria.
Cabral deixa a Guiné em
1955, evacuado com paludismo e não
expulso como se tenta fazer passar, di-lo e prova-o Daniel dos Santos. Durante
o tempo que esteve na Guiné teve oportunidade de assistir a espancamentos,
torturas, maus tratos de indefesos «indígenas». Numa palavra: De viver e
testemunhar a violência do colonialismo. É a fase de revoltado, segundo Daniel dos Santos, que a explica com
pormenores.
Até 1959, esclarece-nos
Daniel dos Santos, «a folha de Amílcar Cabral na PIDE estava completamente
limpa».
Da Guiné salta para Angola
para onde fora trabalhar num projecto ligado ao mapeamento de solos. Ali ele
tem contactos com activistas e nacionalistas angolanos, mais politizados (numa
fase mais madura) e mais bem preparados. Toma consciência da luta que é
necessário travar, merecendo de acordo com a entrevista concedida por Tomás
Medeiros a Daniel dos Santos o seguinte comentário (cito): [AC] «só começa a
falar de independência quando foi a Angola trabalhar em Cassiquel. E Mário de Andrade
fez-lhe ver que a «vida não é só solo, é mais qualquer coisa.» E acrescenta
Tomás Medeiros: «perdeu as ilusões do solo e passou a perceber que o problema
estava na organização e no combate.»
Isto, e explicações mais
acabadas que encontramos ao longo do livro desfazem o mito, engendrado e
alimentado no seio do PAIGC de que AC esteve na fundação do MPLA. AC nada tem a
ver com a criação do MPLA. Ele, AC, politizou-se
em Angola, com angolanos e não o inverso como o demonstra Daniel dos
Santos. É o período em que o classifica de nacionalista.
Quando se dá a revolta dos
estivadores do cais de Pidgiguiti em 1959, Cabral estava em Angola, de regresso
para Portugal tendo tomado conhecimento da ocorrência pelos jornais. Visita a
Guiné passado um mês, em Setembro, não lhe faltando informações sobre os
acontecimentos, uma vez que o seu amigo Aristides
Pereira por onde passavam as mais secretas e confidenciais informações era,
sempre de acordo com Daniel dos Santos, o
homem de confiança do Governador e do Inspector da PIDE.
Pidgiguiti é mais uma das
falácias do PAIGC que durante anos o reivindicou como obra sua, sem nada,
absolutamente nada ter a ver com ele. Até porque, como se verá ao longo da
obra, PAIGC nem sequer existia.
Em Janeiro de 1960, Cabral
viaja para Tunes integrado no MAC (Movimento Anticolonial) fundado em 1957 por
um grupo de militantes de luta anticolonial – o 1º compromisso político de AC –
para assistir ao II Congresso Pan-africano realizado para os movimentos
africanos organizados. Não foram admitidos uma vez que o MAC era uma organização de cidadãos de várias
colónias – Viriato da Cruz e Lúcio Lara de Angola, Amílcar Cabral da Guiné,
Hugo de Menezes de S. Tomé – e não uma associação de organizações nacionais,
como se exigia. Foram obrigados por esse motivo a “inventar” o MPLA e o PAI para poderem participar, aliás indo ao encontro dos desejos e
das recomendações de Viriato da Cruz. Ao contrário, Holden Roberto era
integrado e já conhecido através da UPA, uma organização nacional angolana que
ele presidia. Daniel dos Santos fala então da transformação do MAC para FRAIN (Frente
Revolucionária Africana Para Independência Nacional das Colónias Portuguesas)
depois para CONCP (Conferência das Organização Nacionalistas das Colónias
Portuguesas) e explica com pormenores como foram “criados” e não “fundados” os
dois partidos – MPLA e PAI.
Quanto ao PAI ele descreve
com toda a minúcia a fabricação da data de 19 de Setembro de 1956 como data da
fundação do PAIGC. Apenas para levantar o véu e não tirar-vos o prazer da
leitura, direi que, dos chamados fundadores – nomes que variam conforme a fonte
– não há duas declarações coincidentes. Apenas dois exemplos de dois alegados
fundadores: Aristides Pereira disse que Cabral achou, no acto da fundação, que
não era preciso assinar nenhum papel de compromisso. O seu cunhado Fernando
Fortes, ao contrário, não só disse que assinou um documento, como também disse
que falou com Cabral sobre a sua militância no MLG. Acontece, porém, que em
1956, pretensa data da fundação do PAI, o MLG não existia. O MLG só foi fundado
em 1958. Como podia ser?
Depois da Conferência de
Tunes – um marco importantíssimo não só na vida de Cabral como na luta das
colónias – em que ele assinara com o pseudónimo de Abel Djassi, um compromisso,
não havia mais condições de Cabral regressar a Portugal onde tinha deixado a família
e teve que abandonar a clandestinidade e lançar-se na luta.
