I
Como
tantas manifestações sociais registradas na História do Brasil que sofreram um certo
abrandamento ao longo dos tempos, também o antissemitismo foi amenizado e
começa agora a passar por um revisionismo graças a pesquisas nos arquivos
brasileiros e portugueses, que deixam claro que a Inquisição, por intermédio de
seus comissários, familiares, padres e bispos, perseguiu, torturou e queimou muitos
cristãos-novos, especialmente os mais abastados. É o que mostra a historiadora
Neusa Fernandes em A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII (Rio
de Janeiro, Mauad Editora, 2014) e A
Inquisição em Minas Gerais: processos
singulares (Rio de Janeiro, Mauad Editora, 2016).
Em
suas pesquisas, a professora valeu-se principalmente dos processos
inquisitoriais que estão no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, que
revelam que os cristãos-novos alcançados pelas malhas da Inquisição, na
maioria, estavam envolvidos no comércio do ouro e diamantes e de escravos,
ainda que se dedicassem a outras práticas comerciais. Através das redes comerciais espalhadas por
Portugal, Brasil e várias regiões da África, esses cristãos-novos alcançaram
notoriedade social e até mesmo poder em suas comunidades, o que lhes garantia a
segurança necessária para que continuassem a desenvolver as práticas judaicas,
de que nunca se desvinculariam.
Mas,
como mostra a historiadora, essas práticas só começaram a incomodar as classes
poderosas a partir do momento em que as atividades comerciais desenvolvidas por
esses cristãos-novos passaram a subverter o projeto metropolitano que queria a
colônia voltada para o comércio exterior, ou seja, para o fornecimento de
matérias-primas para os grandes comerciantes de Portugal, que, como se sabe,
eram também dependentes daqueles círculos europeus mais fortes, especialmente
ingleses, holandeses, franceses e italianos. Aliás, como registrou em 1755, à época
do terremoto, o insuspeito ministro Sebastião José de Carvalho e Melo
(1699-1782), o marquês de Pombal, no século XVIII, “Portugal estava sem poder e
sem força, e todos os seus movimentos eram regulados pelos desejos da
Inglaterra” (vol. 2, pag.239).
À
medida, porém, que a colônia americana se expandia, esse esquema começava a
sair fora do controle metropolitano e europeu, especialmente em Minas Gerais,
onde a descoberta do ouro e outras riquezas levou à formação em pouco tempo de
uma sociedade urbana e mercantilista, que atraindo não só portugueses do Reino,
formou um comércio interno e intercolonial, pois os comerciantes tinham também
ligações com Angola, Moçambique e demais colônias portuguesas.
Como
diz a autora em suas conclusões, esse mercado criava seus próprios elos e
hierarquias, que se confrontavam com o poder de uma metrópole um tanto mambembe
que lutava para manter sua própria autonomia na Europa, sempre preocupada com o
possível avanço da vizinha Espanha em seu território, a exemplo do que já
ocorrera na Galiza. E que precisava da Inglaterra para manter sua alegada
independência.
II
De
fato, como corria risco o seu esquema de poder, a metrópole não encontrou outra
saída que não fosse recorrer à Inquisição, que já tinha grande experiência na
prática da repressão na Península Ibérica. E a instituição foi usada para
perseguir aqueles que praticavam não só o descaminho do ouro e a sonegação
fiscal como aqueles que faziam a ponte América-Europa, enviando a Londres ouro
e pedras preciosas, como diamantes, esmeraldas e topázios, sem a intermediação
dos grandes comerciantes da Metrópole. Na maioria, essas pessoas eram
cristãos-novos. Ou melhor: cerca de 60% dos comerciantes na capitania de Minas
Gerais eram cristãos-novos.
Um
deles, Joseph da Costa, dedicava-se quase exclusivamente ao comércio negreiro
em Angola. Obviamente, essa atividade era quase sempre clandestina e praticada
de modo particular, como observa a historiadora. Portanto, os escravos passavam
pela alfândega sem pagar os direitos aduaneiros, quase sempre com a
complacência do juiz da alfândega e demais autoridades, que eram bastante
susceptíveis ao suborno, quando não eram os próprios responsáveis pelo tráfico
negreiro.
Aliás,
embora pouco se diga isto nos livros de História do Brasil, a sonegação fiscal sempre
esteve por trás dos planos que levaram à conjuração mineira de 1789, pois, se
colocada na rua, a sublevação teria por objetivo também perdoar as dívidas dos grossos devedores, que eram exatamente
aqueles que, como arrematantes de contratos de entradas e outros, recolhiam os
impostos, sem repassá-los para a Coroa, obviamente, depois de “molhar as mãos”
de governadores e capitais-generais, ouvidores e outros representantes da alta
burocracia colonial para que fizessem vistas grossas.
