Este
é um artigo por antecipação: como daqui a oito dias é Natal, queria falar já do
grande assunto da semana que agora começa: as eleições na Catalunha. Tenho, no
entanto, um problema: não faço ideia se vão ganhar os independentistas ou os
unionistas. Assim, o melhor é falar daquilo que não vai mudar e que, para dizer
a verdade, é o que mais me interessa nesta história toda: o catalão, uma das
duas línguas lá da zona.
É
por estas e por outras que não compreendo como uns quantos portugueses dizem,
meio a brincar meio a sério, que mais valia sermos espanhóis. Tenham juízo.
Ora, o desconhecimento é o
melhor adubo dos mitos. Nos últimos meses, tenho ouvido muitos sobre esta
língua. Ficam aqui três…
1
- «O catalão não era usado até há pouco tempo.»
Esta é uma impressão que
alguns portugueses têm, provavelmente porque só agora repararam na língua… No
entanto, a realidade está muito longe dessas distraídas impressões portuguesas.
Não podendo resumir a história
duma língua numa crónica, ficam alguns traços largos e necessariamente
imprecisos. O catalão foi usado na literatura durante a Idade Média e há alguns
grandes vultos da cultura europeia dessa época que escreveram em catalão. Por
exemplo, Raimundo Lúlio (em catalão, Ramon Llull) ou Joanot Martorell, autor de
Tirant lo Blanc. O certo é que, depois da junção das coroas de Aragão e
Castela, o catalão perdeu prestígio e o castelhano foi, durante séculos, a
língua usada pelo Estado, pelos escritores e pelas elites quando estavam foram
de casa.
O castelhano era a língua
visível e a língua da escrita — mas não era a língua materna da grande maioria
dos catalães. A língua que se falava dentro da casa dos catalães continuou a
ser o catalão (com este ou outro nome).
Pois bem, a partir do século
XIX, houve um movimento de afirmação do catalão enquanto língua de prestígio.
Recuperou-se o uso literário da língua, enquanto, nas aldeias e nas ruas das
cidades, o catalão nunca deixou de ser a língua materna da população — até que
a televisão e o ensino massificado durante o século XX espalharam o castelhano.
Hoje, os catalães usam as duas
línguas e o catalão é, certamente, mais visível do que na época em que não se
usava na escrita; no entanto, sendo hoje uma das línguas oficiais da Catalunha,
é menos falado do que há 100 anos, por exemplo. No fundo, o catalão, nos
últimos cem anos, aumentou o seu prestígio, mas diminuiu o seu uso.
2
- «O catalão deriva do espanhol.»
O catalão sofre há séculos
influência do castelhano — mas não deriva deste último. Dizem os historiadores
da língua que o catalão é a evolução particular do latim popular da Marca
Hispânica, a zona de fronteira entre o reino dos Francos e o território
muçulmano da Península.
O catalão tem, assim, uma
origem claramente distinta do castelhano — aliás, algumas palavras denunciam
uma fronteira que separa o catalão de todas as outras línguas ibéricas,
incluindo o português. Vemos isto, por exemplo, na palavra «medo» (português);
«miedo» (espanhol); «por» (catalão); «peur» (francês); «paura» (italiano) — ou
então, no verbo «falar» (português); «hablar» (espanhol); «parlar» (catalão);
«parler» (francês); «parlare» (italiano).
Não, o catalão não é uma
«língua de trapos» e muito menos uma forma errada de falar espanhol — é uma das
línguas latinas, oficial em Andorra e em três regiões de Espanha.
3
- «O catalão não serve para nada.»
Algumas pessoas encolhem os
ombros ou ficam incomodadas com a insistência dos catalães em falar esta
língua. Se o espanhol serve tão bem, para quê esta trabalheira?
Ora, o catalão é a língua que
grande parte dos catalães ouviram da boca da mãe. É a língua deles, como o
português é a nossa. É a língua em que se sentem confortáveis. É ainda uma
língua com tradição literária e língua de cultura — ainda por cima, os catalães
não perdem o acesso à cultura em língua castelhana, pois escrevem e falam as
duas línguas.
