Na
íntegra o discurso de João Manuel Tavares que está a incomodar políticos,
comentadores e outras gentes
Senhor Presidente da República
Portuguesa,
Senhor Presidente da República
de Cabo Verde,
Autoridades civis e militares,
Minhas senhoras e meus senhores.
I
Eu vivi e cresci a 100 metros
do local onde me encontro, ali mesmo, no cimo da Avenida Frei Amador Arrais.
Foi nessa casa que habitei até fazer aquilo que a maior parte dos portalegrenses
faz após acabar o secundário: deixar a cidade para ir estudar fora, na
universidade. Boa parte dos portalegrenses, infelizmente, já não volta a viver
aqui. Eu não voltei. Mas aquela será sempre a minha casa. E esta foi, é e será
sempre a minha cidade.
Tenho a honra de ser o
primeiro filho da democracia a presidir às comemorações do 10 de Junho. Não sei
o que é viver sem liberdade. Devo ao Portugal democrático e ao Estado português
boa parte daquilo que sou. Sou filho de dois funcionários públicos. Fiz o
ensino básico e secundário numa escola pública. Licenciei-me numa universidade
pública.
Portugal não falhou comigo.
Permitiu que um simples estudante de uma cidade do interior, sem qualquer
ligação à capital e às suas elites, fosse subindo aos poucos na vida e chegasse
até aqui.
O meu crescimento acompanhou o
crescimento da democracia portuguesa.
Vi o quanto o país mudou.
Até ao final da década de 90,
Lisboa estava a mais de quatro horas de autocarro de Portalegre, e a essa
distância física correspondia uma ainda maior distância cultural. Os livros
eram poucos e vendiam-se nas papelarias; o cinema só funcionava ao
fim-de-semana; as bandas que nós queríamos ouvir não passavam por cá.
Mas o país progredia, e eu
via-o progredir. Os meus pais estudaram mais anos e tiveram mais oportunidades
do que os meus avós. Eu estudei mais anos e tive mais oportunidades do que os
meus pais.
Como acontecia em tantas
casas, a minha família investia parte do salário a comprar livros e
enciclopédias que chegavam pelo correio, a prestações. Esses livros
representavam o conhecimento e a educação que as famílias ambicionavam para os
seus filhos.
Os pais lutavam por isso –
lutavam menos por eles, do que pelas suas crianças, para que elas tivessem uma
vida melhor, estudassem, fossem “alguém”. Os seus filhos chegariam às
universidades. Estudariam dezasseis, dezassete, vinte anos, se fosse preciso.
Viajariam mais. As suas férias não estariam limitadas aos 15 dias em Albufeira.
Seriam grandes. Seriam felizes. Seriam europeus.
A geração dos meus pais
sacrificou-se para que os filhos tivessem o que eles nunca tiveram. Mas é
possível que eles tenham tido aquilo que mais nos tem faltado nos últimos vinte
anos: um objectivo claro para as suas vidas e um caminho para trilhar na sociedade
portuguesa.
Os portugueses lutaram pela
liberdade em 1974. Lutaram pela democracia em 1975. Lutaram pela integração na
Comunidade Europeia nos anos 80. Lutaram pela entrada na moeda única durante a
década de 90.
Não é fácil saber porque é que
estamos a lutar hoje em dia.
II
É nessa dificuldade que
repousam tantas das nossas angústias.
As pessoas de hoje não são
diferentes das de ontem: enquanto indivíduos, continuamos a amar, a sofrer, a
chorar, a rir, hoje como sempre. Boa parte de nós, talvez julgue mesmo que a
política é somente um cenário longínquo, distante da vida que nos importa, que
é aquela que está mais próxima de nós. Daí o chamado “desinteresse pela
política”.
Mas creio que este sentimento
é já uma consequência dos nossos próprios fracassos. A integração na Europa do
euro não correu como queríamos. Construímos auto-estradas onde não passam
carros. Traçámos planos grandiosos que nunca se cumpriram. Afundámo-nos em
dívida. Ficámos a um passo da bancarrota. Três vezes – três vezes já – tivemos
de pedir auxílio externo em 45 anos de democracia. É demasiado.
Perguntamo-nos como foi isto
possível. Criámos comissões de inquérito para encontrar responsáveis.
Descobrimos um país amnésico, cheio de gente que não sabe de nada, que não viu
nada, que não ouviu nada. Percebemos que a corrupção é um problema real, grave,
disseminado, que a Justiça é lenta a responder-lhe e que a classe política não
se tem empenhado o suficiente a enfrentá-la.
A corrupção não é apenas um
assalto ao dinheiro que é de todos nós – é colocar cada jovem de Portalegre, de
Viseu, de Bragança, mais longe do seu sonho.
O sonho de amanhã ser-se mais
do que se é hoje vai-se desvanecendo, porque cada família, cada pai, cada
adolescente, convence-se de que o jogo está viciado. Que não é pelo talento e
pelo trabalho que se ascende na vida. Que o mérito não chega. Que é preciso
conhecer as pessoas certas. Que é preciso ter os amigos certos. Que é preciso
nascer na família certa.
