I
Fazer
uma leitura teológica da poesia de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), autor consagrado
pelo poema dramático “Morte e vida severina”, foi a que se propôs o jornalista,
pesquisador e professor Waldecy Tenório em sua tese de doutoramento “A
bailadora andaluza: a lucidez, a esperança e o sagrado na poesia de João
Cabral”, defendida em 1995 na Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo
(USP), sob a orientação do professor Franklin Leopoldo e Silva.
O
ensaio foi publicado no ano seguinte pela Ateliê Editorial, de São Paulo, com o
título A bailadora andaluza: a explosão
do sagrado na poesia de João Cabral, com prefácio do professor João
Alexandre Barbosa (1937-2006) e, se vivêssemos num país menos inculto,
certamente, já teria tido várias reedições. Mas, hoje, talvez por essa mesma
lamentável razão, ainda se pode adquirir pela Internet um exemplar da primeira
edição por módico preço.
Foi
a partir daquele poema, escrito de 1956, um auto de Natal que persegue a
tradição dos autos medievais e faz uso da redondilha, levado ao palco do Teatro
da Universidade Católica de São Paulo (Tuca), em 1966, e musicado por Chico
Buarque de Holanda, ao tempo da ditadura militar (1964-1985), que Tenório
empreendeu essa viagem em busca da
transcendência da poesia de João Cabral, autor que sempre se apresentou como
ateu convicto. Como se sabe, o poema narra a trajetória de um retirante, que
para livrar-se de uma vida de privações no interior, ruma para a capital. Na
cidade grande, depara-se com uma vida de dificuldades e miséria, como é ainda a
de milhões de brasileiros nesta segunda década do século XXI.
Buscar
o sagrado na poesia de quem se diz ateu e a relação entre literatura e teologia
sempre foi tema obsessivo para Tenório, como mostra o seu último livro, Escritores, gatos e teologia (Ateliê,
2014), em que sua pesquisa se abre para outros autores, quase todos também
ateus ou agnósticos, como Samuel Beckett (1906-1989), os Fiódor Dostoievski
(1821-1881), James Joyce (1882-1941), Agostinho de Hipona (354d.C-430d.C), mais
conhecido como Santo Agostinho, Dante Alighieri (1265-1321), Teilhard de
Chardin (1881-1955), Marcel Proust (1871-1922) e os brasileiros Guimarães Rosa
(1908-1967), Manuel Bandeira (1886-1968), Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987), Hilda Hilst (1930-2004) e Adélia Prado. Esses autores, em seus
escritos, deixaram perguntas pelo sentido da vida que, no final das contas,
encaminham para a teologia, como conclui Tenório, ao citar Chesterton
(1874-1936), para quem “Deus também tem seu momento de ateísmo”.
II
No
prólogo deste livro, o ensaísta diz que não quer que o chamem de astrônomo nem
de teólogo, embora como professor sempre tenha procurado corromper com sangue
novo a anemia religiosa de muitos de seus alunos. Portanto, raríssimos autores
teriam sido capazes de levar adiante esta viagem ao âmago da obra poética de
João Cabral, até porque “a ligação entre o teológico e o literário é de sabor
bíblico”, como diz o próprio ensaísta, citando o profeta Ezequiel (2,8-10 e 3,
1-3). Sem contar que é dono de um texto irrepreensível, burilado anos a fio nas
redações de periódicos, que o faz um entalhador da palavra, assim como João
Cabral foi um pedreiro do verso, que construía “o seu poema palavra por
palavra, pedra por pedra, como um artesão”.
Como
João Cabral, Tenório desenvolve com raro talento o trabalho de artesão da
palavra, conjuminando a análise literária com excertos da peça estudada,
fazendo, muitas vezes, com que a frase seja concluída por parte da poesia, como
se uma tivesse sido feita para a outra. É o que se pode ver nas considerações
sobre o poema “Tecendo a manhã” em que o ensaísta constata a profunda
identificação do filho do senhor de engenho com o povo severino, os “cassacos
do eito”, ou seja, os trabalhadores da roça, ao incentivar os menos favorecidos
a desafiar a status quo. “É a poesia
desafiando a “ordem”, ampliando o “espaço mágico” dos cassacos, dando-lhes a
consciência (como também está em Paulo Freire) de que juntos poderão enfrentar
o gavião e outras rapinas. Por isso, ela também ensina:
Um galo sozinho não
tece uma manhã:
ele precisará sempre de
outros galos.
De um que apanhe esse
grito que ele
e o lance a outro; de
um outro galo
que apanhe o grito de
um galo antes
e o lance a outro; e de
outros galos
que com muitos outros
galos se cruzem
os fios de sol de seus
gritos de galo,
para que a manhã, desde
uma teia tênue,
se vá tecendo, entre
todos os galos”. (pág.140)
Para
Tenório, aqui nas palavras do poema está o sentido da poesia de João Cabral,
que seria de uma lucidez que denuncia o “gavião e outras rapinas”, ou seja, a
opressão. Para o ensaísta, essa lucidez ensina a tessitura da manhã: a
esperança. E, portanto, a poesia de João Cabral seria carregada de um
sentimento evangélico inconsciente.