Ou seja, só pode ficar
incomodado com o facto simples de haver milhões de catalães que querem falar
catalão e ensiná-lo aos filhos quem estiver convencido que o castelhano deve
ser a única língua de todos os espanhóis.
Depois, há outra ideia errada
que alguns portugueses também defendem. Dizem eles que o catalão só é falado
por mania dos independentistas. Pois bem: estes últimos parecem representar,
pelos resultados eleitorais dos últimos anos, aproximadamente dois milhões e
meio de catalães. Ora, o catalão é língua materna de uns cinco milhões de
pessoas (não só na Catalunha, diga-se) e é usado como segunda língua por mais
uns quantos milhões. É uma língua falada por mais europeus do que o norueguês,
por exemplo. Será o norueguês inútil ou mania dos noruegueses? De certa forma,
todas as línguas são uma mania de quem as fala. Nós, portugueses, vejam lá bem,
temos a mania de falar português… Os catalães têm a mania de falar catalão — e
ainda se atrevem a saber castelhano…
Sim, a língua é uma das
bandeiras dos independentistas, mas está longe de se limitar aos círculos que
defendem a separação de Espanha. Aliás, julgo que há um consenso muito alargado
na sociedade catalã sobre a preservação da língua — um consenso que está
longíssimo de existir no que toca à independência…
Mas
então, não há problemas com a língua?
Claro que há, mas esses
problemas estão, muitas vezes, na cabeça de quem não vive na Catalunha.
Em muitas regiões do nosso
reino vizinho, há tendência para desprezar as outras línguas de Espanha. Muitos
toleram a sua existência, mas pouquíssimos se interessam por elas. Muitos acham
que aprender catalão é inútil e, para dizer a verdade, um pouco suspeito.
Esquecem-se que, se a Catalunha é de facto parte de Espanha, isso só pode
querer dizer que o catalão é uma língua de milhões de espanhóis e que merece
respeito e (será pedir muito?) algum interesse.
Depois, ouve-se muito por
Madrid que os catalães não querem aprender castelhano e que o castelhano está
em perigo na Catalunha — ora, isto parece-me injusto. Para que o leitor
compreenda a injustiça, imagine um madrileno a acusar irritado um catalão de
não querer falar castelhano — quando o catalão, na verdade, fala e escreve
castelhano fluentemente, enquanto ao madrileno nunca lhe passaria pela cabeça
aprender catalão... Temos gente monolingue a acusar gente bilingue de querer
ser monolingue.
Sim, eu sei que aquilo que
irrita muitos madrilenos é o facto de as crianças que falam castelhano em casa
terem de aprender catalão na escola. Mas, bolas, essas crianças ficam a saber
falar duas línguas — e assim evita-se a situação que ocorria há 50 anos, em que
a sociedade catalã se dividia entre aqueles que falavam castelhano e catalão e
aqueles que só falavam castelhano. O objectivo é que todos falem as duas
línguas, independentemente da língua de casa e da origem dos pais.
Enfim, uma Espanha em paz
consigo própria vai ter de aprender a viver com as línguas faladas por milhões
de espanhóis — mais do que tolerá-las, deve assumi-las como suas para que
aqueles que falam outras línguas se sintam confortáveis em Espanha. Será
possível? Não sei. Mas diria que, se o país vizinho conseguir reinventar-se
enquanto Estado plurilingue, o catalão, longe de não servir para nada, terá
servido para salvar Espanha…
Dito tudo isto, deixem-me
terminar com um desabafo: ainda bem que nós, portugueses, não temos de pedir
licença para aprender, ensinar e viver à vontade na nossa língua. É por estas e
por outras que não compreendo como uns quantos portugueses dizem, meio a
brincar meio a sério, que mais valia sermos espanhóis. Tenham juízo. Marco Neves – Portugal in “Sapo24”
Marco
Neves - Tradutor e professor. Escreve no blogue Certas Palavras.
Autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa.
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