Queiramos ou não admiti-lo,
somos uma Nação fundada sobre a escravidão, e não apenas dos povos africanos,
oficialmente extinta há pouco mais de cem anos, mas também dos povos que aqui
viviam antes da chegada da esquadra de Cabral, em 1500. De fato, não estamos
sozinhos num concerto mundial em que a violência tem origem nas diferenças não
apenas de cor da pele como também de crença, de origem, de convicção política e
tantas outras. Mas sofremos especialmente as consequências de um feixe de
misérias ocasionadas pelo tratamento de seres humanos como bestas durante
centenas de anos. Ainda hoje, há os escravos com carteira assinada, os escravos
sem segurança, sem garantias, os escravos humilhados pela necessidade absoluta.
Aquele que domina e escraviza
entende o outro como inferior, criatura vinculada ao conceito de utilidade,
seja para realizar as tarefas que o dominador não deseja ou não está apto a
realizar, seja para dar prazer ou simplesmente alimentar a vaidade de deter a
posse de outro ser humano – ainda que, no mais das vezes, tal domínio venha
justificado pela negação da humanidade do escravizado. Assim, a escravidão
nasce da diferença que se autoriza a suprimir a dignidade ao outro, na medida
em lhe retira não apenas a liberdade, mas a autodeterminação.
A necessidade de levar a
civilização ou a salvação a povos considerados inferiores muitas vezes serviu
de pretexto para escravizá-los, com base numa concepção que se traduz pela
máxima: “minhas ideias e meus costumes são melhores e mais verdadeiros que o do
outro e, por isso, é preciso impô-los para o seu próprio bem”. No caso dos
portugueses que chegaram às terras brasileiras, a ideia de civilização entrou
em choque com certos costumes impeditivos da sua própria existência, casos do
incesto, do homicídio e da antropofagia. Por isso, a existência do sacrifício
humano e do canibalismo acabaram suscitando não apenas o repúdio e a proibição,
mas também a imposição de outras atitudes igualmente contrárias à convivência, como
o genocídio e a escravização.
Ainda que a antropofagia
praticada pelos povos indígenas em tempos coloniais seja o eixo temático do
precioso romance “A Noite é dos Pássaros”, do escritor paraense Nicodemos Sena,
seu enfoque é outro. Trata-se – nas palavras do próprio autor – de uma
experiência que parte da história para avançar pela literatura, buscando a
atmosfera dos mitos indígenas e “despindo-os da roupagem imposta pelo
colonizador”, de modo a construir uma narrativa que mergulha firmemente “na penumbra
dos sonhos”. O relato aborda as peripécias do naturalista português Alexandre
Rodrigo Ferreira, feito prisioneiro dos tupinambás em 1751. Conforme o costume,
o cativo recebe o tratamento de hóspede, enquanto aguarda o momento em que será
morto e devorado, como forma de vingança pelos inúmeros membros da tribo mortos
pelos portugueses. Seus dias se passam em angustiosa espera, lendo e relendo um
desgastado volume que narra as aventuras do mercenário alemão Hans Staden, que
viveu situação semelhante à sua, sobreviveu ao sacrifício e retornou ao país
natal para redigir as memórias do cativeiro. Para amenizar sua angústia,
Alexandre conta com uma importante aliada na figura da jovem Potira, filha do
chefe tupinambá, que por ele se apaixona e promete salvá-lo do ignóbil destino
que o espera.
A pesquisa extensa realizada
pelo autor, os enxertos da língua tupi nas falas dos personagens, a detalhada
descrição da vida na aldeia, estabelecem um conjunto rico e verossímil, que
foge do meramente exótico ao se apoiar a todo instante nas inserções da
mitologia indígena no enredo. A beleza da poesia tupi, liberada do exotismo
romântico, mas em diálogo reconhecido com obras fundamentais da nossa
literatura, desde “Caramuru”, passando por “I-Juca Pirama”, até chegar aos modernos
“Cobra Norato” e “Macunaíma”, transforma “A Noite é dos Pássaros” num exercício
original e virtuoso, no qual História e mito, fantasia e registro fiel do real
e a força da linguagem estão a serviço de uma narrativa de amor e de costumes.
E, como se não bastasse, serve ainda ao propósito de suscitar interessantes
reflexões acerca do verdadeiro significado da cultura em sua ampla diversidade.
Difícil não enxergar na
revoada final dos pássaros uma espécie de polifonia de cores e significados
dentro de uma suntuosa sinfonia. Edmar Monteiro Filho - Brasil
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SENA, Nicodemos. A Noite é dos Pássaros. Belém PA: CEJUP,
2003, 136p. edmont@uol.com.br
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EDMAR MONTEIRO FILHO escreve e publica desde 1980. Vencedor
dos prêmios Guimarães Rosa, Cruz e Souza, Cidade de Belo Horizonte e Luiz
Vilela e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Publicou dez livros,
entre prosa e poesia. Atualmente é doutorando em Teoria e História Literária
pela UNICAMP.
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