Introdução
Qual a relação entre o
galego e a Lusofonia? Desde há décadas, do lado galego não há uma resposta
única. Por um lado, desde o ponto de vista político, o galego é uma língua
diferente do português, com uma norma diferente (de facto, uma fraca adaptação
do sistema espanhol para o galego), oficializada em 1982 através das Normas
ortográficas e morfolóxicas do idioma galego, elaboradas pelo Instituto da
Língua Galega (ILG) e aprovadas pela Real Academia Galega (RAG). Por outro
lado, existem grupos, provavelmente com uma presença cada vez maior na
sociedade galega, que defendem que a unidade linguística entre galego e
português não está quebrada. Porém, não se pode falar de dois blocos
enfrentados, mas de tendências misturadas, que passam por duas soluções
principais: uma é o uso de uma grafia de base espanhola para o galego, outra é
a adaptação da ortografia portuguesa para a escrita do galego. No primeiro
grupo há pessoas que defendem a total independência do idioma (oficialistas), a
pertença do galego à Lusofonia apesar da grafia (possibilistas), enquanto no
segundo bloco há pessoas que defendem a autonomia do galego frente ao português
(reintegracionistas), frente a outros que promulgam o uso do português padrão
europeu diretamente (lusistas).
E qual a visão que se tem
desde Portugal do galego? Desde os tempos de Leite de Vasconcelos, quando
afirmava que o galego e português são co-dialetos, qual a situação atual?
Todavia, a denominação de co-dialetos requer de uma atualização; essa é uma
questão que abordaremos depois.
Trata-se de uma situação
complexa que tentaremos analisar, tentando mostrar as diferentes hipóteses.
Partiremos de uma pergunta para a qual não há, como dissemos no início, uma só
resposta: se os galegos não falam português e os portugueses não falam galego,
falam portanto a mesma língua?
O
que é o galego?
O galego é, segundo todos os
manuais, a fala românica própria do noroeste da Península Ibérica na Galiza e
áreas vizinhas das províncias espanholas das Astúrias, Leão e Samora.
Oficialmente é um língua independente com status de co-oficialidade na Galiza,
algo que também é reconhecido pelo Estado espanhol, o qual envolve que se trata
de uma língua independente do português.
A realidade é que se trata
de uma língua ameaçada, com evidente perigo de extinção. O que a maioria das
pessoas falam é um híbrido de espanhol e galego conhecido como chapurreado.
Além disso, a transmissão geracional do idioma é muito baixa, apenas 10%. A
maioria dos habitantes da Galiza falam espanhol regional da Galiza. O governo
galego elegido em 2009 não protege mais o galego, o seu uso diminui ano após
ano nos média, na administração e na escola.
Muitas pessoas não concordam
com a visão isolacionista do galego, partem de uma pergunta que a boa parte da
povoação não interessa: que é o galego para além da língua própria da Galiza?
Há quem crê que a salvação do galego passa por se reintegrar no português, na
Lusofonia. Desta maneira a visão sobre qual a essência do galego tem duas respostas:
uma é a oficial, já mencionada anteriormente, e outra alternativa, que grosso
modo é conhecida no seu conjunto como reintegracionismo, pelo motivo que já
fica mencionado: o galego deve reintegrar-se na Lusofonia.
A questão é capital porque
existe uma ampla confusão terminológica sobre o que é o galego. Embora seja
plenamente aceite a ideia do galego-português como um diassistema, a sua
natureza, pelo menos no concernente à Galiza, não faz mais do que criar
confusão.
A
norma oficial do galego
As oficiais Normas
ortográficas e morfolóxicas do idioma galego (2003) adaptam, do ponto de vista
ortográfico, o sistema espanhol para o galego. É bem certo que o sistema
consonântico galego fica muito mais perto do espanhol que do português,
inclusive com a existência do fonema /θ/. De facto, a norma oficial introduz
<x> com o valor de /ʃ/ e o dígrafo <nh> para sinalar o fonema /η/.
As regras de acentuação são quase idênticas com o espanhol, enquanto há
absoluta coincidência quanto ao uso distributivo de <c/z>.
É interessante, aliás,
compreender quais os critérios seguidos na elaboração do padrão galego atual em
relação com o português, bem como o uso do argumento pelo governo galego da
lusofonia para promover o galego. De facto, as normas galegas são ambíguas
quanto à relação com o português. Enquanto se diz no texto que o português, por
razões históricas, é um referente para o galego, a influência portuguesa é
recusada constantemente, preferindo-se por norma as soluções coincidentes com o
espanhol.