Chegou a Conacry em Maio de
1960. Já existiam no terreno muitos partidos (MLG, MLGC e UPGB entre outros)
pelo que teve de lutar duramente – nem sempre com elegância e elevação (troca
de panfletos e de insultos, conspirações, intrigas) com os partidos
concorrentes – para que o seu PAI, que acabara de sair de Tunes – sem
expressão, sem quadros e sem estruturas – fosse reconhecido como única força
representando Guiné e Cabo Verde.
Em 1963, o PAI já PAIGC dá o
seu primeiro tiro. É o início da Luta Armada. E os problemas no seio do PAIGC
ganham outra natureza. É a fase de Cabral
revolucionário. Tinha sido nomeado Secretário-Geral do PAIGC fora do quadro
estatutário por uma Conferência de Quadros em Dakar. A partir daí alterou os
estatutos como quis, sem nunca convocar
um único congresso e foi-se assenhoreando do Partido.
Em 1964, com a “Conferência
de Quadros de Cassacá” mais tarde tornado Congresso, do qual se saíra muito
bem, mas deixando atrás “um rasto de um número indeterminado de condenações e
fuzilamentos de combatentes e de militantes”.
Reforçou os seus poderes e
assumiu-se como senhor absoluto do PAIGC. Passou, desde então, a coleccionar
inimigos e adversários internos, todos movidos por um único interesse: o de o
eliminar.
E à medida que a luta se ia
desenvolvendo mais poderes chamava a si. Tornou-se, diz-no-lo Daniel dos
Santos, primeiro, uma espécie de semi-deus em que, cito Maurice Duverger citado
pelo autor: “toda palavra que sai da sua boca constitui a verdade; toda a
vontade que dele emana é a lei do partido”, e depois em próprio deus que
decidia da vida e morte dos militantes e em que até os casamentos careceriam da
sua autorização.
Diz um documento do PAIGC,
reproduzido no livro, que ele estava acima do Partido e podia por este facto
aprovar ou reprovar qualquer decisão tomada por qualquer órgão do Partido
inclusive da sua própria Comissão Permanente. Passava a todos, sem excepção,
uma certidão de incapacidade e de incompetência.
De
tudo isto e do que adiante virá nos dá conta o livro.
Ao mesmo tempo que crescia o
seu autoritarismo, o seu absolutismo alegadamente iluminado, engrossavam as
fileiras internas dos que o queriam eliminar. Bastas vezes foi posta em causa a
sua liderança inclusive pelo seu próprio irmão Luis Cabral, como poderão ver na
obra.
Apresento uma lista dos
atentados, conspirações, intrigas, intentonas mais importantes de entre os que
Daniel dos Santos elenca no seu livro:
• Revolta de Boé (Junho de
1967); - todos fuzilados. As causas residem, alegadamente, na protecção que AC
dava aos cabo-verdianos. Nino estaria envolvido mas recusou-se a comparecer ao
julgamento para que foi convocado.
• Novembro de 1967, um
atentado perto de Ziguinchor
• Em Dezembro de 1967 são os
mandingas que se manifestam devido ao número de baixas que sofriam…
• Em Janeiro de 1969 um
grupo de balantas em Boé recusa-se a combater exigindo a presença de Cabral.
• Um outro movimento de
revolta surge chefiado por Mário Gomes, Braima Sissé e Sena Camará.
• A 3 de Maio de 1968, 150
mandingas chefiados Injai Bá da região de Oio traçaram um plano de deserção
para o exército português. A deserção era punida com fuzilamento.
• A 30 de Dezembro de 1968,
os mandingas e os manjacos juntam-se e criam a Junta Militar dos Patriotas da
Guiné-Bissau com vista a transformar o PAIGC em PAIG. Propunha-se eliminar AC e
os seus homens de confiança que, para eles, só vivem roubando o partido. A
Junta era dirigida por Mamadu N’Daie, Mamandim Iafa e Bobo Keita, todos
Comandantes supremos.
• Em Fevereiro de 1969
atentado contra Osvaldo Vieira desta vez, (supostamente) à ordem de AC que
estava convencido de que Osvaldo Vieira e Lourenço Gomes pretendiam derrubá-lo
da Chefia do PAIGC.
• A 31 de Março de 1969 um
militante de nome Jonjon é surpreendido pelo próprio AC no seu Gabinete com uma
granada no bolso para o eliminar como mais tarde confessaria. Foi fuzilado com
os seus cúmplices.
• Em Outubro de 1969, Malam
Sanhá, Seco Baio e outros guineenses reuniram-se em Simbeli com o propósito de
urdir um atentado para eliminar AC quando este para lá se deslocasse;
• Um outro plano para
eliminar AC é conhecido em 1969;
• Em 1972, um ano antes da
morte de AC também um conluio (Cabi de etnia balanta e Caetano). Tratava-se de
uma cilada que consistia em minar a estrada por onde AC iria passar.
