O
livro Urso-pardo em Portugal – Crónica de uma Extinção, de Miguel Brandão
Pimenta e Paulo Caetano, conta como foi morto o último urso-pardo português, no
Gerês. E como se traçou o destino desse predador icónico, que já existiu por
todo o país
Foi no segundo dia do mês de
Dezembro de 1843, com o espírito de Natal já instalado na comunidade serrana e
o frio entorpecedor a prometer a chegada de neve e fome, que uma multidão subiu
à serra da Mourela, no Gerês, e até ao sítio do Sapateiro. Aí dispersaram e
percorreram todo o vale do ribeiro do rio Mau até encontrarem num bosque denso
o corpulento urso-pardo que procuravam. Mataram-no e transportaram o seu
cadáver para a vila de Montalegre. A notícia da sua morte não ficou por
Trás-os-Montes e percorreu todo o país graças à pena de um escriba, que redigiu
uma breve nota publicada na Revista
Universal Lisbonense a 21 de Dezembro desse mesmo ano. E agora Miguel
Brandão Pimenta e Paulo Caetano evocam esse acontecimento como a “última
matança”, no livro Urso-pardo em Portugal
– Crónica de uma Extinção, publicado em Novembro em versão bilingue
(português e inglês) pela editora Bizâncio.
Os dados arqueológicos indicam
que o urso-pardo é uma espécie originária da Ásia, onde é conhecida há 450 mil
anos. Há 300 mil terá coexistido com outra espécie de urso, o
urso-das-cavernas, um habitante mais antigo das montanhas europeias que, menos
apto a enfrentar um período glaciar, acabou por sucumbir. Agora, o urso-pardo (Ursus arctus), que num passado distante
vagueou por quase toda a Europa, é aquele que tem maior distribuição geográfica
entre todos os membros vivos da família dos ursídeos (que, para além de ursos,
também inclui pandas). Reconhece-se pelo seu aspecto pesado, cauda e patas
curtas, uma cabeça grande com olhos pequenos e frontais e pequenas orelhas
arredondadas. A pelagem tanto pode ser de um dourado-claro como de um
castanho-escuro. E o seu peso e dimensões variam conforme a região,
identificando-se diferenças notáveis de urso para urso até entre a mesma população.
Embora o seu estado de
conservação seja considerado “pouco preocupante” pela União Internacional para
a Conservação da Natureza, ter-se-á extinguido em Portugal, enquanto espécie
com população reprodutora, por volta do século XVII. E o último urso-pardo em
território português não terá sido morto em 1650, como se chegou a pensar, mas
sim em 1843, na tal matança no Gerês, depois de ter existido por todo o país.
“Julga-se que desceria das Astúrias, porque é fera alheia a estes países [a
Portugal]”, lê-se na notícia da Revista
Universal Lisbonense. Esse último urso seria, então, muito provavelmente,
apenas um de outros animais errantes que há dois séculos ainda nos visitavam.
“São animais errantes que vêm da Galiza. Não podemos dizer que havia ursos em
Portugal. Mas de vez em quando atravessavam a fronteira”, explica ao Público
Paulo Caetano, ex-jornalista e autor de quase duas dezenas de livros de
etnografia e natureza.
Paulo Caetano já tinha escrito
sobre ursos noutras ocasiões e este novo livro resulta de uma colaboração com
Miguel Brandão Pimenta, que foi técnico superior no Parque Nacional da
Peneda-Gerês até 2012 e tem estado ligado à investigação e divulgação
científicas. Este novo projecto sobre o urso-pardo em Portugal é já antigo e
vem colmatar uma falha que consideravam existir. “O último artigo científico e,
diria até, o único sobre o urso-pardo em Portugal foi publicado em 1967 pelo
professor Baeta Neves”, sublinha Paulo Caetano, referindo-se a um artigo
publicado pela Liga para a Protecção da Natureza, da qual o cientista Carlos
Baeta Neves foi um dos fundadores em 1948. “Quisemos actualizar a informação
científica e fomos aos documentos originais.”
Existem referências aos ursos
noutros artigos científicos, em particular naqueles que foram escritos por
arqueólogos. Contudo, são apenas fruto do acaso, frisa Paulo Caetano: não há
nenhum cientista – pelo menos que o ex-jornalista tenha conhecimento – à
procura especificamente de fósseis de urso no país. Mas por vezes encontram-nos
entre outras descobertas arqueológicas. São peças – raras, no caso dos
carnívoros, e ainda mais no dos ursos – que contêm informações importantes para
decifrar realidades antigas. E, por isso, também “O puzzle dos arqueólogos” tem no livro um capítulo só para si – onde se
relembra, por exemplo, uma descoberta inesperada: a da Galeria dos Ursos, uma
das muitas brechas, grutas e cavernas da nascente do Almonda (Santarém).