Além disso, na escolha de
formas normativizadas entre todas as que oferecem os dialetos galegos, houve
uma clara tendência a escolher na maioria dos casos aquelas mais afastadas do
português. Parece assim que a construção do padrão galego seguiu o critério de
procurar a diferença com o português padrão, embora existam geoletos que
possuem formas coincidentes com ele. O seguinte é apenas um quadro onde se
mostram as soluções escolhidas nuns poucos casos, junto com as soluções do
português padrão (as formas em vermelho são as oficiais):
No entanto, não todas as
pessoas que usam esta norma oficial concordam com a visão isolacionista de o
galego ser uma língua independente do português. Há uma corrente que defende
que o galego, embora utilize esta norma, é lusofonia. Estão nessa primeira fase
a que nos referíamos anteriormente de que não chegou o momento de propor uma
mudança ortográfica do galego. Referimo-nos a eles antes como os possibilistas.
A razão defendida por eles para manterem o padrão oficial é que a situação do
galego é tão crítica quanto à sua conservação que falar numa modificação
radical do sistema da escrita não faz mais do que acelerar a perda de falantes.
Portanto, mantêm-se dentro da oficialidade, mas procurando sempre achegar-se ao
português dentro das opções que permite a norma. Esta opção no uso do idioma é
conhecida como galego convergente, estando os seus principais ideólogos na
Universidade da Crunha e contando com o melhor linguísta galego atual como o
seu primeiro promotor: Xosé Ramón Freixeiro Mato.
Existem, portanto, duas
correntes dentro do uso da norma oficial: a isolacionista e a convergente ou
possibilista. Enquanto a primeira tenta afastar-se do português, até ao ponto
de procurar o encontro com espanhol em muitos casos, a segunda procura o
contrário, procurando, aliás, reforçar o galego em todos os sentidos como
ferramenta de comunicação recorrendo ao português sem qualquer complexo.
As diferenças entre ambos os
modelos podem ser vistas no seguinte gráfico que recolhe, de uma forma simples,
as duas visões do galego dentro da normativa oficial.
A
norma reintegracionista do galego
Ao mesmo tempo que nos anos
70 do século XX o movimento de recuperação do galego entrava nas universidades
e daria lugar ao nascimento do Instituto da Língua Galega (1971), a visão
reintegracionista ia também formando-se entre muitos intelectuais. A ideia de o
galego e o português serem sempre um só idioma (as matizações nesta altura não
interessam) fez com que junto aos partidários da independência crescessem
aqueles outros que olhavam para Portugal como a única hipótese de a língua
encontrar no mundo. Um dos pais deste movimento foi Ricardo Carvalho Calero
(1910-1990), cujo pensamento deu lugar à criação da Associaçom Galega da Língua
(AGAL). Toma-se como ponto de partida o trabalho A recuperação literária do
galego precisamente de um português: Manuel Rodrigues Lapa.
Um ano depois da proclamação
das normas oficiais do galego, a AGAL publica as suas próprias em 1983. Tais
normas sofreram também, com o passo do tempo, modificações, para lentamente
ir-se achegando a cada vez mais para o
português.
Neste contexto convém
introduzir o conceito de português da Galiza. Para muitos
falantes galgos, esta denominação é uma autêntica incongruência, porque se se referir
à língua da Galiza, tem que ser galego.
Porém, dentro do
reintegracionismo não há uma visão homogênea da questão. Por um lado, a norma
AGAL mantém ainda muitos elementos iniciais e distintivos do galego, como as
terminações -çom, -som ou o artigo umha (=/uηa/), que muitos utentes
abandonaram para usar as formas concordantes com o português, isto é: -ção,
-são e uma, embora em todos os casos se mantenha uma pronúncia galega diferente
da portuguesa. Pelo outro, com o nascimento da Academia Galega da Língua
Portuguesa (2008) e que vem usando praticamente o português europeu, em alguns
casos com pequenas concessões de tipo morfológico às falas galegas. Daí que
denominemos os primeiros como reintegracionistas e segundos como lusistas.
O
conceito de paraleto no caso galego-português
Oficialmente, como já ficou
dito, galego e português são idiomas diferentes. Tem cada um o seu padrão, de
maneira que a partir da unidade medieval, a realidade oficial é hoje esta que
representamos no seguinte gráfico:
Oficialmente, até do galego
se esgalhou um ramo, o eonaviego,
que é o galego falado nas Astúrias e que o governo regional asturiano elevou à
categoria de idioma (Frias Conde, 2012). Para o português, dentro de um só
padrão, é possível reconhecer várias normas (portuguesa, africana, brasileira).