• Carta do Nino Vieira a
Rafael Barbosa que foi interceptada e os seus efeitos: Conselho de Guerra para
Nino demitido de todas as suas funções e 40 militantes presos para
averiguações.
Perante esta enumeração
(elencagem), que peca por defeito, hoje, podia-se perfeitamente ter pedido
emprestado a G. Garcia Marquez o título de um dos seus mais famosos livros:
“Crónica de Uma Morte Anunciada”, morte esta que viria a acontecer a 20 de Janeiro
de 1973.
O que intriga, e Daniel é
absolutamente claro quando o insinua, é que perante os factos e o historial,
ainda permaneça em certas pessoas a fixação de que os autores morais do bárbaro
assassínio tenham sido apenas a PIDE e o Gen. Spínola quando não faltavam
agentes e motivos internos. Ou é comodismo, preguiça de pensar ou é ignorância
sobre o que se passava no interior do PAIGC, o que seria natural dada a
situação de guerra e natureza estalinista do Partido. Ou então seria mais uma
fabricação do real como veremos adiante.
Para chegar ao assassínio de
Cabral, Daniel percorre a luta e o Partido de lés-a-lés: a sua génese, o seu
desenvolvimento, os seus sucessos, os seus fracassos, as suas estratégias e
tácticas, as suas falácias, os seus momentos de elevação mas também de
indignidade.
Nada, absolutamente nada,
escapa ao olhar de lince, perspicaz, cuidadoso e abrangente do político e
politólogo, olhar este que se projecta para além da vida do criador do PAI.
Desde a maneira autocrática,
despótica e absolutista como Cabral conduziu o seu Partido, até à criação de um
poderoso e bem organizado exército passando pelas intrigas, conspirações,
choques, oposições de que atrás falámos.
Daniel dos Santos confronta
ainda, com subtileza, a presença de cabo-verdianos na luta armada, segundo ele,
de 30 a 40, com a dos cubanos que
chega a atingir os 500 no ano de 1967,
bem como os mortos em combate – 2 da parte dos cabo-verdianos e 17 da parte dos
cubanos.
(A srª Ministra das Finanças
que se cuide!…Se os cubanos reivindicarem também terem lutado na Guiné por Cabo
Verde não haverá erário que aguente…).
Daniel faz também uma
oportuna e bem articulada incursão pela História comum de Cabo Verde e Guiné
abordando a questão da “fraternidade” entre os dois povos deixando ao leitor a
incumbência de concluir que, se os dois povos são irmãos, então são os bíblicos
Caim e Abel – os irmãos desavindos, uma vez que se trata de uma relação
histórica, como ele próprio observa, entre “dominador e dominado”. Daí se poder
inferir que a dogmatização da unidade Guiné - Cabo Verde, maquinada e
sustentada por Amílcar Cabral ou é um desafio à História que foi sempre adversa
a essa solução ou não passou de um instrumento habilmente urdido para a
consecução da luta para a independência da Guiné-Bissau.
A questão identitária não
foi também esquecida. Sem entrar em grandes pormenores, direi que Daniel dos
Santos assume uma posição que considero salomónica, de equilíbrio: Não temos
que nos re-africanizarmos nem de nos re-europizarmos. Somos cabo-verdianos,
fruto do encontro dos dois continentes e respectivas culturas.
Lembrando o grande poeta,
ensaísta e jurista Gabriel Mariano: Não temos que procurar as raízes, “nós somos as nossas raízes!”
Retomando o conteúdo da obra
é importante salientar que o livro de Daniel dos Santos é construído como se de
um puzzle se tratasse. Um puzzle cujas peças se encaixam de múltiplas maneiras.
Tantas, quantas as conclusões a que cada leitor poderá chegar. Um puzzle em que
cada peça que se coloca é um mito que se desfaz na nodulosa edificação
construída no aconchego de um conceito marxista-leninista de ideologia que
Daniel dos Santos tão arguta e inteligentemente repescou de Mário de Andrade e
que consiste na “fabricação do real para fazer passar uma verdade” que se
deseja ou que convém. É isto, diz-nos Daniel dos Santos, cito: “que serve para
explicar, por completo, a apropriação, umas vezes, a falsificação, noutras, de
muitos acontecimentos que marcaram a evolução de alguns processos políticos nas
antigas colónias portuguesas." (fim de citação).
