Uma equipa de médicos e
enfermeiros portugueses tem vindo a realizar missões humanitárias em São Tomé e
Príncipe há oito anos. Objectivo: ajudar aquela população a ser
auto-sustentável ao nível dos cuidados de saúde e investigar a prevalência de
surdez nas crianças.
Foi em Fevereiro de 2011 que
dois otorrinolaringologistas, dois enfermeiros e um audiologista portugueses
rumaram a São Tomé e Príncipe naquela que seria a primeira de muitas outras
expedições, no âmbito do projecto Saúde
para Todos – Especialidades, desenvolvido pelo Instituto Marquês de Valle
Flôr (IMVF).
Os médicos previam encontrar
vários casos de otites médias crónicas, ou seja, infecções persistentes do
ouvido médio. Porém, depois de um primeiro contacto com a população, a equipa
deu conta de um elevado número de surdez em crianças. Das 640 crianças
observadas, 34% são surdas (13% das quais sofrem de surdez profunda) e 22%
ouvem apenas de um ouvido (consideradas normouvintes), sendo que, de acordo com
a Organização Mundial da Saúde (OMS), um indivíduo é surdo se ambos os ouvidos
tiverem surdez.
Regra geral, a surdez em
crianças deriva de infecções e, como tal, é passível de ser tratada. No
entanto, os médicos aperceberam-se de que muitos dos casos correspondiam a
surdezes irreversíveis, pelo que decidiram dedicar-se ao estudo das possíveis
causas desta patologia naquela população.
“Aquilo que verificámos na
primeira missão é que, ao contrário do que estávamos à espera, que eram as tais
otites médias crónicas, encontrámos muita surdez, mas com ouvidos normais, ou
seja, não havia infecções. Tínhamos sobretudo a parte da surdez irreversível
sem possibilidade de recuperação”, explica ao “Público” Cristina Caroça,
investigadora da Universidade Nova de Lisboa e médica otorrino que liderou a
equipa no terreno.
Desde a quarta missão até à
penúltima, a 26.ª, mais de metade das crianças observadas, com menos de 15
anos, revelaram uma surdez com perda auditiva em pelo menos um dos ouvidos ou
nos dois. “A grande maioria das crianças [mais de 50%] tem os dois ouvidos
surdos ou uma surdez unilateral”, nota Cristina Caroça. No total, considerando
a população toda da amostra (incluindo adultos e crianças), 32% dos indivíduos
apresentam surdez bilateral neurossensorial, um tipo de surdez irreversível.
“Sabemos que a surdez
condiciona muito o desenvolvimento socioeconómico de um país, porque um surdo
não se integra tão facilmente numa sociedade ouvinte, não trabalha, fica
isolado e não tem autonomia. Percebemos que, naquela população, este era um
problema de saúde pública”, acrescenta a investigadora, cuja tese de
doutoramento incidiu sobre a surdez em São Tomé e Príncipe.
Nas crianças, a “surdez
apresenta um risco aumentado de baixa aprendizagem, abuso físico, social,
emocional e sexual, podendo mesmo levar à morte”, escrevem os autores num
artigo científico que resultou desta investigação, publicado em 2016 na Revista
Portuguesa de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-facial.
Segundo os autores, em 2016 a
OMS estimava que cerca de 5% da população mundial (360 milhões de pessoas)
apresentava incapacidade auditiva, com elevada prevalência nos países em
desenvolvimento da Ásia e África subsariana. Em Portugal, estima-se que existam
mais de 26 mil surdos.
Quais
as causas?
De forma a perceber quais os
factores de risco que poderiam estar na origem da prevalência de surdez, os
investigadores começaram a estudar as principais doenças que afectam a
população de São Tomé e Príncipe.
Com base noutros estudos e nos
dados recolhidos, os especialistas chegaram à conclusão de que a surdez nas
crianças pode estar associada à ototoxicidade e a uma dose de medicação para a
malária desadequada. “Aquilo que verificámos é que a surdez nas crianças
associada aos antimaláricos é maior porque, muitas vezes, essas crianças fazem
a medicação sem ser adequada ao peso”, explica ao “Público” Cristina Caroça.
Por outro lado, quando
avaliaram a questão das vacinas e das doenças de saúde pública, os
investigadores decidiram averiguar se a população estaria exposta ao vírus da
rubéola (tendo em conta que a vacina não era administrada até ao final de
2017). Segundo a investigadora, quando uma mulher grávida é exposta ao vírus da
rubéola, os filhos têm 60% de probabilidade de desencadear uma surdez neonatal.
À semelhança do que já tinha
sido verificado em estudos anteriores, os dados revelaram uma possível ligação
entre a rubéola e a surdez em crianças. “A relação da infecção pelo vírus da
rubéola e a surdez é conhecida desde há longa data no âmbito da comunidade
científica. Em São Tomé não se tinha conhecimento de diagnóstico da rubéola na
comunidade, daí que o facto de se provar que existia rubéola [cerca de 80% da população
abaixo dos 35 anos apresentava imunidade para esta infecção] levou à emergência
da implementação da vacina”, explica a investigadora.