Desde uma perspetiva
sociolinguística e atendendo para a realidade de que o galego e o português
começaram a se afastar a partir da independência de Portugal no século XIV, mas
que a unidade linguística, apesar de tudo, não ficou totalmente rota, podemos
afirmar que o uso do padrão português europeu para a escrita do galego não
funcionaria. O galego pode ser escrito de conformidade com a ortografia
portuguesa. Nesse sentido, desde os inícios da recuperação do galego a partir
da morte de Franco, tentou encontrar um modo de o galego confluir com o
português, o que na altura se entendeu como a reintegração do galego no âmbito
português (daí o nome de reintegracionismo que recebe o movimento). O primeiro
passo seria, portanto, a mudança ortográfica do sistema oficial de base
espanhola para outro de base portuguesa.
Tal mudança ortográfica mal
afeta a estrutura morfossintática do galego. Mas quando o disfarce ortográfico
desaparece, vê-se que as diferenças entre galego e português são muito menores
do que parece. Porém, também é certo que o galego escrito com ortografia
reintegrada admite diversos graus de aproximação do português padrão europeu.
Dito de um modo simples, pode-se escrever numa forma linguística mais galega ou
menos, com maiores concessões para o português.
Tal forma de escrever vem-se
conhecendo ultimamente sob a denominação de português da Galiza. E é galego,
tanto como o é o galego escrito na norma RAG. Para um falante comum português,
o português da Galiza tem aparência de português, mas apresenta traços
indiscutivelmente galegos. Citaremos alguns deles aqui:
- falais,
bebeis, partis por falam,
bebem, partem (fenómeno comum com falares portugueses trasmontanos e
beirãos)
- falei-che por falei-te
- falárom por falaram (porque falaram
também se usa em galego, mas apenas para o mais-que-perfeito)
- dixo,
fizo/fezo, quijo por disse,
fez, quis
- formas
próprias galegas que podem ser também arcaísmos ou dialetalismos portugueses,
como ment(r)es por enquanto, aginha, e logo, etc.
No vocabulário há dúzias de
palavras que são galegas e seguem a ser empregues com total naturalidade,
embora muitas delas sejam arcaísmos portugueses ou sejam utilizadas ainda no
norte de Portugal.
Se ainda tivessem a
impressão que galego e português não são iguais, é certo. Nem os portugueses
falam galego nem os galegos falam português, mas falam algo que tem mais pontos
em comum do que pontos diferentes. O conceito de galego-português serve para isto,
mas como tudo precisa dum nome mais concreto, a denominação de português da
Galiza para a escrita do galego com o alfabeto português dá, mantendo em maior
ou menor medida as suas feições principais aos níveis gramatical e lexical.
E com isto chegamos a uma
tentativa de definição de qual a relação entre galego e português entre eles.
Visto que o português é um idioma internacional, o que é o galego? Neste
sentido, seria bom recuperar o conceito de codialeto cunhado por Leite de
Vasconcelos (1970, 29), porém com substanciais diferenças, visto que os falares
asturo-leoneses pertencem a um diassistema diferente. A definição que oferece
Leite de Vasconcelos é:
Fiquemos, portanto, com que
galego e português são codialetos, mas não o mirandês, o rionorês e o guadramilês,
que são falares asturo-leoneses. Porém, o conceito de dialeto tem nos dias de
hoje conotações muito negativas, portanto também o de codialeto. Tentámos pôr
em dia a terminologia, partindo do conceito de diassistema que engloba o galego
e o português para falar de paraletos,
um conceito diferente de geoleto, socioleto ou dialeto. O galego não é mesmo um
geoleto do português, como pode ser o minhoto, o trasmontano ou algarvio,
também não é um dialeto em qualquer uma das aceções que tem este termo. Porém,
se considerarmos que não é mesmo uma língua independente do português, o
conceito de paraleto vem refletir qual a relação entre galego e português e que
não tem equivalência em Europa, pois não é equivalente, por exemplo, à relação
que existe entre checo e eslovaco; se calhar, o caso mais próximo seria o do
catalão e o occitano, onde ambos falares podem ser paraletos.
Os paraletos mantêm uma
unidade linguística, mas não usam necessariamente o mesmo padrão. Neste sentido
falaríamos em parapadrão (Frias Conde 2006, 54). Esta é uma diferença
importante, porque o português tem um só padrão, mas com duas normas
principais: a europeia e a brasileira. Porém, tal padrão sofre modificações
importantes no caso galego, pelo qual preferimos falar em parapadrão (e não
subpadrão) permite que o galego mantenha, dentro da Lusofonia, uma autonomia de
que carece qualquer variedade do português.
Portanto, dentro das
hipóteses atuais de parapadrão galego reintegrado, a denominação de português
de Galiza, formulada ainda na segunda década do século XXI, serve perfeitamente
para situar o galego dentro da Lusofonia com um parapadrão próprio. Convém
insistir na importância do parapadrão, porque a distância entre galego e
português nem só no linguístico, mas também no social, deve ser abordada desde
o reconhecimento dessa distância, mas sem quebrar a unidade linguística
galego-portuguesa.