É neste quadro que
situaremos a falácia da data de criação do PAIGC; a apropriação da greve dos
estivadores de Pidgiguiti; a mentira do controlo dos dois terços do território;
o embuste do recenseamento da população da chamada zona libertada; a
apropriação da autoria da queda do helicóptero onde viajavam deputados
portugueses quando a causa tinha sido unicamente meteorológica; a teatralização
(publicidade enganosa) da audiência pública do Papa Paulo VI tornada privada; a
exultação em Conacry dos irmãos Cabral pelo bárbaro assassínio dos três majores
portugueses; a proclamação da independência da Guiné-Bissau pretensamente (há
fortes dúvidas do local) em Boé; e a alegada legitimidade histórica transferida
para Cabo Verde por um grupo de cabo-verdianos que lutaram para a independência
da Guiné-Bissau entre muitos outros assuntos cirurgicamente inseridos.
Daniel dos Santos é lógico,
sem ser silogístico no sentido aristotélico do termo. No geral evitou
conclusões. Diria que é socrático quanto à metodologia de exposição; mais
propriamente maiêutico pois fornece dados e convida o leitor a tirar as suas
próprias ilações. Daí que as minhas não são unívocas. Um outro leitor aportará
seguramente a outras inferências. Contudo há sempre algumas que se consideram
(ou parecem ser) consensuais, não unânimes. E são a estas, sem quaisquer
pretensões de estar certo, que me vou rapidamente referir:
> Amílcar Cabral viveu apenas 10 anos em Cabo Verde – dos 11
aos 21 – anos que, como é lógico, poderiam ter (e terão) sido de algum
enriquecimento intelectual e social mas dadas as limitações e as circunstâncias
que se viviam é de pouco ou nula relevância social – apenas um ou outro
exercício literário. É esta a fase que Daniel classifica de conformismo;
> Surge [AC] em Cabo
Verde, para o povo cabo-verdiano, (não para a elite informada) trazido pelo “25
d’Abril” e pelas mãos de um punhado de homens e mulheres que tinha todo o
interesse em endeusá-lo e mitificá-lo para se legitimar como herdeiros do seu
alegado “extraordinário” legado histórico colocando-o directa, mas sobretudo
convenientemente, no “Panteão” por uma unanimidade imposta e sem um debate
sério sobre ele, que promovesse, no mínimo, um consenso; (estatisticamente, a unanimidade é quase sempre uma imposição enquanto o consenso é uma construção).
> Consenso de que ele não
gozava como líder – é bom que se diga – entre os dirigentes guineenses como a
obra de Daniel dos Santos revela; e do qual, pelos vistos, só se redimiu com a
morte, que o resgatou. Basta ver a quantidade de responsáveis guineenses
implicados no seu assassínio.
> Que a luta desenvolvida
na Guiné-Bissau, utilizando as justificações e os discursos de Cabral, tinha
muito mais um cunho, um cariz, anticolonialista, de mera luta pelo poder, do
que nacionalista – defesa de um ideal, de valores.
> Amílcar Cabral não
teria lugar no Cabo Verde de hoje. A concepção monolítica que ele tinha de
poder, da sociedade e da política são absolutamente incompatíveis com a
democracia (sem adjectivos), com os valores e as actuais aspirações do povo
cabo-verdiano;
• O livro de Daniel dos
Santos reclama de nós uma profunda reflexão sobre a verdadeira contribuição
desse homem – Amílcar Cabral – no processo político cabo-verdiano;
• É também um convite a um
debate sério sobre o mérito ou demérito do seu lugar no “Panteão” e sobre a
“fundação” de uma nação que há mais de 450 anos existe e que como tal, como
nação, fez a 1ª reivindicação dos seus direitos cívicos em meados do seculo XVI
no longínquo reinado de D. João III.
• É (o livro) um desafio à
mitificação, ao culto da personalidade, idiossincrático dos regimes
totalitários e ditatoriais de que guardamos evidentes resquícios e produzimos
primárias e grotescas manifestações;
• É ainda (o livro) um forte
apelo a uma discussão urgente, há mais de 40 anos adiada. Não apenas das
teorias ou do pensamento de Cabral mas do seu efectivo papel na independência
do País.
Parabéns, pois, a Daniel dos
Santos pela ousadia de “UM OUTRO OLHAR” sobre Amílcar Cabral, um olhar que
desacomoda, um olhar através deste importante, interessante e, desde já,
incontornável documento para o conhecimento da História de Cabo Verde. Uma
contribuição que acaba de preencher uma boa parte de uma grande lacuna que teimosamente
se tem conservado e que nem o advento da liberdade e da democracia, onde não há
temas tabus, nem personalidades ou figuras inquestionáveis, conseguiu colmatar.
É este o livro de Daniel
Santos que tenho o privilégio e a honra, e também o prazer, de vos apresentar –
uma tarefa difícil dada a sua extensão (quase 600 páginas) e densidade – cuja
leitura, a todos, recomendo vivamente. Armindo
Ferreira – Cabo Verde in “coral-vermelho.blospot.pt”
Armindo
Ferreira - Antigo Ministro das Infraestruturas de Transportes de
Cabo Verde
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