Como
observa a professora Neusa Fernandes, além de escravos, os cristãos-novos
faziam a importação de todos os produtos necessários à população, desde gêneros
de primeira necessidade até artigos de luxo. Não só eram os “donos do comércio”
como também rancheiros, lavradores, vendedores ambulantes, ourives e
fazendeiros. Naturalmente, também levavam suas crenças às casas onde se
hospedavam ou comerciavam. De Lisboa, havia também cristãos-novos que
comandavam essa grande rede de negociações.
Como
a Coroa começava a se sentir lesada por essa prática, o governo metropolitano,
ao perceber a presença maciça de cristãos-novos em Minas Gerais e outras
capitanias, tratou de pressionar a Inquisição para que barrasse a ascensão
dessa nova classe de mercadores na colônia, a burguesia cristã-nova que nascia
do comércio, do dinheiro e do crédito.
Segundo
a pesquisa empreendida pela professora Neusa Fernandes, em Minas Gerais, 11
cristãos-novos foram condenados à morte, entre centenas que foram presos pelo
Santo Ofício. Na Bahia, teriam sido 160 os presos; no Rio de Janeiro, menos de
400; na Paraíba, 49, dos quais 28 mulheres – desses, dois foram condenados à
pena capital e oito morreram nos cárceres.
Na
maioria, os prisioneiros eram condenados por crime de judaísmo, mas havia
aqueles que o eram por bruxaria, sodomia, bigamia, sacrilégio, idolatria,
blasfêmia, superstições e outros. As penas variavam entre o garrote, a fogueira
e o banimento, que atuava como uma forma de purificação dos pecados. Segundo a
pesquisa, os banimentos para a África e para o Brasil eram as penas mais
comuns, abrangendo 53% dos casos. Desses condenados, 60% eram cristãos-novos e
a maioria formada por mulheres.
Como
ressalta no prefácio o historiador Nachman Falbel, professor titular de
História Medieval na Universidade de São Paulo (USP), este trabalho constitui
uma nova e importante contribuição da autora aos estudos sobre os
cristãos-novos. De fato, depois de infatigáveis pesquisas, a professora
levantou 903 nomes de cristãos-novos que atuaram e passaram por Minas Gerais,
“contrariando todas as expectativas e suposições dos estudiosos”. O que mostra,
desde já, a importância do segundo volume (A
Inquisição em Minas Gerais: processos singulares), que vem complementar as
volumosas pesquisas que formam o primeiro volume, cuja primeira edição saiu à
época da comemoração dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil.
III
Neusa
Fernandes, nascida no Rio de Janeiro, tem graduação em Pedagogia pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 1960, e em Museologia pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ), 1968, além de mestrado
em História Social, 1999, e doutorado em História Social pela USP, 2002, e
pós-doutorado pela UERJ, 2009. É pós-graduada em História pela Universidade de
Madri.
Professora
de História do Estado do Rio de Janeiro, título conquistado por meio de
concurso público, no qual obteve o primeiro lugar, atuou em várias
universidades cariocas. Foi pró-reitora de Pesquisa na Universidade Severino
Sombra, em Vassouras, e diretora do Museu da República, Museu do Primeiro
Reinado, Museu da Cidade e outras instituições. Pesquisadora do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), presta serviços ao
Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação. É vice-presidente do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro (IHGRJ) e membro do
Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras (IHGV).
É
autora de 14 livros de História e de Museologia, entre os quais Eufrásia e Nabuco (Rio de Janeiro, Mauad, 2012), Efemérides Cariocas (Rio de Janeiro, 2016),
em co-autoria com Olinio Gomes P. Coelho (Rio de Janeiro, 2016), e Dicionário Histórico do Vale do Paraíba
Fluminense, em co-autoria com Irenilda Cavalcanti e Roselene de Cássia
Coelho Martins (Vassouras, IHGV/Nova Imprensa Oficial do Estado do Rio de
Janeiro, 2016). Adelto Gonçalves -
Brasil
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Inquisição
em Minas Gerais no século XVIII, vol. I, 3ª ed. revista
e ampliada, 280 p., 2014; e Inquisição em Minas Gerais: processos
singulares,
vol. II, 1ª ed., 296 p., 2016, de Neusa Fernandes. Rio de Janeiro: Mauad Editora.
Site: www.mauad.com.br
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Adelto Gonçalves
é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela USP e autor de Gonzaga,
um Poeta do Iluminismo (Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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