Os miúdos que não nasceram
nesse tipo de “família certa” têm direito aos mesmos sonhos que os filhos das
elites portuguesas – todos nós concordamos com isto. Mas será que estamos a
fazer alguma coisa para que aquilo com que concordamos se torne realidade? Será
que podemos garantir que o talento conta mais do que a família em que cada um
nasceu? Será que a igualdade de oportunidades existe?
Quando eu digo à Carolina, ao
Tomás, ao Gui ou à Rita – os meus quatro filhos – “leiam mais, trabalhem mais,
que o vosso esforço será recompensado” – será que lhes estou a dizer a verdade?
Os meus pais disseram-me isso
a mim. E eu estou aqui. Mas será que a mesa está equilibrada e o elevador
social funciona hoje da mesma forma? Ou a vida estará bem mais difícil para um
jovem na casa dos vinte anos, que numa economia de baixo crescimento tem de
competir com uma geração mais velha já licenciada, integrada num mercado de
trabalho rígido, que confere muita protecção a quem tem um lugar no quadro e
muito pouca protecção a quem não o tem?
No nosso país instalou-se esta
convicção perigosa: um jovem talentoso que queira singrar na carreira
exclusivamente através do seu mérito, a melhor solução que tem ao seu alcance é
emigrar. Isto é uma tragédia portuguesa.
Não podemos condenar os nossos
filhos ao discurso fatalista de um Portugal que é assim, porque nunca foi de
outra maneira.
O desespero não nasce do erro,
mas do sentimento de que não vale a pena esforçarmo-nos para que as coisas
sejam de outra forma – porque nunca serão.
A falta de esperança e a
desigualdade de oportunidades podem dar origem a uma geração de adultos
desencantados, incapazes de acreditar num país meritocrático.
Esta perda de esperança
aparece depois travestida de lucidez, e rapidamente se transforma numa forma de
cinismo. Achamos que temos de ser pessimistas para sermos lúcidos. Que temos de
ser desesperançados para sermos realistas. Que temos de ser eternamente
desconfiados para não sermos comidos por parvos.
Guardamos os bons sentimentos
para as nossas relações pessoais, onde somos certamente seres encantadores, mas
quando se trata de reflectir sobre o nosso papel enquanto cidadãos, partes de
uma nação e de um tecido social e político comum, colocamos uma mola no nariz e
dizemos que pouco temos a ver com isso, porque os políticos não se recomendam.
Há o “eles” – os políticos, as
instituições, as várias autoridades, muitas das quais (receio bem) se encontram
hoje aqui presentes. E há o “nós” – eu, a minha família, os meus colegas, os
meus amigos.
Entre o “nós” e o “eles” há
uma distância atlântica, com raríssimas pontes pelo meio.
“Eles” não têm nada a ver
connosco. “Nós” não temos nada a ver com eles.
III
O senhor Presidente da
República costuma dizer com frequência que os portugueses, quando querem, são
os melhores do mundo. O senhor Presidente da República que me perdoe o
atrevimento: não há qualquer razão para os portugueses serem melhores do que os
finlandeses, os nepaleses ou os quenianos.
Mas tenho uma boa notícia para
dar: também não precisamos de ser melhores.
Para quem ainda acredita numa
ideia de comunidade, os portugueses são aqueles que estão ao nosso lado. E isso
conta. E conta muito.
Partilhamos uma língua, um
país com uma estabilidade de séculos, sem divisões, e é uma pena que por vezes
pareçamos cansados de nós próprios. Tivemos História a mais; agora temos
História a menos. Passámos da exaltação heróica e primária do nosso passado, no
tempo do Estado Novo, para acabarmos com receio de usar a palavra
“Descobrimentos”. Simplificamos a História de forma infantil.
No século XVI, Luís de Camões
já cantava os seus amores por uma escrava de pele negra – tão bela e tão negra
que até a neve desejava mudar de cor. Para desarrumar os estereótipos, talvez
precisemos de um pouco menos de Lusíadas e de um pouco mais de lírica
camoniana.
Menos exaltação patriótica e
mais paixão por cada ser humano – eis uma fórmula que me parece adequada aos
tempos que vivemos. Sendo já poucos os que acreditam nas grandes narrativas,
continuamos a acreditar nas pessoas que temos ao nosso lado. E esse é o caminho
para a identificação possível dos portugueses com Portugal.
Sozinhos somos ninguém. A
velha pergunta bíblica “acaso sou eu o guarda do meu irmão?” tem uma única
resposta numa sociedade decente: “Sim, és.” Num país algo desencantado, o
grande desafio está em tentar desenvolver um sentimento de pertença que vá além
dos prodígios do futebol.