Outros dos factores de risco
estudados dizem respeito às hemoglobinopatias (um conjunto de doenças de origem
genética que podem ter implicações nos glóbulos vermelhos e causar anemia), que
são prevalentes naquela região subsariana, e ainda ao défice de
glucose-6-fosfato-desidrogenase (G6PD), que “pode levar a consequências
nefastas ao nível do sistema nervoso central logo nos primeiros dias de vida” e
que está associado à icterícia neonatal grave e consequente surdez
neurossensorial neonatal e alterações cognitivas, explica ainda a
investigadora.
Os especialistas avaliaram
também possíveis causas da surdez ao nível da influência genética de outros
povos (oriundos de países como Portugal e países nórdicos) e da
consanguinidade, mas os resultados não se revelaram significantes.
Deste trabalho no terreno
surgiram vários artigos científicos, publicados em revistas nacionais e
internacionais (como a BMC Public Health
e a International Journal of Medical Research & Health Sciences), e um
recente prémio no âmbito do programa Projectos
de Investigação em Medicina, promovido pelo Consórcio Tagus Tank (parceria
entre o Grupo José Mello Saúde e a Universidade Nova de Lisboa), que valeu um
financiamento de 20 mil euros para continuar a investigação.
Uma
componente humana
A última missão, já em Janeiro
deste ano, foi já a 27.ª em São Tomé e Príncipe e a equipa garante que tem
vindo a aumentar o seu espectro de acção. Cada missão dura uma semana e,
anualmente, são realizadas entre três a quatro missões. “Ao longo destas 27
missões as equipas foram aumentando e fomos orientando mais com vista aos
problemas que fomos encontrando”, conta Cristina Caroça. Em 2018, foi a vez de o
Presidente da República português, Marcelo Rebelo de Sousa, ter conhecido de
visita a este país algumas das pessoas por trás desta iniciativa.
Além das intervenções
cirúrgicas e consultas médicas nos hospitais e centros e saúde, assim como
rastreios nas escolas, a equipa de médicos portugueses tem vindo a pôr em
prática um conjunto de medidas para ajudar a comunidade são-tomense. Até
porque, garante a investigadora, estas missões não têm apenas um fim
investigativo.
“Este projecto nasceu
sobretudo pela componente humana. Nós só podemos ajudar se os ensinarmos, para
eles fazerem as coisas, porque não podemos estar sempre ali ao lado. Temos de
lhes dar instrumentos, para que se consigam desembaraçar”, explica Cristina
Caroça, que salienta ainda o contacto com a população como um dos pontos-chave.
A formação de médicos e
enfermeiros locais na especialidade de otorrinolaringologia tem sido “o passo
mais importante”, nota a investigadora, além do apoio que prestam à comunidade
através da telemedicina (que permite aos médicos portugueses estarem
permanentemente em contacto) e da educação para a saúde com palestras, um
workshop para enfermeiros sobre cuidados pré e pós-operatórios e jornadas
anuais.
“Há uma necessidade de deixar
algum legado e permitir que os médicos de São Tomé consigam ser
auto-suficientes”, sublinha Cristina Caroça. Neste momento, existem dois
médicos são-tomenses em formação para que, no futuro, sejam capazes de
“realizar intervenções na ilha com segurança”.
O balanço é positivo, com um
maior envolvimento dos profissionais de saúde locais e um crescimento
favorável. “Nota-se uma evolução grande em termos de doentes com infecções dos
ouvidos que estão cada vez menos activas e, por outro lado, os médicos estão
mais conscientes da problemática e dos cuidados que devem ter”, garante a
médica.
Além da aplicação da vacina da
rubéola e da actividade cirúrgica, a investigadora destaca algumas medidas de
sucesso postas em prática nos últimos anos, como o diagnóstico da própria
surdez através de exames de audição, as sessões de terapia da fala (não só para
a melhoria da voz, mas também para estimular a oralidade) e a adaptação de
próteses auditivas a crianças e adultos jovens. Também a criação de uma língua
gestual própria de São Tomé e Príncipe, em parceria com a Fundação Calouste
Gulbenkian, permitiu uma maior integração dos surdos na comunidade e a criação
de “um meio de contacto” entre eles, explica Cristina Caroça.
Por fim, a médica destaca a
implementação do rastreio auditivo neonatal que teve uma cobertura de 16% no
ano passado (num universo de cinco mil nascimentos), “de forma a detectar a
surdez mais precocemente para também adaptar a criança à situação e integrá-la
na sociedade”, tendo em conta as suas necessidades educativas e o estigma
social.
Garante a investigadora que as
missões irão continuar no futuro e o objectivo passa também pelo estudo do
impacto que outras doenças como, por exemplo, a toxoplasmose têm naquela
população. “Tudo medidas para evitar que haja um flagelo destas patologias que
afectam o desenvolvimento das crianças”, conclui Cristina Caroça. E se dúvidas
restassem, diz a médica, há já consultas marcadas para 2030. Filipa Mendes – Portugal in "Público"
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