A
mesma perspicácia se vê quando o ensaísta analisa o poema que dá título ao seu
trabalho e observa que a relação entre inspiração e trabalho na poesia de João
Cabral resolve-se dialeticamente na dança. Como se sabe, o poema descreve o
trabalho da bailadora no palco, como se a artista fosse a própria poesia: “Quando está taconeando / a cabeça, atenta,
inclina, / como se buscasse ouvir / alguma voz indistinta. / Há nessa atenção
curvada / muito de telegrafista, / atento para não perder / a mensagem
transmitida (...)”. Para Tenório, porém, a dança da bailadora
“desmaterializa a arte, aproxima o visível do invisível e ela já não sabe de
onde vem a mensagem, se do fundo do tablado ou de sua vida, sabe que “já não cabe duvidar”.
III
João
Cabral de Melo Neto, nascido na cidade do Recife, teve uma infância vivida
entre engenhos da família em São Lourenço da Mata e de Moreno, no interior de
Pernambuco. Membro da elite pernambucana, era irmão do historiador Evaldo
Cabral de Melo e primo do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre
(1900-1987).
Aos
dez anos de idade, com a família de regresso ao Recife, ingressou no Colégio Marista,
onde permaneceu até concluir o curso secundário. Em 1938, frequentou o Café
Lafayette, ponto de encontro de intelectuais que residiam no Recife. Dois anos
depois, a família transferiu-se para o Rio de Janeiro, mas a mudança definitiva
só foi realizada em fins de 1942, ano em que publicaria o seu primeiro livro de
poemas, Pedra do sono.
Depois
de ter sido funcionário do Departamento Administrativo do Serviço Público
(Dasp), em 1945, foi aprovado em concurso para diplomata. No Ministério das
Relações Exteriores, iniciou uma larga peregrinação por diversas cidades, como Barcelona,
Londres, Sevilha, Marselha, Genebra, Berna, Assunção, Dacar e outras. Em 1984, foi
designado para cônsul-geral na cidade do Porto. Em 1987, voltou a residir no
Rio de Janeiro. Eleito membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), tomou
posse em 6 de maio de 1969. Em 1990, aposentou-se da carreira de diplomata.
De
sua obra poética, destacam-se os seguintes títulos: Pedra do sono (1942); O engenheiro
(1945); O cão sem plumas (1950); O rio, (1954); Quaderna (1960); Poemas
escolhidos (1963); A educação pela
pedra (1966); Morte e vida severina e
outros poemas em voz alta (1966); Museu
de tudo (1975); A escola das facas
(1980); Agrestes (1985); Auto
do frade (1986); Crime na calle
Relator (1987); e Sevilla andando
(1989). Em prosa, publicou o livro de pesquisa histórica O Brasil no Arquivo das Índias de Sevilha, editado em 1966 pelo
Ministério das Relações Exteriores, um ensaio sobre o pintor catalão Joan Miró
(1893-1993), publicado em 1952, e Considerações
sobre o poeta dormindo, tese
apresentada ao Congresso de Poesia do Recife, em 1941. A Editora Nova Fronteira,
do Rio de Janeiro, publicou em 1994 sua Obra
completa.
IV
Waldecy
Tenório, nascido em Palmares-PE, estudou Humanidades no Seminário de Olinda,
graduou-se em Letras Clássicas e fez doutorado em Filosofia na USP. Foi professor
no Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião da Pontifícia
Universidade Católica (PUC), de São Paulo, e assessor do educador, pedagogo e
filósofo Paulo Freire (1921-1997) na Secretaria de Educação de São Paulo.
É
autor também de O Amor do herege: resposta
às Confissões de Santo Agostinho (Paulinas, 1986) e João Alexandre Barbosa: o
leitor insone (Edusp, 2007), em co-autoria com Plínio Martins Filho
(organizadores). Pesquisador e membro do conselho científico da revista da
Associação Latino-Americana de Literatura e Teologia, foi pesquisador do
Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi redator e editor de várias seções na
redação de O Estado de S. Paulo e,
mais tarde, editor-adjunto do suplemento Cultura
deste jornal, além de colaborador da Abril Cultural e da revista Realidade e coordenador de projetos da
Fundação Roberto Marinho. Adelto
Gonçalves - Brasil
____________________________________
A bailadora
andaluza: a explosão do sagrado na poesia de João Cabral, de Waldecy
Tenório. São Paulo: Ateliê Editorial/Fapesp, 178 páginas, 1996. E- mail: atelie@atelie.com.br
Site: www.atelie.com.br
_____________________________________________________
Adelto Gonçalves
é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela USP e autor de Gonzaga,
um Poeta do Iluminismo (Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra
Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
Sem comentários:
Enviar um comentário