Tudo o anterior fica
refletido no seguinte gráfico:
Tudo o visto até agora sobre
a evolução das normas do galego pode ser resumido nos dois seguintes gráficos,
que recolhem o período que se abre em 1975 e que chega até hoje. O primeiro
descreve qual a evolução dos grupos apresentados anteriormente.
Conclusões
Todas as normas presentes e
passadas do galego olharam para o português, já for para se afastar dele ou bem
para o contrário. Porém, quando até os mais isolacionistas reconhecem que o
galego é uma língua útil para se comunicar com mais de duzentos cinquenta
milhões de pessoas é evidente que não querem dizer que o galego tenha tal
número de falantes. Usam-se, aliás, circunlocuções como que “saber galego é uma
porta de entrada para fazer negócios no Brasil”. Esta é publicidade
institucional, portanto, há um reconhecimento implícito da continuidade do
galego-português. Bem parece que a grande maioria das pessoas que tem interesse
na questão do galego reconhece que o galego tem que fazer parte da Lusofonia,
seja isto dito claramente ou simplesmente insinuado.
E à Lusofonia convém que o
galego faça parte dela? A resposta tem que vir da própria Lusofonia. Até agora
há nomeadamente desconfiança, temor (a uma eventual reação da Espanha se o
galego fizesse parte de uma “instituição” estrangeira) e desconhecimento.
Porém, esperemos que as coisas mudem em breve.
A meu ver, há várias estratégias
que se podem marcar para reforçar a ideia de uma Lusofonia que inclua o galego.
São estas:
- Redefinir
o conceito de “galego-português” em todos os âmbitos, nem só académicos,
mas também políticos, culturais e principalmente editoriais, atualizando a
visão de uma língua do século XXI, não como algo medieval..
- Valorizar
a aceitação do galego como lusofonia com a ortografia oficial, algo de que
já temos falado, porque simplificaria muito as coisas.
- Formular
a existência de um espaço único cultural desde A Crunha até Faro, sem
esquecer o Brasil.
- Projeção
da literatura galega em Portugal.
- Introdução
do ensino de português nas escolas e liceus galegos (para isso foi
aprovada recentemente a Iniciativa Popular “Valentim Paz Andrade”, no 14
maio 2014 pelo Parlamento regional de Galiza, segundo a qual,
impulsionar-se-á o ensino de português nos centros escolares galegos,
entre outras medidas).
Bibliografia
Associaçom Galega da Língua
(1983): Estudo crítico das «Normas ortográficas e morfolóxicas do idioma
galego». Santiago de Compostela : AGAL.
Carvalho Calero, R. (1966).
Gramática elemental del gallego común. Galaxia:Vigo.
Frias Conde, X (2004). “Su
galitzianu, su catalanu e su sardu: comente arribare a una standardizatzione.
Modellos e tzircustàntzias”, em Mensching G & Grimaldi, L. Su sardu. Limba
de Sardigna e limba de Europa. Cagliar:CUEC.
Frias Conde, X. (2006). “A
normalización lingüística na Romania. A normalización da lingua e normalización
dos falantes (o caso dos neofalantes)”, em Ianua 6. Disponível em
http://ianua.romaniaminor.net/Ianua06/08.pdf (agosto 2014).
Frias Conde, X. (2012). “Nos
limites nordestinos do galego-português europeu: o eonaviego”, em Quem fala a
minha língua. Santiago de Compostela:Através Editora
Instituto da Lingua Galega
(1982): Normas ortográfias e morfolóxicas do idioma galego. Santiago:Xunta de
Galicia
Vasconcelos, J. Leite de
(1970). Esquisse d’une dialectologie portugaise 2ª ed. Lisboa : Centro de
Estudos Filológicos, 1970. Xavier
Frias – Espanha in “Pivonauta.wordpress.com”
Francisco
Xavier Frias-Conde – Natural de Béjar, Salamanca, nasceu em
1965, Doctor en Filología Románica, Graduado en Filología Inglesa, Graduado en
Ciencias de la Educación. Docente en la Universidad Nacional a Distancia (UNED)
desde 2009, Secretario del máster de Literaturas Hispánicas Comparadas (desde
curso 2012-13), Secretario del máster Lingüística Hispánica (curso 2012-13), Coordinador
de Selectividad y Acceso de Mayores de 25 años del área de portugués (desde
curso 209-10). Escreve a maioria dos textos em galego (o galego é a
língua familiar materna, por ser a mãe originária da região Eo-Návia nas
Astúrias de língua galega). Contacto: xfrias@flog.uned.es
Poderá aceder em: http://xavierfriasconde.org/
e http://uned.academia.edu/XavierFrias
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