“Um dia, quando uma equipa da
Sociedade Portuguesa de Espeleologia desceu até esta galeria, cartografando a
imensa rede subterrânea do Almonda, foi apanhada de surpresa”, começa assim a
história. E bem gravadas nas paredes do patamar a que chegaram, que poderia ter
mais de meio milhão de anos, estavam marcas inconfundíveis: unhadas de urso.
O
fogo: inimigo de florestas e ursos
Agora, os ursos-pardos da
cordilheira Cantábrica, no Norte de Espanha, que se encontram entre os mais
pequenos do mundo, são o mais perto que temos de uma lembrança viva na natureza
dos últimos ursos portugueses desaparecidos no século XIX, quando as populações
do Sul da Galiza, de quem dependiam, entraram em declínio. E é essa a história
– a do urso-pardo em Portugal e da sua interacção com a história do homem – que
nos é contada numa crónica em que, entre achados arqueológicos e fontes
históricas originais, o tema do fogo e a má gestão do território também estão
muito presentes. “Os autores do século XVIII já referiam a devastação da
floresta por causa do fogo”, afirma Paulo Caetano, que frisa o facto de o
problema não ser uma novidade, ainda que este ano seja tão actual. “A caça foi
apenas a última machadada.”
Os primeiros sinais de pressão
sobre a floresta no território hoje português surgiram, como refere o livro
agora publicado, há cerca de sete mil anos, quando os humanos começaram a
cortar e a queimar árvores para conquistar as terras necessárias ao seu
sustento. E foi, ao que tudo indica, no século XV, em plena crise florestal,
que o urso-pardo começou a rarear em Portugal, o que levou os monarcas
portugueses a aplicarem multas de mil libras a quem se atrevesse a matar um
urso sem autorização do rei. Mas o seu destino já estava traçado, com a redução
do seu habitat – graças à desflorestação e à “revolução do milho” –, bem como
ao aumento do “desassossego” e da caça.
O que está na origem da
extinção do urso-pardo em Portugal é, então, não a caça – apesar da sua
contribuição – mas a destruição da floresta autóctone. A transformação de
bosques outrora ricos em monoculturas de pinhal e em terrenos de cultivo ditou
o desaparecimento de um predador que necessita de abrigo e de comer animais
mortos, mas também de mel e frutas silvestres. Mesmo que agora um urso-pardo
passe a fronteira e decida passear pelo país, é pouco provável que se instale.
Desde a degradação da floresta à perturbação das zonas montanhosas, não há
nenhum território que o possa albergar, de forma permanente, para reprodução.
“O país não tem actualmente montanhas suficientemente isoladas e tranquilas
para albergar uma população estável daquela espécie”, pode ler-se no livro.
“Por outro lado, o panorama florestal português é desolador.”
Em Espanha, o urso-pardo
também foi regredindo no território para se limitar às altas montanhas, nas
Astúrias, até onde Miguel Pimenta e Paulo Caetano foram para fotografar o
predador. E mesmo aí o urso-pardo também chegou a estar ameaçado, mas as
autoridades espanholas adoptaram a tempo medidas de conservação. Por outro
lado, as populações de ursos, que foram reintroduzidas e que ainda sobrevivem
nos Pirenéus espanhóis e franceses, são muito residuais, pois são
constantemente perseguidos e abatidos. Estes conflitos também eram frequentes
em Portugal, como dão conta crónicas antigas sobre feras que aterrorizavam as
populações do Gerês e de Chaves e que os autores pensam, pelas descrições,
tratar-se de ursos. Resta-nos, então, um legado que se encontra em painéis de
azulejos, mas também em festas populares, como a Festa do Urso da freguesia de Pereira
(Montemor-o-Velho), na heráldica militar e religiosa e até na toponímia, com
referências nos nomes de localidades de norte a sul do país.
É possível voltar a ter ursos
em Portugal? É improvável. Para isso, sugerem os autores no livro, teria de se
pensar em aplicar uma política florestal equilibrada que permitisse ter uma
floresta bem gerida e gradualmente livre de espécies agressivas, como a acácia
e o eucalipto. Mas também que fosse capaz de promover a conservação da
generalidade dos ecossistemas florestais portugueses, em particular os
carvalhais de folha caduca e perene. “Enfim: preparar o terreno para que, um
dia, o urso nos possa visitar em segurança e tranquilidade.” Raquel Silva – Portugal in "Público"
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