IV
Quando o senhor Presidente da
República me convidou para presidir a estas cerimónias houve muita gente que
ficou espantada, incluindo eu próprio. Mas com o tempo fui-me afeiçoando à
ideia de que talvez não seja absolutamente necessário ter méritos
extraordinários para estar aqui, e que Portugal precisa cada vez mais de um 10
de Junho feito de pessoas comuns e para pessoas comuns.
Um 10 de Junho que aproxime as
linhas entre o “nós” e o “eles”. Uma festa do português anónimo, da
arraia-miúda, daquelas pessoas que todos os dias fazem mais por este país do
que elas próprias imaginam.
O 10 de Junho do meu avô, que
tinha uma casa de pasto no fundo da rua de Elvas e oferecia um prato de sopa a
quem não tinha dinheiro para pagar uma refeição.
O 10 de Junho dos meus sogros,
que tiveram de fugir de Moçambique em 1975 e reconstruir toda a vida em
Portugal com seis filhos para criar, alguns dos quais ficaram dispersos pela
família até eles voltarem a ter condições para os acolher.
O 10 de Junho das três
mulheres que criaram a minha mulher, uma delas originária de Timor, que
viajaram desde o outro lado do mundo para acolher um bebé nascido em Moçambique
e fazê-lo crescer numa pequena aldeia da Beira Interior.
São histórias de vida
impressionantes.
Portugal não é composto apenas
por instituições longínquas, Parlamentos em Lisboa, políticos distantes de quem
dizemos mal no café.
Portugal somos nós. Sou eu.
São as pessoas que estão sentadas em lugares privilegiados nestas bancadas. São
os militares que desfilam à nossa frente. São os portalegrenses debaixo do sol
de Junho. São as pessoas lá em casa, a ouvir estas palavras.
Todos temos nas nossas
famílias histórias destas, de gente banal envolvida em feitos extraordinários.
Temos o hábito de levantar a
cabeça à procura de grandes exemplos, e nem sempre os encontramos – mas muitas
vezes os melhores exemplos estão ao nosso lado, e alguns deles começam em nós
mesmos.
Sobre cada um de nós recai a
responsabilidade de construir um país do qual nos possamos orgulhar.
Aos políticos que dirigem
Portugal, e representam os seus cidadãos, compete-lhes contribuir para esse
esforço, propondo-nos um caminho inteligível e justo. Os portugueses podem não
ser os melhores do mundo, mas são com certeza capazes de coisas extraordinárias
desde que sintam que estão a fazê-las por um bem maior.
A política não falha apenas
quando conduz o país à bancarrota. A política falha quando deixa o país sem
rumo e permite que se quebre a aliança entre o indivíduo e o cidadão.
Aquilo que melhor distingue as
pessoas não é serem de esquerda ou de direita, mas a firmeza do seu carácter e
a força dos seus princípios. Aquilo que se pede aos políticos, sejam eles de
esquerda ou de direita, é que nos dêem alguma coisa em que acreditar. Que
alimentem um sentimento comum de pertença. Que ofereçam um objectivo claro à
comunidade que lideram.
Nós precisamos de sentir que
contamos para alguma coisa. (Além de pagar impostos.)
Cada português precisa de
sentir que conta, precisa de sentir que os seus gestos não contribuem apenas
para a sua felicidade individual, ou para a felicidade da sua família, mas que
têm um efeito real na sociedade, e podem, à sua medida, servir o país.
É preciso dizer ao velho que
perdeu tudo nos incêndios de Pedrógão – tu contas.
É preciso dizer ao miúdo que
habita na pobreza do Bairro da Jamaica – tu contas.
É preciso dizer ao
cabo-verdiano que trocou a sua terra por Portugal, em busca de um futuro melhor
para os seus filhos – tu contas, e os teus filhos não estão condenados a
passarem o resto das suas vidas a limpar as casas da classe alta de Lisboa ou
do Porto.
É preciso dizer à mãe ou ao
pai que se sacrifica diariamente para que o seu filho possa estudar numa boa
escola – tu contas, o teu esforço não será desperdiçado, e enquanto cidadão
português tens os mesmos direitos e a mesma dignidade que um primeiro-ministro
ou um Presidente.
E se alguma pessoa emproada
vos perguntar pelo vosso currículo, digam-lhe que currículo tem tanto o
académico que decide dedicar a sua vida ao estudo como o pai que decide dedicar
a sua vida aos filhos.
Currículo tem tanto o
cientista que dedica o seu tempo à investigação como o reformado ou o jovem que
dedicam o seu tempo a ajudar os outros.
São diferentes tipos de
currículo, mas são currículo.
E se ainda assim vos
perguntarem “quem é que tu achas que és?”, respondam apenas: “Sou um cidadão
que todos os dias faz a sua parte para que possamos viver num Portugal melhor e
mais justo.”
Isso chega – aliás, não só
chega, como é aquilo que mais falta nos faz.
Muito obrigado. João Miguel Tavares - Portugal
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