I
Para se conhecer a alma do Rio de Janeiro do final
do século XIX e início do XX, é fundamental ler a obra de Machado de Assis
(1839-1908). Mas, com certeza, daqui a um século, para se conhecer a alma de Brasília,
imprescindível será conhecer a obra do escritor João Almino (1950), que acaba
de dar à luz Entre facas, algodão (Rio de Janeiro, Editora Record,
2018), o seu sétimo romance que tem a nova capital federal como um de seus cenários.
Com quase 60 anos de existência, Brasília precisava
de um romancista que a explicasse, expondo sua vulgaridade e os sonhos e
frustrações de seus moradores. E João Almino assumiu-se como seu intérprete,
construindo um painel romanesco contemporâneo que colocou a capital do País no
mapa da prosa literária brasileira, como bem observou o romancista, contista e
ensaísta Cristóvão Tezza na apresentação que escreveu para este livro.
Escrito em forma de diário, este romance conta as
vicissitudes da vida de um advogado, de 70 anos, que, vivendo em Taguatinga,
região administrativa do distrito federal, onde fez a sua vida, separa-se da
mulher e decide reencontrar as suas raízes, retornando a uma pequena fazenda
nas proximidades de Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde passara a infância.
Decidido a plantar algodão e viver dessa atividade, o
retorno ao passado carrega também uma frustração – uma história de amor mal
resolvida e simbolizada por um fio de cabelo guardado há muitos anos numa caixa
de fósforo – e um sentimento de vingança, já que, quando menino, soubera que aquele
que então supunha ser seu pai havia sido assassinado. Volta, então, com a
intenção de acertar contas e honrar o nome do pai.
Naquela pequena fazenda do Riacho Negro, localizada
no imaginário pequeno município de Várzea Pacífica, no interior do Ceará, o
idoso fora o filho da empregada criado junto com os filhos do patrão da casa
grande. E vivera um reprimido amor adolescente pela filha do fazendeiro. Nessa
volta às origens, o advogado chega, porém, à conclusão que o fazendeiro não
teria sido apenas o seu padrinho, mas, provavelmente, o seu próprio pai, que
teria mandado matar o marido de sua mãe, quem se acreditava que fosse o seu
genitor.
II
A exemplo de seus seis romances anteriores, Entre
facas, algodão mostra-se também uma obra em andamento (work in progress),
com final em aberto, sem conclusão, que deixa a cargo do leitor imaginar o que
poderia ter sido – e o que não foi, para se arremedar aqui uma máxima poética
de Manuel Bandeira (1886-1968). Aliás, essa observação é assinalada no pequeno
ensaio à guisa de posfácio escrito pelo ensaísta alemão Hans Ulrich Gumbrecht,
professor de Literatura Comparada que desde 1989 ocupa a cadeira Albert Guérard de Literatura na Universidade
de Stanford, na Califórnia, Estados Unidos, para quem este livro é a obra-prima
de João Almino até agora.
De fato, como diz, segue os passos de outros grandes
romances da literatura universal, como Ulisses, de James Joyce
(1882-1941), Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust (1871-1922), O
homem sem qualidades, de Robert Musil (1880-1941), e Grande sertão:
veredas, de João Guimarães Rosa (1908-1967), que evocam e reconstituem, “na
forma da ficção, mundos específicos em seus lugares físicos e específicos”.
Ou como o próprio autor procurou explicar: “Tentei
fugir ao estereótipo de uma viagem de regresso na memória, minha ideia não foi
de que houvesse um regresso ao passado, porque acho que a viagem é apenas de
ida, ela vai apresentando novas surpresas ao personagem e não existe o regresso
ao passado”.
