Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

África e o quarto mar



África, era o nome de uma província romana, cuja sede era Cartago.

Talvez seja esta a primeira referência que se conhece a África, uma terra feita de gente extraordinária, de Santo Agostinho, Bispo de Hipona, no século IV, ao norte, até Nelson Mandela, ao sul, no século XXI.

Gente como o escritor Wole Soyinka, na Nigéria, Albert Camus na Argélia, ou Amílcar Cabral na Guiné Cabo Verde.

Para além de alguns mares regionais, que existem graças a excentricidades geográficas, África encontra-se banhada por três mares: o Mediterrâneo, o Atlântico e o Índico.

O Mediterrâneo ao norte é culto, o Atlântico, a ocidente é prático e lógico, o Índico a oriente, é místico e cerimonial.

É claro, que a expressão, culto, tem a ver com a eterna visão egoísta e pretensiosa, quando não sobranceira, que nós europeus, mesmo quando nascidos em África, como é o meu caso, temos do mundo.

Muito provavelmente o Homem terá nascido em África, na região central oriental, há cerca de dois milhões e meio de anos, e daqui com uma origem única e comum, espalhou-se por toda a Terra.

Contudo, apesar de ter sido o berço da humanidade, África é particularmente marcada pelas sucessivas chegadas de forasteiros ao continente, e pela forma como eles utilizaram os três mares para o fazer.

Do Mediterrâneo chegou um mundo antigo, a civilização grego romana, depois reformulada na civilização judaico-cristã, com a solidez e estabilidade de tudo aquilo que é do centro, ou médio, como foi a Idade Média, caracterizada esta por um gradual mas lento ocaso da luminosidade mediterrânica, para um gradual crescimento da luz brumosa do Atlântico.

Mas este estado de coisas foi abruptamente interrompido, quando na transição do século XV para XVI, portugueses e espanhóis, enfrentaram o grande oceano, e atravessaram-no sem quaisquer referências de costa. O mundo ia deslocar-se do Mediterrâneo para o Atlântico, da Idade Média para a Moderna, do velho para o novo.

A epopeia atlântica dos descobrimentos, molda toda a vida de África ocidental. Africanos e europeus encontram-se e conhecem-se pela primeira vez, um acontecimento de enorme importância, e muito diferente do que vinha a acontecer na bordadura mais ou menos extensa do Mediterrâneo, onde europeus, árabes e africanos, contactavam desde há muito tempo, e iam aprofundando esse contacto de forma gradual, à medida que mercadores árabes se embrenhavam no interior do continente.

Os portugueses de quinhentos desceram o Atlântico africano em duas navegações distintas. Uma próximo da costa, feita no célebre bombordo, destinada a ir registando a sua passagem, assinalando terras com marcos, com as quais iriam construir o império, e outra pelo grande mar fora, destinada a apanhar os ventos propícios que lhes permitisse dobrar o extremo meridional do continente, ultrapassar o Cabo da Boa Esperança, entrar no Índico e chegar à Índia.

Quando finalmente dobrámos o Cabo em 1488, deixámos para trás o Atlântico e entramos no Índico, tudo se alterou.

Na costa oriental de África, os portugueses depararam-se com uma civilização antiga, feita de camadas sobrepostas, por sucessivas presenças, em tempo e espaço.

À medida que se adentrava o Indico, e que se encontravam as gentes e os costumes locais, o tempo cristalizava, preso ao mormaço dos golfões.

Na Índia, o panteão dos deuses era inesgotável, e fazia realçar a menoridade dos nossos patriarcas bíblicos, quando comparados com a vetustez das divindades hindus.

No momento em que começaram a conversar sobre religião, os cristãos descobriram que o seu Deus feito Homem, tinha pouco mais do que mil anos, e foram apresentados a deuses que tinham a idade suficiente para se julgarem pais dos Himalaias.

A China era tão velha, que já estava ali quando todos os outros chegaram. Se lhe chamavam o império do meio, era porque se calhar havia outro tanto para o lado de lá. E o seu interior ficava inacessível por uma grande muralha.

Depois, quanto mais navegavam rumo ao sol nascente, mais envelheciam, porque rumar ao oriente era subir o curso da história.

Ao regressassem a casa iam poder falar de coisas que ali, ainda estavam por acontecer.

Toda esta civilização de civilizações, tinha vindo sem pressas tocar a costa oriental de África, embalados pela brisa suave que enfunava as velas dos dhows, comerciar de tudo. Aprender tudo e ensinar tudo.

Esta imensa sabedoria, ainda hoje pode ser observada no contraste da alvenaria branca do casario da Ilha de Moçambique, com a esmeralda liquida  do mar envolvente.

Quando Vasco da Gama aqui chegou em 1498, encontrou uma população suáli, de onde vêm as mulheres mais bonitas de África, numa mistura de árabes e negros, governada por um xeque vassalo do Sultão de Zanzibar, nómadas marítimos, que viajavam por entre o Mar Vermelho, a Pérsia, a Índia, até às primeiras espumas do Pacífico.

Rodeada dos seus três mares, África constitui uma unidade cultural coerente, nomeadamente quanto à tão desejada diversidade.

África, são estes três mares. E um outro, um quarto mar, imenso e interior, feito de terras sem mar algum, o que constitui um obstáculo mais ao desenvolvimento do continente.

Numa altura em que o mundo vai voltar a ser dividido entre as nações, agora na base não da força mas do direito, por pessoas qualificadas, com conhecimentos jurídicos, científicos, técnicos e políticos, para o cálculo e a atribuição das plataformas continentais, ou seja de mar, penso que era um gesto digno e altruísta, mesmo que provavelmente de difícil execução e desprovido de resultados práticos, identificar e registar áreas marítimas, no grande mar ainda devoluto das águas internacionais, que pudessem ser atribuídas a todos os povos cujas agruras e injustiças históricas privaram de mar. Artur M Pires – Portugal in “Jornal da Economia do Mar”

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