É preciso lembrar ainda que, a exemplo de seu
romance anterior, este é também extremamente datado, ou seja, daqui a cem anos
quem o vier a ler saberá que se trata de um enredo passado na segunda década do
século XXI, pois o “diálogo de surdos” que se acompanha ocorre através do e-mail,
do WhatsApp e do Facebook, meios de comunicação que, provavelmente, daqui a dez
anos, já terão sido substituídos por outros mais avançados, ainda que o País
venha a continuar imerso no analfabetismo funcional das massas, na violência
urbana, na falta de saneamento básico e na miséria social de Norte a Sul entre
as grandes e as pequenas cidades, essa estranha modernidade à brasileira.
Escrito num estilo memorialístico que faz lembrar o
de Machado de Assis e, ao mesmo tempo, enxuto, de frases diretas, sem enxúndias
literárias, que recorda o de Graciliano Ramos (1892-1953), este romance de
“secura e esperança teimosa”, como o próprio autor o definiu, faz pensar em
quão emaranhados e complexos são os sentimentos humanos que tornam extremamente
tênue a linha divisória entre o amor e o ódio.
III
Nascido em Mossoró, João Almino (1950), diplomata, é
embaixador do Brasil no Equador desde outubro de 2018. Doutorado em Paris, sob
a orientação do filósofo e historiador da Filosofia Claude Lefort (1924-2010), foi
professor na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), Universidade
Nacional de Brasília (UnB), no Instituto Rio Branco e nas universidades de Berkeley,
Stanford e Chicago, nos Estados Unidos. É membro da Academia Brasileira de
Letras (ABL) desde 2017.
Como romancista, é hoje reconhecido pela crítica
como um dos nomes mais importantes da Literatura Brasileira. Seu romance Ideias
para onde passar o fim do mundo (1987) foi indicado ao Prêmio Jabuti e
ganhou o Prêmio do Instituto Nacional do Livro (INL) e o Prêmio Candango de
Literatura, enquanto As cinco estações do amor (2001) conquistou o
Prêmio Casa de las Américas de 2003. Já O livro das emoções (2008) foi
indicado ao 7º Prêmio Portugal Telecom e finalista do 6º Prêmio Passo Fundo
Zaffari & Bourbon de 2009.
Outro romance, Cidade livre (2010), foi vencedor
do Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de 2011 de melhor romance publicado
no Brasil entre 2009 e 2011 e finalista do Prêmio Jabuti e do Prêmio Portugal
Telecom de 2011, enquanto Enigmas da primavera (2015) foi semifinalista
do Prêmio Oceanos e finalista do Prêmio Rio de Literatura de 2016 e do Prêmio
São Paulo de Literatura de 2016, segundo colocado, de livro brasileiro publicado
no exterior, pela tradução para o inglês. É autor também do romance Samba-enredo
(1994). Alguns de seus romances foram publicados na Argentina, Espanha, Estados
Unidos, França, Itália, México e em outros países.
Seus escritos de história e filosofia política são
referência para os estudiosos do autoritarismo e da democracia. Entre estes,
incluem-se Os democratas autoritários (1980), A idade do presente
(1985), Era uma vez uma Constituinte (1985) e O segredo e a informação
(1986). É também autor de Naturezas mortas – a Filosofia política do ecologismo
(2004), de Brasil-EUA: balanço poético (1996), Escrita em
contraponto (2008), O diabrete angélico e o pavão: enredo e amor
possíveis em Brás Cubas (2009), 500 Anos de Utopia (2017) e Dois
ensaios sobre Utopia (2017). Publicou ainda Literatura Brasileira e
Portuguesa Ano 2000, organizado com o professor Arnaldo Saraiva, da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2000), e Rio Branco, a América
do Sul e modernização do Brasil, organizado com Carlos Henrique Cardim (2002).
Adelto Gonçalves - Brasil
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Entre facas,
algodão, de João Almino, com apresentação de Cristovão Tezza e
posfácio de Hans Ulrich Gumbrecht. Rio de Janeiro: Editora Record, 192 páginas,
R$ 39,90, 2018. E-mail: mdireto@record.com.br
Site: www.record.com.br
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Adelto Gonçalves
é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
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